Na madrugada da última terça feira o canal Futura
brindou o telespectador com um filme pra lá de inusitado: o programa Cine Conhecimento exibiu um das
obras-primas do diretor tailandês Apichatpong Weerasethakul, Tropical Malody (2004) - traduzido para
o português como Mal dos Trópicos.
Essa programação inesperada me proporcionou o segundo encontro com o universo
panteísta de Joe (Apichatpong adotou esse apelido pra si ao reconhecer a
dificuldade que os ocidentais enfrentavam para pronunciar seu nome), o primeiro
havia sido com o filme vencedor da Palma de Ouro em Cannes no ano retrasado, Tio Boonme, que pode recordar suas vidas
passadas (2010).
O filme é claramente dividido em duas partes, e
muito embora elas sejam distintas, a ponto de constituírem praticamente duas
obras diferentes, quando somadas, exercem um curioso efeito sinergético sobre o
resultado final - o todo é maior do que a soma das partes. O crítico Sergio
Alpendre ao manifestar seu apreço pelo trabalho alerta que "a segunda parte
pode afastar o espectador, ou conquistá-lo de modo irreversível". Assim
como se deu com ele, eu também fui fisgado pela segunda parte do filme.
Apesar de a primeira parte ser mais convencional -
respeitando uma estrutura narrativa mais acessível, até mesmo comercial - ela
não é desprovida de interesse; na verdade, é ela que planta as sementes que
irão brotar na segunda parte do filme.
Joe realiza um tratado sobre o amor impossível em duas versões: a primeira é mais banal,
reconhecível, ordinária, ocupa-se da encenação de um romance entre dois jovens
do mesmo sexo na Tailândia contemporânea; a segunda é mais extraordinária,
mítica, figurada, explora a atração entre um tigre (na verdade, um xamã) e um
humano em um período indefinido - um amor que nunca será consumado em virtude
da incompatibilidade entre os seres, lembrando bem vagamente O Feitiço de Áquila (1985), de Richard
Donner. Enquanto neste último o enredo se desenrola claramente na Idade Média,
na versão folclórica de Joe é mais difícil precisar o tempo da ação - mesmo se
valendo de gravuras remotas (cravadas em pedras ou algo do tipo) pra
contextualizar a "trama" (inspirada num mito de origem longínqua), o
soldado atraído pelo tigre aparece trajando um figurino bélico moderno.
Esse anacronismo temporal (que dificulta ordenar a
sequência dos fatos) causa uma sensação de estranhamento no espectador, ainda
que seja ele que estabeleça a ponte entre a primeira e a segunda parte do filme
- Joe recorre à mitologia antiga (segunda parte) pra validar sua visão
contemporânea dos relacionamentos (primeira parte). Ambas as relações de cada
uma das partes do filme estão fadadas ao fracasso seja pela natureza dos seres
envolvidos, seja pela convenção social (que, no caso em questão, leva ao
preconceito). A prova desta última afirmação se encontra na homofobia sugerida
no término da primeira versão: logo após o momento mais íntimo que
testemunhamos entre os protagonistas, em que um deles beija (ou melhor, lambe)
a mão do outro, o praticante some no escuro enquanto o seu parceiro sobe na
moto para um passeio noturno; ao cruzar a avenida de uma via urbana montado em
seu veículo, assistimos do seu ponto de vista o espancamento de um transeunte
não identificado – a edição sugere que seja o seu amante.
Feita essa breve apresentação de Mal dos Trópicos, vamos ao que de fato
me chama a atenção no cinema de Apichatpong. É impressionante a maneira como o
diretor faz a captação de imagem e de som nas tomadas da mata ou floresta. A
capacidade de envolver o espectador como se ele estivesse presente nesse
ambiente é única. Mesmo adotando um ritmo de edição mais contemplativo, sem
diálogos e ação por parte dos personagens, é impossível desgrudar os olhos da
tela - e olha que a parte ambientada na mata, a segunda, tem uma hora de
duração. Estamos praticamente diante de um filme mudo - e dos bons. Toda a mise-en-scène de Joe valoriza esse
espaço como se ele estivesse sendo explorado pela primeira vez, de forma que seus
personagens refletem essa intenção. Esse senso de descoberta atinge o público
em cheio enriquecendo a experiência da fruição – inclusive, validando os comentários
daqueles que enxergam em seus filmes uma verdadeira experiência sensorial. A
mata ou floresta nunca foi tratada com tamanho respeito e reverência e a
Natureza, de tão surrada e agredida que vem sendo, tem a rara oportunidade de
apropriar-se de todos os predicados possíveis e prováveis que um dia já lhe
couberam - e que talvez sempre tenham sido seus, mas ultimamente lhes foram todos confiscados.
Já ando a namorar esse filmes há algum tempo. Tenho de ve-lo juntamente com o recente Uncle Boomee.
ResponderExcluirAbç
Tenho certeza que irá se surpreender. Prepare-se!
ExcluirTenho que ver esse filme, Rodrigo. Ótima resenha!
ResponderExcluirO Falcão Maltês
Obrigado Nahud. E aproveite para ver os outros do Apichatpong, são muito bons também. Abraço.
ExcluirSó soube que estava sendo exibido no Canal Futura quando estava quase terminando, na madrugada deste domingo. Será que vão reprisar?
ResponderExcluirSérgio, me parece que não (pelo menos no curto prazo). Eu não conhecia a programação do Cine Conhecimento, mas agora vou ficar mais atento. Outro canal que tem nos dado boas opções é a Cultura, especialmente documentários.
ExcluirCara, obrigado pela visita lá no Espectador Voraz. Não conhecia seu espaço, mas já fiquei fã e vou linkar na minha página. Falam muito bem desse filme. Do Apitchapong, vi Tio Bonmee e gostei bastante, apesar de não ter um entendimento amplo da obra, talvez pelas ideologias e religiosidades. Parabéns pelo espaço. Grande Abraço.
ResponderExcluirValeu pela visita Celo, vamos trocar figurinhas. Seja sempre bem vindo. Gde Abraço.
ExcluirParabéns pelo texto.. é bom ver que tem gente por aqui que tbm está interessada na forma como os orientais exergam o mundo. Apichatpong arrasa, esse e o Tio Boonme levaram embora o meu coração.
ResponderExcluirBruna, compartilho do seu entusiasmo pelos filmes de Apichatpong. São difíceis de esquecer! Valeu pela visita.
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