Pra
variar, o José Geraldo Couto escreveu um formidável texto a respeito de Um Método Perigoso em seu blog.
Transcrevo-o abaixo.
Por
José Geraldo Couto
“Meu sentimento é o
de que o primeiro fato da existência humana é o corpo”, disse David Cronenberg
numa entrevista que me concedeu em 1999. E explicou: “Tudo o que fazemos e
experimentamos é mediado pelo corpo. Somos nosso corpo, embora às vezes esqueçamos-nos
disso. (…) Mesmo quando achamos que estamos sendo muito cerebrais ou intelectuais,
separados das coisas físicas e orgânicas, trata-se de uma ilusão. O cérebro
também é um órgão, não? Para mim, a arte é sempre uma experiência carnal”.
Essas palavras me
vieram à memória enquanto eu assistia ao extraordinário Um Método Perigoso. O
filme me pareceu a realização cabal das ideias de Cronenberg. O diretor
canadense chegou a seu centro, por assim dizer, colocando em cena os dois
principais pioneiros da psicanálise, Freud (Viggo Mortensen) e Jung (Michael
Fassbender), com uma mulher no meio: Sabina Spielrein (Keira Knightley).
O corpo como campo
de batalha
As imagens iniciais
do filme, ainda na sequência dos créditos, são eloquentes, e balizam tudo o que
virá a seguir. No princípio, o verbo: palavras manuscritas e datilografadas
sobre o papel. Depois, o corpo convulso de uma mulher que se bate contra o
vidro de uma carruagem. Primeiro a escrita, a tentativa de expressar o
intelecto e ordenar o caos. Em seguida, o próprio caos, o indomável, o
incompreensível.
Todo o filme será
um desdobramento desse embate: de um lado, as forças vivas e por vezes obscuras
da carne; de outro, a busca pela compreensão e controle dessas forças pelo
discurso lógico, em última análise pela escrita.
Freud e Jung são as
mentes em busca da resposta. Sabina é a pergunta. Claro que, a partir de certo
momento, também ela busca o esclarecimento, mas seu corpo – incluindo o
cérebro, órgão mais nobre – segue sendo o campo de batalha central desse drama
terrível.
Um drama que se
desenrola quase em surdina, em salas impecavelmente limpas, entre mulheres de
vestidos imaculados e homens de barbas aparadas com esmero. Nesse cenário de
ordem e assepsia, em que os próprios lagos, bosques e jardins parecem traçados
com elegância e discrição, a fúria do corpo, quando emerge – em espasmo, em
sangue, em lágrima –, assume um efeito tremendo.
Caminhos opostos
Se, diante dos
impasses da psicanálise, Freud e Jung trilham caminhos opostos – o primeiro se
aferrando a um rígido parâmetro “científico”, o segundo buscando outras fontes
menos ortodoxas de saber –, Cronenberg e seu roteirista, Christopher Hampton,
não chegam a tomar partido. Ambos, mestre e discípulo, parecem destinados à
frustração. Ao expor as fraquezas de cada um – o desejo de controle de Freud, a
pusilanimidade de Jung –, o filme não os condena, apenas os mostra como
demasiado humanos. Não existem indivíduos acima das contradições da espécie.
“Só o médico ferido pode curar”, diz Jung a certa altura.
Transformar a busca
intelectual num drama eletrizante, quase um épico entre quatro paredes, não é
tarefa fácil, e nesse aspecto Um Método Perigoso remete a outro filme igualmente notável, embora totalmente diferente,
acerca dos inícios da psicanálise: Freud, Além da Alma (1962), em que Montgomery Clift encarna com brio o
jovem Sigmund. Aliás, seria muito oportuno rever agora, à luz de Cronenberg,
essa obra subestimada de John Huston, que está disponível em DVD.
A minha singela
contribuição
Além
da composição de Sabina Spielrein por Keira Kneightley, o Otto Gross de Vincent
Cassel também reforça a ideia do corpo como reduto do caos e do
incompreensível. Ao contrário do que se passa com seus pares, Freud e Jung, em
Otto, que era um psiquiatra psicótico, predomina a emoção, a intempestividade e
a inconsequência. Essas características não se manifestam apenas em suas
atitudes e maneira de pensar, mas também no seu jeito de vestir, de caminhar e no
zelo (ou falta dele) com a própria imagem (a barba sempre por fazer). Os corpos
incongruentes de Sabina e Otto são dois óvnis que pairam sobre a frieza
acadêmica e calculada de Freud e Jung. Ao mesmo tempo em que influenciam as
descobertas científicas da psiquiatria (no sentido de contribuir para o seu
avanço), estão sempre a recordar os pesquisadores da sua (involuntária)
condição humana – eles forçam os dois gênios a deixarem a zona de conforto em
que se encontram (a condição de pesquisador lhes permite gozar de uma falsa sensação
de domínio e equilíbrio sobre os seus “eus”) para experimentar a dor, a inveja
e a emoção, que seus estudos procuram racionalizar.
Só
um recuo preciso no tempo, no exato momento em que a psicanálise tomava corpo,
pra devolver a essa ciência a importância monumental de suas controversas
questões. “Estamos falando de personagens que conversam sobre ânus e vagina à mesa
do almoço”, lembrou o Fábio Andrade na sua crítica para a Revista Cinética.
“Pois o que Um Método Perigoso consegue
captar de raro – e com integridade ainda mais valiosa – é igualmente a profunda
seriedade e o franco ridículo de tudo que move suas personagens – e,
consequentemente, o próprio diretor”.
O
registro do psicanalista que impera nos dias de hoje está bem representado em Habemus Papam (Nanni Moretti, 2011). Nele,
um novo pontífice (Michel Piccoli) é tomado por uma dúvida repentina e inesperada,
se recusando a assumir o papado. Diante disso, um psicanalista, interpretado com
humor refinado pelo próprio Moretti, é chamado às pressas para tratar da
questão. Não dá pra levar a sério – o psiquiatra, não o Papa.
Um belo filme. Só não gosto da atuação de Keira.
ResponderExcluirO Falcão Maltês
Nahud, embora eu seja bastante insatisfeito com as atuações de Keira Kneightley, eu a aprovaria neste filme. No meu ponto de vista, a "chatice" da personagem cai como uma luva pra ela. Abraço
ExcluirEste não bem o Cronenberg gráfico a que estavamos habituados. Para mim é o filme com menos dedo de Cronenberg, mas não deixa de ter o seu valor.
ResponderExcluirTens aqui um espaço interessante.
Cumprimentos
Meu caro, concordo contigo que este filme não tem "o rótulo Cronenberg" tão evidente, entretanto, ele aborda um tema recorrente na obra do diretor canadense: a psicanálise (e o sexo, por consequência). Pelo trailer que vi de COSMÓPOLIS, parece que seremos surpreendidos (mais uma vez).
ExcluirObrigado pelo elogio e seja sempre bem vindo.
Um filme onde a psicologia e hipnose está presente em seu apogeu. Definitivamente uma produção recomendado para entender alguns aspectos desta ciência. Esta série O Hipnotizador são dois produção em um tema semelhante encontrada em meu favorito. Eu recomendo.
ResponderExcluirObrigado pela sugestão Paola. Vou procurá-la.
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