sábado, julho 27, 2019

Shampoo (Hal Ashby, 1975) e Regras Não Se Aplicam (Warren Beatty, 2016)


As filmagens de Shampoo começaram em janeiro de 1974. Se Shampoo era o trabalho autoral de alguém, esse alguém é provavelmente Beatty. Ashby estava em desvantagem desde o começo. Beatty tinha colocado pessoas de sua confiança em todos os postos-chave da equipe e Hal não tinha aliados, somente o montador Bob Jones. “Hal odiava autoridade e nesse filme Warren representava a autoridade”, diz Charles Mulvehill (produtor executivo). “Era o filme dele. Hal era um maníaco por controle, só que sem controle.”
Como a Geração Sexo, Drogas e Rock n´Roll Salvou Hollywood, Peter Biskind (pg. 202)

Foi coincidência enfileirar dois filmes de Warren Beatty (embora Shampoo seja dirigido por Hal Ashby, a sombra de Warren Beatty se faz muito presente na produção – a introdução do post explora um pouco essa questão). Primeiro veio Regras Não Se Aplicam, uma semana depois Shampoo – involuntariamente inverti a ordem das coisas. Duas produções separadas por aproximadamente 40 anos que, curiosamente, proporcionam uma avaliação crítica da misoginia em suas respectivas épocas. E, no que diz respeito a elas, refiro-me ao zeitgeist de suas produções, não ao período em que se passam as suas respectivas narrativas. Sendo assim, Regras Não Se Aplicam vale para o ano de 2016 e adjacências, não para a década de 1940. Shampoo se passa no crepúsculo do governo de Richard Nixon, justamente quando o filme estava sendo produzido – espírito da época da produção coincide com o da narrativa.

Naturalmente, os filmes não se prestam apenas a isso. Eles valem mais do que essa observação a que me dedico fazer alguns comentários.

Warren Beatty (diretor) explora a misoginia de Howard Hughes em Regras Não Se Aplicam pela via mais branda, retratando o milionário empresário/produtor/aviador/industrial como um homem pitoresco, infantil, difícil, ainda que divertido, absolutamente suavizado pela caracterização impagável de Warren Beatty (ator). As excentricidades do personagem não são exatamente negativas, são elas que proporcionam os momentos de alívio cômico da produção, mesmo em situações mais graves (spoiler) - como na gravidez indesejada de uma personagem importante na trama. Esse distanciamento temporal da narrativa com o tempo presente permite a Warren Beatty “brincar” com a questão sem se ver “envolvido” com ela.

Shampoo chama a atenção pela forma escancarada com que o personagem de Warren Beatty, principalmente, e o personagem de Jack Warden, da mesma forma, manifestam sua indiferença pelas mulheres. A narrativa do filme busca uma possível encenação para dar conta dos tempos sombrios que se avizinhavam (a eleição de Richard Nixon no plano narrativo e o exercício do seu mandato no momento da produção, já desgastado pelo escândalo de Waltergate), ao mesmo tempo em que joga uma pá de cal no movimento de contracultura e liberação sexual, vivenciados em sua plenitude na década anterior. Essa sensação de reprovação experimentada hoje, de abuso da condição patriarcal, teve nos anos 70 o auge do seu exercício. Existe uma tensão curiosa que se manifesta “fora” do filme, e de certa forma enriquece a sua fruição, que diz respeito ao próprio Warren Beatty: o narcisismo do ator que encomendou o projeto, se divertindo com as mulheres à custa de seu personagem (embora o “discurso da produção” vá em direção contrária a essa postura, ou pelo menos sugere ir). Documento comportamental precioso de uma época que estabeleceu o apogeu criativo de uma geração de cineastas.

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Involuntariamente, sem me dar conta dessas conexões, emendei uma semana depois o Corações Loucos (1971), do Bertrand Blier. Aí o bicho pega! Que filmaço, gostei demais. A liberdade, tão almejada e valorizada em sua escassez, se veste de desconcertante e perturbadora quando em abundância. Interpretação antológica de Gérard Depardieu, em estado de graça, que estabeleceu o seu lugar junto aos grandes atores franceses. Embora o seu personagem e o de Patrick Dewaere sejam misóginos, estúpidos, o entorno deles não oferece salvação/redenção alguma. O isolamento e a alienação são experimentados por todos os personagens, embora essa percepção só amadureça da metade do filme pra frente. A cena da amamentação no trem chega a ser deprimente por isso e a empatia do espectador em relação à mãe parte da indignação, num primeiro momento, para a piedade/compaixão, num segundo momento. Esse pêndulo emocional perpassa toda a narrativa, de um impacto inicial intenso, acentuado, para uma atenuação gradativa da ira, da inconformação.

Duas gigantes atrizes habitam o filme: Jeanne Moreau, enigmática como de hábito, em clima de despedida, provoca uma espécie de relaxamento nos personagens do filme, um apaziguamento do ímpeto libertário exacerbado (sua marca registada de outrora), oposto ao efeito lesivo despertado em sua personagem; Isabelle Huppert, em início de carreira, já carregava o gene da transgressão.

domingo, julho 07, 2019

Results (Andrew Bujalski, 2015)




Levei um tempo para entrar no clima de Results. O filme não se entrega tão facilmente ao espectador. Leva mais de hora para entendermos que se trata de uma comédia (romântica???); o transtorno comportamental do personagem de Kevin Corrigan e a rigidez da personagem de Cobie Smulders reforçam a impressão de um drama, dissipada apenas pelo otimismo exasperado do personagem de Guy Pearce. Porém, pouco a pouco, o arranjo de relacionamentos proposto por Andrew Bujalski começa a tomar forma, reservando uma grata surpresa após a outra, ao optar por caminhos narrativos absolutamente inesperados.

Os atores abraçam a proposta com tanta paixão e desenvoltura que, findada a sessão, já estava eu buscando outras produções de Kevin Corrigan e Cobie Smulders, tamanha a minha admiração pelo trabalho dos dois e a vontade de acompanhar a evolução de suas carreiras. Guy Pearce não fica atrás, mas a sua trajetória já goza de uma exposição midiática mais ampla. Esse foi o meu primeiro filme de Andrew Bujalski, que já entrou no meu radar de prioridades da mesma forma.

Os três personagens exibem logo de cara as suas fraquezas, expondo de forma transparente os conflitos gerados pela sua interação. Essa opção reforça no espectador a representação estereotipada dos mesmos, de forma que algumas das suas ações tendem a ser vistas pelo lado grotesco (em algum ponto entre o mau gosto e o constrangedor). Quando a corda rompe de vez, em razão da dificuldade de relacionamento entre as partes (todas as relações são mediadas por contratos: trabalhista; usuário x prestador de serviços; cliente x fornecedor), o filme quase sai dos trilhos. Só posteriormente percebemos o quanto Andrew Bujalski estava no controle de toda a situação.

No final das contas, os personagens só existem por suas imperfeições. O pay off dessas diferenças não vem de súbito, como uma espécie de revelação bombástica, ele vai sendo gestado aos poucos num nó que leva tempo para desatar. Em nenhum momento Bujalski vende o que não consegue entregar: não esqueçamos que se trata de um filme, não da vida real; uma criação artística que necessita “dialogar” com o público o tempo todo a fim de não perdê-lo. Mas ninguém pode acusá-lo de covardia, Bujalski aposta alto, explora as convenções do gênero de forma inusitada, para no fim chegar ao mesmo ponto (ou, alcançar o mesmo resultado). Aqui, o caminho alternativo é que faz a diferença!