sexta-feira, agosto 19, 2011

Melancolia (Lars von Trier, 2011)






Do filme se falou pouco. As declarações (nem tão) polêmicas (assim) de Lars von Trier na coletiva de imprensa do Festival de Cannes deste ano ofuscaram a discussão que a obra poderia despertar. Uma pena. Daria um belo debate.

A estória do filme, como de hábito em Von Trier, é relativamente simples: um planeta chamado Melancolia está em rota de colisão com a Terra. Duas irmãs, Justine (Kirsten Dunst) e Claire (Charlotte Gainsbourg), reagem ao fato de formas distintas: a primeira com serenidade; a segunda com desespero. Na beira do caos, Lars von Trier encena um frágil jogo de aparências – uma família que se desintegra – repleto de signos e metáforas.

As fotos que ilustram esse post são do belíssimo prólogo do filme. Da mesma forma que fizera com Anticristo (2009), Lars Von Trier opta por começar com uma sequência de imagens estilizadas, embalada por uma trilha sonora sem diálogos (a Ópera Tristão e Isolda, de Richard Wagner) – aproximadamente uns dez minutos. Em Anticristo, esse início é basicamente uma introdução à estória que está prestes a ser contada, já em Melancolia assistimos a uma sucessão de cenas bem fotografadas que serão devidamente reconhecidas ao longo da projeção, num verdadeiro resumo do que está por vir. Não um resumo convencional (com fragmentos de cenas do filme), mas um apanhado de imagens sugestivas, carregadas de simbolismos, evocando a pintura surrealista, em que a Natureza responde à hostilidade do ser humano. Enfim, pode ser visto como um verdadeiro curta-metragem que serve bem ao filme e tem vida própria.

Alguns dias após a sessão, uma questão não me foge a cabeça: teria sido o prólogo formalmente concebido na ocasião em que o filme só existia no papel, ou teria sido criado durante o processo de montagem a fim de “corrigir” e/ou “intensificar” a emoção requerida? Faço-me essa pergunta por que tento imaginar o que seria do filme sem ele.

Ao contrário de outras películas de Von Trier, nesta os personagens secundários não ficaram bem delineados: eles existem apenas como peças simbólicas, como meras representações, como caricaturas. Compartilham entre si um ar de superioridade, uma atitude meio blasé. Somente a personagem principal ganhou contornos mais expressivos. Em outros filmes do diretor, a protagonista, como agente da ação, determina os rumos da trama; em Melancolia, se passa o inverso: ela não age, apenas reage ao anunciado fim do mundo. Ela se encontra apática, estática, imóvel – física e metaforicamente. Embora a encenação se passe em apenas dois cenários, o que serviria de justificativa para a suposta imobilidade da personagem, Dogville (2003) e Manderlay (2005), que se desenrolam sob um palco teatral repleto de marcações cênicas (um único cenário), não padecem do mesmo problema.

Essas relações frouxas que os personagens mantêm entre si, sobretudo dos secundários para com a protagonista, enfraquecem toda a carga dramática inerente à proposta inicial. A dramaturgia densa, cuidadosa, construída com o rigor habitual de Von Trier em outras ocasiões, se mostra carente de energia aqui. Como defesa haverá quem diga, com boa dose de razão, que energia não é o ponto forte dos melancólicos... O primeiro capítulo, intitulado de Justine, é o que mais sofre com essa fraqueza da mise-en-scène; é nele que os coadjuvantes fazem a festa. Lar von Trier, como forma de compensação, poderia ter inserido algumas das belas imagens metafóricas do prólogo intermediando o enredo deste primeiro capítulo. Muitas delas caberiam nele. Até acredito que ele tenha tentado isso, todavia, o resultado certamente não se mostrou satisfatório (não é difícil imaginar o fracasso da tentativa).

O segundo capítulo (de título Claire), centrado totalmente na reação da protagonista e da sua irmã ao anunciado fim do mundo, já não conta com a presença física dos personagens secundários (a não ser a irmã e seu marido), apenas com a influência dos seus fantasmas sobre ela; de sorte que sobra mais tempo pra investir nas imagens. O capítulo de Justine, mesmo mal equilibrado, estabelece as bases para que a segunda parte possa se livrar das explicações, das amarras do roteiro, concentrando seus esforços no impacto visual (e sensorial) – a luz (ou ausência dela), os diversos ângulos do jardim da mansão captados de dia e de noite e os closes do planeta Melancolia. A ameaça encontra o espectador não somente na reação das atrizes ao aguardado apocalipse, ela vem também por meio do elaborado trabalho de som que Von Trier emprega pra dar conta da dimensão do evento (especialmente quando o planeta se encontra fora de quadro), além, é claro, da magnífica fotografia que reproduz à altura qualquer representante hollywoodiano que se prestou a isso nos últimos tempos – eu diria que melhor até!

Mesmo depois de toda essa prosa, que apresenta um acentuado tom negativo, minha avaliação da obra, paradoxalmente, é das melhores. Estou convencido de que o diretor acertou o ponteiro do filme enquanto montava as peças desta alegoria. O primeiro capítulo, após a edição, não surtiu o efeito dramático almejado pelo diretor. Cada imagem surrealista, de caráter explicativo/metafórico, captada para ser inserida no momento certo - no melhor estilo “uma imagem vale mais que mil palavras” -, não foi capaz de compensar a fragilidade da dramaturgia (curiosamente, um dos pontos fortes dos filmes de Von Trier). Então porque desperdiçar esse material de impacto sobreposto a outro não tão memorável? O prólogo surgiu como uma alternativa pra solucionar esse problema (que, inclusive, já fora utilizado com sucesso em Anticristo). A decisão foi certeira, supondo, naturalmente, que esse raciocínio seja válido.

Embora o filme forme um conjunto desigual seu impacto é duradouro, sendo mais significativa a contribuição do prólogo para gerar esse efeito. Prova maior disso é que o prólogo existe sem o filme, já o filme quase inexiste (ou melhor, não seria o mesmo) sem o prólogo. Apesar da ênfase do texto nas primeiras imagens, o filme conta com outras dignas de nota, especialmente, como já comentado, no segundo capítulo. Na primeira parte, eu destacaria a cena da limusine emperrada em uma curva no meio da floresta, que comporta diferentes leituras: literal – a dificuldade de um carro enorme em fazer uma curva acentuada na floresta, atrasando os noivos para a cerimônia de casamento; figurada – 1) o progresso humano, representado pelo automóvel, não vale de nada comparado à força da natureza e 2) as forças ocultas (que emanam da própria noiva e/ou da natureza) se manifestam contrárias ao casamento de Justine.

Enquanto eu escrevia essas linhas, a mídia impressa contou com vários colaboradores de seus respectivos canais (nem todos críticos de cinema) expressando suas opiniões a respeito do filme. A que mais me chamou a atenção foi a de Antônio Gonçalves Filho, do Estadão do último domingo (14/08/11). Mesmo com alguns pontos de discordância, reproduzo seu artigo no próximo post.

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