sexta-feira, agosto 26, 2011

Cinema, Nazismo e Melancolia


Conforme prometido no post anterior, reproduzo a matéria de Antônio Gonçalves Filho publicada no Estadão de 14 de agosto de 2011.

A frivolidade com que o cineasta dinamarquês Lar von Trier, no último Festival de Cannes, respondeu às perguntas de um jornalista sobre sua irresistível atração pelo monumental da estética nazista não deveria surpreender seus interlocutores. Sarcástico, ao assumir sua simpatia por Hitler, o fato é que seu filme Melancolia parece um simulacro de Titanic dirigido pelo espírito de Leni Riefenstahl, a cineasta do Führer que ajudou a formatar essa estética, ajudada na tarefa pelos pantagruélicos projetos arquitetônicos de Albert Speer (que Von Trier disse adorar na infeliz entrevista). Tudo que Melancolia tem de bom foi confiscado de outros cineastas, seguindo a lógica nazista de apropriação de bens. Pode-se ver isso desde seu prólogo wagneriano, que usa a tela de Brueghel, Os Caçadores na Neve, como signo da desolação - Tarkovski já fez isso há 40 anos em seu filme Solaris (1972), que, aliás também fala de uma ameaça interplanetária.

Como em Solaris, o planeta que perturba a vida dos terrestres em Melancolia pode não ser mais que a projeção de uma doença mental provocada pelo confronto com a morte. Em outras palavras: a depressão, o mal do século. Von Trier foi uma de suas vítimas. A causa mesmo do existir Melancolia deve-se a ela. Assim, Justine, a publicitária que na noite do tumultuado casamento perde o marido e o emprego, é mais ou menos como os caçadores deprimidos de Brueghel que, num dia de inverno, regressam ao lar após uma expedição desastrosa, seguidos por cães famintos de aspecto miserável.

Em seu desesperado exercício para ser um Gesamtkunswerk wagneriana, o prólogo de Melancolia confisca do pintor John Everett Millais outra imagem do repertório kitsch universal, o da morte de Ofélia, a noiva afogada de Hamlet. Nada a estranhar. Os oito minutos desse prólogo, da “obra de arte total” de Von Trier, embalado pelo prelúdio de Tristão e Isolda, fazem da deprimida Justine uma versão atualizada da demente Ofélia em Elsinore. Seu caso de amor está destinado ao fiasco, sua família é monstruosa e, ainda por cima, terá de enfrentar um planeta dez vezes maior que a Terra na segunda parte do filme. Sim, porque tudo é binário em Von Trier, cineasta que, no passado, já deu maiores provas de criatividade – e um exemplo disso é Ondas do Destino (Breaking the Waves).

Melancolia é dividido em duas partes. Na primeira parte, o desastre propriamente dito é o núcleo familiar, como nos filmes de seu amigo Thomas Vinterberg, um dos signatários do Dogma (1995), manifesto cinematográfico que ambos criaram e depois destruíram. O casamento de Justine vira uma festa de insultos, a mãe se recusa a participar do ritual, o noivo a abandona e, por fim, chega-se à segunda parte. Nela, a noiva deprimida é recebida na mansão da irmã (ativa, enérgica, em tudo diferente dela). O cunhado, astrônomo amador, anuncia que um planeta viaja em direção à Terra e Justine, passivamente, aceita seu destino (para um deprimido, o fim do mundo é, afinal, a solução de seus problemas). É a velha história do Titanic com o iceberg.

 O formalismo hollywoodiano de Melancolia já se anuncia na estética publicitária de seu prólogo – a tragédia filmada em slow motion, como um comercial do apocalipse. E continua ainda na primeira parte. A fúria da noiva Justine (Kirsten Dunst), na biblioteca do cunhado, ao trocar ilustrações de Malevitch por obras figurativas, indica não só uma dificuldade de convivência da deprimida com o suprematismo russo. Ela aponta para uma mudança de direção estética de Von Trier – da abstração de Dogville ao realismo de Melancolia, um “disaster movie” disfarçado de drama existencial. Convém lembrar que o nazismo classificou como “arte degenerada” o abstracionismo, elegendo como arte oficial a pintura realista. Condenar mais uma vez Malevitch (acusado de subjetivismo pela ditadura soviética) parece injusto. E gratuito.

Talvez Von Trier, em sua crise depressiva, tenha mesmo abjurado a abstração de Dogville (um filme sem cenário, que obriga o espectador a imaginá-lo) e, afinal, renegado os próprios mandamentos do Dogma. É licito. Todo mundo tem direito a uma revisão filosófica e estética. Mas o que diriam os religiosos se Moisés tivesse deliberadamente trocado as tábuas da Lei no Monte Sinai? Von Trier, com Melancolia, joga definitivamente seu decálogo no lixo – bem, já havia jogado antes, é certo, ao colocar uma interrogação sobre seus filmes dos anos 1990.

Não seria grave se o Dogma tivesse outro propósito além de ser um disfarce cínico da retórica apocalíptica do diretor dinamarquês. Se o seu decálogo pretendia (de fato) ser um ato de resgate do cinema puro, livre da exploração industrial, hoje o cinema de Von Trier curva-se à monumentalidade do espetáculo hollywoodiano. É impossível esquecer que os nazistas, como já denunciou o cineasta Peter Cohen, planejavam grandes obras arquitetônicas para virar belas ruínas. “A Terra é má”, diz Justine à Irmã, justificando a crença simplista na “solução final” representada pelo planeta Melancolia. Ainda bem que existe Terrence Malick para voltar às origens – da Terra e do cinema.

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