domingo, junho 24, 2012

Anjos do Arrabalde (Carlos Reichenbach, 1987)



Como deve ter sido com a maioria dos cinéfilos nos últimos dias, entre choros e lamentações cada qual saiu em busca de um filme de Carlos Reichenbach para assistir como forma de lhe prestar homenagem. Para alguns a sessão escolhida representou uma descoberta, para outros uma revisão e há ainda aqueles que o fizeram simplesmente para matar a incipiente saudade. Eu me satisfiz com uma cópia de Anjos do Arrabalde (1987), gravada o ano passado no Canal Brasil. O filme era inédito para mim. Mesmo desrespeitando o formato original da película (apresentado em 4:3, ao invés do 1.85:1), essa limitação não foi capaz de comprometer o trabalho do grande diretor.

Eu estava disposto a escrever alguma coisa a respeito do filme nesse post, mas encontrei um formidável texto de Andrea Ormond na internet que me desencorajou a fazê-lo. Embora eu esteja habituado a ler suas críticas na Revista Cinética, ainda não conhecia o seu blog no http://estranhoencontro.blogspot.com.br. Não dá pra ser muito melhor do que isso.

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Por Andrea Ormond

A cinematografia de Carlos Reichenbach requer um alerta permanente. Ao assistirmos a seus filmes cruzamos as fronteiras da Mira-Celi tropical, ilha em que Thomas Moore, Bakunin, Fuller, Godard e Reich reúnem-se para conversar. Têm, à sua direita, Luiz Sérgio Person – figura importante nos anos de formação do diretor –; à esquerda, A. P. Galante – produtor de muitos projetos. No meio de tudo, Reichenbach, cuja ânsia de fazer cinema é a peça de resistência de uma obra a ser ainda muito estudada.

Escolhi Anjos do Arrabalde: As Professoras (1987) para iniciar este trabalho de investigação, porque encontro nele uma ponte para a alma feminina, temática que já havia sido delineada anteriormente em Lilian M., Relatório Confidencial (1975) e é retomada em Garotas do ABC (2003). Entenda-se que o universo ficcional do criador não é dividido em fases estanques, as informações dialogam, e o critério que utilizo é meramente organizacional, de modo a facilitar a abordagem das personagens centrais de Anjos...: Dália (Betty Faria), Rosa (Clarisse Abujamra), Carmo (Irene Stefania) e Ana (Vanessa Alves).

Dália e Rosa são professoras do sugestivo “Colégio Estadual de 1o. Grau Luiz Sérgio Person”. O “arrabalde”, a periferia, em que vivem, está à margem da capital paulista, transformando-se em uma espécie de paróquia, na qual violência e primarismo são elementos constantes.

O primarismo é encontrado sob diversas formas. Nos trejeitos do advogado de porta-de-cadeia (Enio Gonçalves, Fausto de Filme Demência/1986), casado com a ex-professora Carmo; nas grosserias do delegado malandro (Carlos Koppa, ator da Boca, hoje na “A Praça é Nossa”) fissurado por Rosa; nos comentários maliciosos a respeito do lesbianismo de Dália, que, afinal de contas, não deveria ficar fazendo essas coisas na frente das crianças, desacostumadas com tanta pouca vergonha.

 A violência é, por outro lado, fonte de discussão do início ao fim da trama. Assistimos, já nos primeiros segundos, ao desfecho de um estupro, em que a vítima (Ana), largada no matagal, desmaia, e em seguida surgem os créditos de abertura. Afonso (Ricardo Blat), irmão problemático de Dália, drogado, é currado por traficantes, aumentando ainda mais a condição de ente enigmático, zumbi que finalmente deságua o desespero na belíssima cena em que procura os seios da irmã, em clara nostalgia edipiana.

Há uma qualidade naturalista no filme – “eu me sinto bem na periferia, aqui eu sinto cheiro de gente”, diz Carmona (Emilio di Biasi, Mefisto de Filme Demência). Ela é combinada às conhecidas epifanias, marcantes na trajetória do diretor.

Um simples final de semana na praia, por exemplo, é retratado com toques experimentalistas. O lúmpen tira foto, come frango, faz o ritual de praxe, mas a montagem acentua a estupidez do circo. Carmona, amante casual de Dália, funciona aqui como o bufão embriagado que em momento de catarse esbraveja contra todos. Convém lembrar que a rubrica de “Week-end” é colocada na tela para marcar este capítulo da ida ao litoral, ensejando uma evidente subversão dos filmetes comerciais que vendem a imagem das famílias felizes em temporada de férias. Por um instante imaginei ter visto ali perto, na mesma rua, Roberto Miranda (alter-ego do diretor) antes da chegada da espiã-jornalista, em A Ilha dos Prazeres Proibidos (1979).

O argumento original de Anjos do Arrabalde deve-se em parte ao que Reichenbach ouvia de Ligia, sua esposa – dentista da rede de saúde pública, aparece rapidamente em uma ponta no filme, como a dentista do colégio. A brutalidade demonstrada nas telas é, portanto, fruto de empirismo e apuramento estético, que transforma em obra de arte o cotidiano da baixa classe-média.

No universo autoral de Reinchenbach encontramos, ainda, uma nítida aproximação entre cinema e literatura, característica que tanto fascina quanto pode passar despercebida para a grande massa de espectadores. Em “Ilha...” ela está mais do que evidente, páginas e páginas de diálogos são por vezes transcrições literais de autores cuidadosamente escolhidos. Se na Ilha.... há menção a viagens anárquicas e libertadoras, em Anjos... concentro-me numa cena que revela, com extrema sutileza, o grau de culpa e morbidade de Rosa. À beira do suicídio, acabou de ser abandonada por Soares (José de Abreu) – esquizo diretor do colégio, com quem tivera um caso.

A aluna lê em voz alta com o livrinho em punho, Rosa repete o texto em solilóquio, corta lentamente os pulsos com uma navalha, é vista – alguns quadros depois – à beira de um precipício, numa aparição fantasmagórica. Ressalte-se que a tensão criada pelo autor nesse contexto é importantíssima, fazendo emergir símbolos claramente contraditórios, envolvendo punição, morte, vazio, de um lado; e, de outro, amor, infância e suposta doçura das “tias” em sala de aula.

Um aspecto a ser, por fim, sublinhado em Anjos do Arrabalde é o elenco. Vanessa Alves, em especial, como a psicótica manicure, abandonada pelo pai, violentada, perdida, traz uma dimensão extra ao filme. O olhar é distante, a fúria do corpo, diria João Gilberto Noll, torna-a uma possessa, caminhando pelas ruas estreitas do bairro. Em Anjos do Arrabalde a tragédia dos personagens não é contingenciada, ela é marca do filme, anda à solta. E nela reside a premissa de torná-los, indiscutivelmente, humanos.

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Vale dar uma conferida no texto do Daniel Caetano também. A homenagem mais criativa de todas - A Prova dos Nove, 20/06/2012.

2 comentários:

  1. Desculpe-me pelo sumiço. Estava enrolado com o lançamento de dois livros.Mas já estou de volta! Belo filme de Carlão.

    O Falcão Maltês

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