sábado, janeiro 28, 2012

O que eu vi de melhor em 2011 - nacionais


Essa postagem tardou a acontecer não foi à toa, essa é a terceira vez que me coloco a frente do computador pra eleger os filmes nacionais de 2011 que mais me chamaram a atenção. A rigor, esse post teria saído logo após os eleitos estrangeiros. Eu tenho hesitado em escrevê-lo porque por mais que tenha me esforçado para vê-los, muita coisa não estreou em Ribeirão Preto – pelo menos o que eu chamaria de parte mais relevante da produção, priorizando a qualidade, não necessariamente a bilheteria. Embora eu procure acompanhar o ritmo de lançamentos do cinema nacional, neste último ano, a não ser para os habitantes das capitais paulista e carioca, a missão se tornou praticamente impossível. Basicamente, os filmes que figuraram na maioria das listas elaboradas no final do ano só estrearam nas capitais.

Mesmo viajando periodicamente a São Paulo, não consegui me atualizar a contento. Algumas das produções de menor apelo comercial ou permaneceram por pouco tempo em cartaz, ou foram exibidas em uma única sessão diária, ou não se encontravam no eixo de salas da Av. Paulista. Nessa leva, acabei perdendo A Alegria (Felipe Bragança e Marina Meliande, 2010), Além da Estrada (Charly Braun, 2010), O Céu Sobre os Ombros (Sérgio Borges, 2010), Diário de uma Busca (Flávia Castro, 2010), A Fuga da Mulher Gorila (Felipe Bragança e Marina Meliande, 2009), Os Residentes (Tiago Mata Machado, 2010), Riscado (Gustavo Pizzi, 2010) e Transeunte (Eryk Rocha, 2010). Pelas consultas às listas, quase todos foram lembrados e alguns chegaram inclusive a dividir posições com as produções estrangeiras, como foi o caso de Riscado e Os Residentes. A safra (perdida) parece ter sido boa, pena que o alcance dela foi limitado.

Se o SESC não se dispuser a promover a exibição deles na grade de programação deste ano, resta o DVD (talvez alguns desses títulos venham a ser lançados no formato digital, será?) ou o Canal Brasil. Torçamos.

O Palhaço (Selton Mello, 2011) – depois da experiência de Feliz Natal (2009), cujo resultado ficou pesado e restringiu a aceitação do público, Selton Mello conseguiu dosar melhor a proposta de seu cinema em O Palhaço, equilibrando humor e melancolia, sem o apelo fácil das produções nacionais de cunho declaradamente comercial. Um road movie bem à brasileira.

Não se pode viver sem amor (Jorge Durán, 2010) – um filme meio torto do Durán, que leva um tempo considerável de projeção pra dizer ao que veio. Um olhar bem original das mazelas do Rio de Janeiro, sem o conformismo das produções que transparecem uma “vontade de tratar desse assunto”. Se o elemento fantástico do filme estivesse mais bem integrado à narrativa, o resultado seria bem melhor reconhecido.

Bróder (Jeferson De, 2010) – os favela movies cariocas tendem a ser mais voltados para o espetáculo, já as versões paulistas do gênero tendem a ser mais intimistas. O núcleo familiar do filme é muito forte (e talvez a parte dele que melhor se fixa em nossa memória), bem ancorado na interpretação memorável de Cássia Kiss – ela dispõe de pouco tempo de cena, mas deixa uma impressão duradoura.

Estrada para Ythaca (Guto Parente, Pedro Diógenes, Luiz e Ricardo Prestes, 2010) – a versão contemporânea do jargão “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, mas sem a pretensão dos colegas do Cinema Novo – os cinemanovistas almejavam “dar conta” do Brasil. O quarteto de Fortaleza adota um escopo mais modesto, ainda assim caminham a uma distância bastante confortável da irrelevância. Filhos do Festival de Cinema de Tiradentes, salvos pela programação do Canal Brasil.

Ex-Isto (Cao Guimarães, 2010) – um filme difícil que exige um bocado do espectador. Adaptado do livro Catatau de Paulo Leminski, ele explora uma viagem imaginária do filósofo René Descartes ao Brasil. Nosso “tropicalismo”, para o bem e para o mal, afeta os sentidos do pensador francês de maneira irremediável. Cao Guimarães consegue dar forma a essa proposta com a ajuda inestimável do talentoso João Miguel.

Trabalhar Cansa (Juliana Rojas e Marco Dutra, 2011) – o Fernando Watanabe, da Revista Cinequanon, escreveu o seguinte: “Estilisticamente, o filme é Bresson + Hitchcok + Haneke + Jelinek + um monte de coisa que não conheço. Ao mesmo tempo, tem uma cara própria, a cara de uma parcela da juventude brasileira contemporânea que, no mundo, tal qual ele se encontra, está e sempre estará fora de casa. Ainda assim, essa juventude (a nossa?) é privilegiada (ou não?) por poder, alegremente (o filme tem um senso de humor), paralisar o relógio que marcha e criar nesse lapso de tempo uma zona de inconformismo criativo”.

As Canções (Eduardo Coutinho, 2011) – eu até concordo que esse filme do Coutinho, como pregou boa parte da crítica, acabou por resultar menos inspirado do que os outros (ao eleger “canções” como mote de seu filme, o “assunto” ficou mais restrito, expondo à exaustão o seu método de trabalho), contudo o relato dos seus entrevistados/personagens permanece tão forte quanto os dos demais.

Recife Frio (Kléber Mendonça Filho, 2009) – se eu tivesse de escolher um dentre todos os filmes aqui eleitos, seria esse. Um curta-metragem de 24 minutos que mistura perfeitamente o drama social e a ficção científica e explora bem os limites da fronteira entre a ficção e o documentário. Nossos costumes são postos à prova a partir da queda de um meteoro em plena Praia de Boa Viagem – crenças, criatividade, exploração alheia, crescimento desordenado e consumismo.

sábado, janeiro 21, 2012

Chantal Akerman, de cá (Gustavo Beck e Leonardo Luiz Ferreira, 2010)




Ainda não assisti a qualquer filme que seja de Chantal Akerman, apenas conheço a fama dos mesmos pelas diversas resenhas e críticas que li a respeito do trabalho da diretora (a Revista Cinética fez uma cobertura bacana quando o CCBB abrigou uma retrospectiva da cineasta em março de 2009), cuja análise recai quase sempre sobre o seu minimalismo e o rigor estético de suas composições. Para os cinéfilos de plantão, a Lume Filmes lançou no início do ano passado o título mais famoso da diretora: Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975).

São mais de três horas acompanhando o cotidiano de uma dona de casa de mais ou menos 40 anos, viúva, com um filho, que tira seus proventos da prostituição ocasional. São demorados planos estáticos que documentam as monótonas tarefas domésticas da sua protagonista (Delphine Seyrig). O crítico Travis Crawford termina seu texto a respeito do filme da seguinte forma:

“Quando o espectador chega à marca de três horas, a tensão microscópica de músculos faciais e a aspereza aumentada do gesto que acompanham a fervura do café ou o cozimento das batatas assumem o caráter de um melodrama épico. Talvez seja o tipo de filme que funciona melhor como teoria, e não como algo que se tenha prazer em assistir, mas, para o espectador afinado com a abordagem austera de Akerman, ele permanece, em muitos aspectos, um feito inesquecível.”

Os diretores Gustavo Beck e Leonardo Luiz Ferreira absorveram os ensinamentos da diretora e reproduziram a sua estética à perfeição na entrevista de 60 minutos que fizeram com ela para o que acabou se tornando o filme Chantal Akerman, de cá (2010). Passados 10 minutos de projeção, quando já compreendemos o intuito da proposta (coerente com o objeto de estudo), restam apenas as palavras de Chantal. Em suma, ela merece, e muito, ser ouvida. Segue um trechinho (talvez o melhor) que precisei ouvir três vezes pra acreditar, tamanho o meu encantamento com o discurso. A tradução é do Canal Brasil.
­­___________________________________

Leonardo Luiz Ferreira: Desde Diderot, há discussões a respeito da quarta parede e do que ela representa nos trabalhos de arte: uma janela representando uma porta para o mundo e a existência do espectador. Quando você coloca uma mulher fazendo as tarefas domésticas em tempo real, isso coloca o seu cinema numa reflexão dessa presença para o espectador. Ele sente a presença e as atitudes. O que você acha da relação entre os seus filmes e os espectadores? Quando faz um filme e cria algo em tempo real, você sempre pensa no espectador?

Chantal Akerman: Nunca penso nos espectadores. E ninguém faz isso. É restaurado. Eu sou o primeiro espectador. Então, todos estarão no meu lugar, no cinema. É uma situação em que você fica frente a frente. Porque é direto. Não é por cima nem por baixo, é uma linha reta. Então, o espectador está na sala no sentido oposto. Ele está do outro lado da tela. São lados opostos. Mas é igual, de certa forma. E... de certa forma... você, como espectador, você sente o tempo passar. Você sente o tempo passar em seu próprio corpo. A maioria das pessoas que vai ao cinema e gosta do filme diz: “Nem vi o tempo passar. O tempo voou.” Esse, supostamente, é um bom filme. Mas acho que, quando você não vê o tempo passar, estão roubando 1:30h, 2h da sua vida. Porque a única coisa que temos na vida é tempo. Nos meus filmes, você está ciente de cada segundo que se passa. Através do seu corpo. Então... de certa forma, você está encarando a si mesmo, porque tentamos nos divertir o tempo todo durante a vida para esquecer o tempo, porque ele nos deixa ansiosos ou seja lá o que for. Mas é a única coisa que você tem: tempo.

sexta-feira, janeiro 13, 2012

Adeus, Primeiro Amor (Mia Hansen-Love, 2011)



O Fábio Andrade, da Revista Cinética, acertou em cheio na sua resenha de Adeus, Primeiro Amor (2011), de Mia Hansen-LØve:

“Em dado momento, quando o trauma do primeiro rompimento começa a ser esgarçado pela passagem do tempo e uma primeira nasga de luz parece apontar no fim do túnel para Camille (Lola Créton), seu então professor Lorenz (Magne- Havard Brekke) faz um desenho na parede e define o mundo: “A água é controlada, mas ela é livre”. Há, nesta cena, mais do que um simples conselho arquitetônico; ela é, de fato, uma declaração de princípios da própria diretora que será repetida na canção “The Water”, de Johnny Flynn e Laura Marling, que fecha o filme: the water sustains me without even trying. Todo o exímio controle de Mia Hansen-LØve em seu terceiro filme vem justamente para criar a sensação de que ele é dirigido para parecer que dirige a si próprio, e o mesmo acontece com nossa fruição. O filme é controlado, mas é livre, inevitavelmente livre”.

O Fábio foi muito feliz na construção do seu texto (o trecho é só a introdução), extraindo o essencial do filme: o frescor, a leveza e uma sensibilidade raros de serem encontrados na produção atual. O amadurecimento paulatino, doloroso e sensível da jovem Camille encontra a representação perfeita na atriz Lola Créton. O enredo do filme abrange um período de aproximadamente dez anos e sua passagem é muito bem representada pelos cortes de cabelo da protagonista. Além disso, a sutileza da sua representação, que exige um esforço corporal da atriz (como usar o corpo para expressar a autoconfiança? ou ainda, como representar alguém que deixou de ser ingênua e passou a ser segura de si valendo-se apenas de gestos, postura e expressões faciais?), é um dos maiores trunfos do filme.

A escolha da profissão de Camille – arquiteta - é um bom exemplo do controle exercido pela diretora (acumulando também a função de roteirista do filme, ela é a responsável pela ocupação de sua protagonista – uma opção nada aleatória), não soa nem um pouco forçado, e de quebra, serve perfeitamente ao propósito do filme – causa essa sensação de liberdade e espontaneidade que fundamentou o texto do Fábio Andrade. Enquanto Sullivan (Sebastian Urzendowsky), seu primeiro namorado (o do título), projeta na viagem para a América do Sul todas as suas expectativas de crescimento e amadurecimento (descobertas, experiências de vida), a jovem Camille, ao passo que aguarda o retorno de Sullivan, encontra na arquitetura a melhor maneira de se relacionar com o mundo. Na perspectiva dela, por meio dessa profissão ela é capaz de criar o seu próprio espaço, modificá-lo ou alterá-lo ao seu bel prazer (que não deixa de ser uma das habilidades deste profissional). É o jeito que ela encontra pra se auto-afirmar, pra ser dona de si mesma.

Duas observações: 1. as músicas selecionadas para a trilha sonora são impecáveis e se fundem perfeitamente às imagens (em especial “Volver a los 17”, de Violeta Parra e “The Water”, de Johnny Flynn e Laura Marling) e 2. as comparações com Eric Rohmer são muito bem fundadas.

segunda-feira, janeiro 02, 2012

Como responder a um comentário (Inácio Araújo)


Com quase um ano de atraso, suponho que todo mundo interessado em cinema já deva ter lido o post do Inácio Araújo publicado em 31 de janeiro de 2011, intitulado “Filmes que ninguém compreende”. Mesmo sendo pouco provável (já que estamos falando de um dos melhores críticos brasileiros, senão o melhor), não duvido que para alguns leitores (dos poucos que visitam esse espaço) o texto ainda seja inédito.

O Filipe Furtado fez uma recapitulação das leituras favoritas de cinema em 2011 e citou o tal post do Inácio entre eles - só assim pude relembrá-lo. Trata-se de uma resposta pública a um comentário postado no blog do crítico da Folha de S.Paulo referindo-se à sua análise do filme Tio Bonmee, que pode recordar suas vidas passadas (Apichatpong Weerasethakul, 2010). Lembro-me que na ocasião eu nem havia visto o Tio Bonmee ainda - o que não diminui em nada o seu impacto.

Na época eu quase reproduzi o texto aqui, mas o tempo foi passando e eu acabei me esquecendo de publicá-lo (e o que é pior, havia me esquecido de que já o lera).

Caso ninguém o aproveite, ao menos servirá para que eu possa consultá-lo sempre que for preciso.

---------------------------------------

Não sei como alguém pode enxergar tanta coisa no filmeco de Apichtapong. Fiz a besteira de assisti-lo e não aguentei ficar até o fim. E olhe que entrei “na ponta dos pés”. Por que será que é tão difícil para um crítico de cinema dizer que um filme ruim, de um diretor renomado, é apenas um filme ruim? Nota-se um certo mal-estar em Inácio Araújo ao dizer que não é fanático pelo diretor e que é difícil dizer se esse filme mereceu a Palma de Ouro. Difícil por que? Falar de animais, pássaros e macacos-fantasmas ao invés de dizer o óbvio? Ora, tenha paciência! O filme de Apichtapong lembra os de um outro embuste chamado Abbas Kiarostami, um diretor chatíssimo mas com fama de “profundo”. E depois ainda falam mal do cinemão de Hollywood…
Começo por esse comentário, feito recentemente. Não importa quem o fez. Retrata uma atitude muito freqüente no espectador eu diria deste século.
Não sei como alguém pode enxergar tanta coisa no filmeco de Apichtapong.
Ou seja: só o que eu vejo pode ser visto. Sou o centro do mundo. Qualquer entendimento que não o meu é falso ou de má-fé.
Eu queria dizer que, no caso do cinema, esse “euísmo”, para usar o termo de Celine a respeito dos artistas, essa atitude não é assim tão pessoal: ela foi cuidadosamente construída como um antiintelectualismo fim de século, que confere ao sujeito a ilusão de que só o imediatamente compreensível a seus olhos pode ser apreciado.
Nota-se um certo mal-estar em Inácio Araújo ao dizer que não é fanático pelo diretor e que é difícil dizer se esse filme mereceu a Palma de Ouro. Difícil por que? Falar de animais, pássaros e macacos-fantasmas ao invés de dizer o óbvio? Ora, tenha paciência.
Que mal estar? Com a mesma presteza com que despacha um filme ele entende que pode, no seu absolutismo personalista, me atribuir estados de espírito. Ora, o que eu disse é cristalino e não vou nem explicar. Está lá. O misterioso, o incompreensível, no caso, é a frase seguinte: “falar de animais, pássaros e macacos-fantasmas ao invés de dizer o óbvio?”. Ok. O que é óbvio? Por que não se pode falar de pássaros ou animais? Existe alguma lei proibindo? E o que há de errado com macacos-fantasmas? Centenas de filmes nos trazem fantasmas, por que por uma vez eles não poderiam ser macacos? O que tem contra macacos?
E será que a Fera de “A Bela e a Fera” é tão diferente desse macaco? E será que o ogro do Shrek é também incompreensível? Ou será que ele “diz o óbvio”? Ah, será que ele é “apenas” uma fantasia? Ok. Mas porque o macaco-fantasma não pode ser? Por que pode haver aparições em “Além da Vida”, digamos, mas não aqui? Um é “óbvio” e o outro não? Bem, nesse caso, será “óbvio” o que acontece em “A Origem”, por exemplo, tido e havido como o fenômeno intelectual do século pelos adeptos do “dizer o óbvio”. Que dizer de pessoas que entram e saem de sonhos como se sonhos fossem um supermercado? É “óbvio”? É mais compreensível do que um macaco-fantasma, por exemplo?
O filme de Apichtapong lembra os de um outro embuste chamado Abbas Kiarostami, um diretor chatíssimo mas com fama de “profundo”. E depois ainda falam mal do cinemão de Hollywood…
Passemos pelo fato de que Apichtapong não tem nada a ver com Kiarostami. O passo seguinte dessa operação consiste em dizer: se eu não entendo esse objeto absurdo colocado à minha frente, mais ninguém entende. Não é que me faltam elementos para entendê-lo. É que ele só pode ser “um embuste”. Como o cara que diante do quadro abstrato recusa-se a compreender que ali exista algum tipo de raciocínio, de continuidade. Ele diz: o meu filho faz igual.
O passo seguinte dessa operação mental consiste atribuir falsidade ao outro, ao leitor que eventualmente sinta prazer diante desse objeto incompreensível, tortuoso, portanto monstruoso, que deve ser objeto de destruição, não de entendimento – já que embustes só podem ser entendidos como tal. É como dizer: se eu não senti prazer diante disso, ninguém sentiu. Quem diz que sentiu está, claro, mentindo. O Inácio mente, está constrangido de dizer isso ou aquilo, etc.
Aí entramos num mundo conspiratório que envolve o festival de Cannes, o júri de Cannes, o distribuidor do filme, os críticos e espectadores que gostaram do filme. Eles formam uma corrente de pedantes que, como numa conspiração, parecem trocar senhas, sinais secretos, apenas para desorientar o gosto pelo “óbvio”. Óbvio que nem é tão óbvio assim, como a gente viu no caso de “A Origem”. Ou que pode ver no caso de “Benjamin Button”: o que há de óbvio em alguém nascer centenário e morrer nenê? Ou em… Enfim, talvez o mundo não seja tão óbvio assim.
Faltava a palavra inevitável: chatíssimo. Essa espécie de condenação à morte simbólica. Há duas maneiras de um filme ser chato: ou porque nós não o compreendemos ou porque o compreendemos demais. Talvez o nosso amigo do óbvio se divirta à beça vendo, digamos, “De Pernas para o Ar”. Lhe parecerá perfeitamente compreensível que uma mulher frígida descubra a sexualidade não fazendo psicanálise ou procurando um outro parceiro (o marido a abandonara, no mais): parece perfeitamente óbvio que ela descubra a sexualidade com um vibrador, que se sinta realizada abraçando um coelho movido a pilha etc. Isso lhe parece compreensível, assim como os de “A Origem”, até porque são filmes que vêm com bula, sobretudo o segundo, isso é, com essas explicações prévias que os estúdios destilam pela mídia.
E para esses leitores o único conhecimento aceitável é o das bulas de remédio. E, como se trata de fenômenos de conhecimento, é bem mais fácil imaginar que não existe desconhecido, que não existem campos a desbravar. Apenas o óbvio. O mundo já está decifrado. Quem não professa o óbvio é, obviamente, um impostor. O quê? Freud com o inconsciente? Um impostor. Picasso? Não sabia pintar, era um idiota, por isso pintava tudo torto. Godard? Nem se fala. Esse é tão óbvio que é melhor nem falar. Beckett? Como não sabia desenvolver histórias, inventava essas coisas que não vão nem pra frente nem pra trás. E todos esses, claro, contam com o beneplácito dos intelectuais, dos críticos, esses parasitas infatigáveis, sempre dispostos a dizer que se deleitaram com essas monstruosidades, mas que elevam aos céus esses impostores tipo Manoel de Oliveira, Antonioni, David Lynch… Que não compreendem que só queremos ver “uma boa história”.
Ora, o que são boas histórias? A do Homem-Aranha? Eu adoro. Mas não me parece nada “óbvio” um cara que atravessa uma cidade pulando com sua teia. O que há de óbvio nisso? Francamente, o macaco-fantasma do Apichtapong às vezes me parece bem mais acessível. Ah, mas o Homem-Aranha é cheio de aventura, não é chato. Concordo. Mas por que todo filme teria de ser cheio de incidentes, aventuras? Será que não podemos admitir – já não digo apreciar, mas ao menos admitir – que existam outras formas de narrar, outras histórias a contar que não aquelas “óbvias”, isto é, que nos parecem familiares por uma razão ou outra?
Ou seja: por que devemos exigir que o cinema nos traga sempre “o óbvio”, aquilo que já sabemos ou pensamos saber previamente? É claro que isso também tem sua função. Mas o mundo não pode ser feito apenas de faroestes, ou dramas, ou comédias. Ele precisa ser feito de faroestes e dramas e comédias e muitas coisas mais.
E depois ainda falam mal do cinemão de Hollywood…
Quem fala mal, cara-pálida? O fato de gostar de Godard ou Apichtapong ou Kiarostami não nos impede de gostar de Hollywood, ou ao menos de James Cameron, de John Carpenter, de Clint Eastwood, de Coppola (pai e filha), de George Romero, de Wes Craven, de Brian de Palma, de Martin Scorsese, de Paul Schrader, de Joe Dante…
Porque esse é o último estágio da operação (pode ser o primeiro): atribuir ao outro algo que não lhe passa pela cabeça, para melhor poder delirar em cima disso.
Para quem, sinceramente, pretende entender alguma coisa quando entra num cinema, que seja adolescente ou inculto ou o que for, eu diria que o que não compreendemos é o que ainda temos a compreender, a desbravar, a aprender. Ninguém nasce sabendo. Vivemos para aprender. Não é vergonha procurar compreender as coisas.
Para esses arremates de humanidade para quem a ignorância é o estágio máximo de humanidade, bem, segue um boas festas e um “não tem papo” à moda do Jairo Ferreira.
Chega por enquanto. Isso é uma introdução a duas ou três coisas que quero escrever a respeito de “Os Residentes” e “Santos Dumont – Pré-cineasta”, exibidos em Tiradentes.