quinta-feira, maio 03, 2012

Um Método Perigoso (David Cronenberg, 2011)



Pra variar, o José Geraldo Couto escreveu um formidável texto a respeito de Um Método Perigoso em seu blog. Transcrevo-o abaixo.

Por José Geraldo Couto

“Meu sentimento é o de que o primeiro fato da existência humana é o corpo”, disse David Cronenberg numa entrevista que me concedeu em 1999. E explicou: “Tudo o que fazemos e experimentamos é mediado pelo corpo. Somos nosso corpo, embora às vezes esqueçamos-nos disso. (…) Mesmo quando achamos que estamos sendo muito cerebrais ou intelectuais, separados das coisas físicas e orgânicas, trata-se de uma ilusão. O cérebro também é um órgão, não? Para mim, a arte é sempre uma experiência carnal”.

Essas palavras me vieram à memória enquanto eu assistia ao extraordinário Um Método Perigoso. O filme me pareceu a realização cabal das ideias de Cronenberg. O diretor canadense chegou a seu centro, por assim dizer, colocando em cena os dois principais pioneiros da psicanálise, Freud (Viggo Mortensen) e Jung (Michael Fassbender), com uma mulher no meio: Sabina Spielrein (Keira Knightley).

O corpo como campo de batalha

As imagens iniciais do filme, ainda na sequência dos créditos, são eloquentes, e balizam tudo o que virá a seguir. No princípio, o verbo: palavras manuscritas e datilografadas sobre o papel. Depois, o corpo convulso de uma mulher que se bate contra o vidro de uma carruagem. Primeiro a escrita, a tentativa de expressar o intelecto e ordenar o caos. Em seguida, o próprio caos, o indomável, o incompreensível.

Todo o filme será um desdobramento desse embate: de um lado, as forças vivas e por vezes obscuras da carne; de outro, a busca pela compreensão e controle dessas forças pelo discurso lógico, em última análise pela escrita.

Freud e Jung são as mentes em busca da resposta. Sabina é a pergunta. Claro que, a partir de certo momento, também ela busca o esclarecimento, mas seu corpo – incluindo o cérebro, órgão mais nobre – segue sendo o campo de batalha central desse drama terrível.

Um drama que se desenrola quase em surdina, em salas impecavelmente limpas, entre mulheres de vestidos imaculados e homens de barbas aparadas com esmero. Nesse cenário de ordem e assepsia, em que os próprios lagos, bosques e jardins parecem traçados com elegância e discrição, a fúria do corpo, quando emerge – em espasmo, em sangue, em lágrima –, assume um efeito tremendo.

Caminhos opostos

Se, diante dos impasses da psicanálise, Freud e Jung trilham caminhos opostos – o primeiro se aferrando a um rígido parâmetro “científico”, o segundo buscando outras fontes menos ortodoxas de saber –, Cronenberg e seu roteirista, Christopher Hampton, não chegam a tomar partido. Ambos, mestre e discípulo, parecem destinados à frustração. Ao expor as fraquezas de cada um – o desejo de controle de Freud, a pusilanimidade de Jung –, o filme não os condena, apenas os mostra como demasiado humanos. Não existem indivíduos acima das contradições da espécie. “Só o médico ferido pode curar”, diz Jung a certa altura.

Transformar a busca intelectual num drama eletrizante, quase um épico entre quatro paredes, não é tarefa fácil, e nesse aspecto Um Método Perigoso remete a outro filme igualmente notável, embora totalmente diferente, acerca dos inícios da psicanálise: Freud, Além da Alma (1962), em que Montgomery Clift encarna com brio o jovem Sigmund. Aliás, seria muito oportuno rever agora, à luz de Cronenberg, essa obra subestimada de John Huston, que está disponível em DVD.

A minha singela contribuição

Além da composição de Sabina Spielrein por Keira Kneightley, o Otto Gross de Vincent Cassel também reforça a ideia do corpo como reduto do caos e do incompreensível. Ao contrário do que se passa com seus pares, Freud e Jung, em Otto, que era um psiquiatra psicótico, predomina a emoção, a intempestividade e a inconsequência. Essas características não se manifestam apenas em suas atitudes e maneira de pensar, mas também no seu jeito de vestir, de caminhar e no zelo (ou falta dele) com a própria imagem (a barba sempre por fazer). Os corpos incongruentes de Sabina e Otto são dois óvnis que pairam sobre a frieza acadêmica e calculada de Freud e Jung. Ao mesmo tempo em que influenciam as descobertas científicas da psiquiatria (no sentido de contribuir para o seu avanço), estão sempre a recordar os pesquisadores da sua (involuntária) condição humana – eles forçam os dois gênios a deixarem a zona de conforto em que se encontram (a condição de pesquisador lhes permite gozar de uma falsa sensação de domínio e equilíbrio sobre os seus “eus”) para experimentar a dor, a inveja e a emoção, que seus estudos procuram racionalizar.

Só um recuo preciso no tempo, no exato momento em que a psicanálise tomava corpo, pra devolver a essa ciência a importância monumental de suas controversas questões. “Estamos falando de personagens que conversam sobre ânus e vagina à mesa do almoço”, lembrou o Fábio Andrade na sua crítica para a Revista Cinética. “Pois o que Um Método Perigoso consegue captar de raro – e com integridade ainda mais valiosa – é igualmente a profunda seriedade e o franco ridículo de tudo que move suas personagens – e, consequentemente, o próprio diretor”.

O registro do psicanalista que impera nos dias de hoje está bem representado em Habemus Papam (Nanni Moretti, 2011). Nele, um novo pontífice (Michel Piccoli) é tomado por uma dúvida repentina e inesperada, se recusando a assumir o papado. Diante disso, um psicanalista, interpretado com humor refinado pelo próprio Moretti, é chamado às pressas para tratar da questão. Não dá pra levar a sério – o psiquiatra, não o Papa.

6 comentários:

  1. Um belo filme. Só não gosto da atuação de Keira.

    O Falcão Maltês

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    1. Nahud, embora eu seja bastante insatisfeito com as atuações de Keira Kneightley, eu a aprovaria neste filme. No meu ponto de vista, a "chatice" da personagem cai como uma luva pra ela. Abraço

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  2. Este não bem o Cronenberg gráfico a que estavamos habituados. Para mim é o filme com menos dedo de Cronenberg, mas não deixa de ter o seu valor.
    Tens aqui um espaço interessante.

    Cumprimentos

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    1. Meu caro, concordo contigo que este filme não tem "o rótulo Cronenberg" tão evidente, entretanto, ele aborda um tema recorrente na obra do diretor canadense: a psicanálise (e o sexo, por consequência). Pelo trailer que vi de COSMÓPOLIS, parece que seremos surpreendidos (mais uma vez).
      Obrigado pelo elogio e seja sempre bem vindo.

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  3. Um filme onde a psicologia e hipnose está presente em seu apogeu. Definitivamente uma produção recomendado para entender alguns aspectos desta ciência. Esta série O Hipnotizador são dois produção em um tema semelhante encontrada em meu favorito. Eu recomendo.

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