O Sol Brilha na Imensidão é
menos uma mensagem que a transposição poética de certo realismo social.
Jean Mitry
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Como Depois do Vendaval (John Ford, 1952), O Sol Brilha na Imensidão é
uma comédia de costumes, não raro imbuída de elementos da sátira, mesmo ao
acercar-se da realidade social e, otimística e pertinentemente, envolvê-la em
sua poesia. A Irlanda verdejante e semi-elegíaca de Depois do Vendaval cede lugar à pequena cidade de Fairfield,
no interior do Kentucky, onde se desenrola a ação, anos depois de terminada,
mas não esquecida pelos “veteranos”, a Guerra Civil. Um desses veteranos é o
juiz Priest, homem conservador e bom, que, à frente de sua “brigada”, relembra
e cultua os feitos militares dos bravos de Fairfield, tão sacudidos na velhice
quanto o foram no campo de batalha – e que está aguardando o pleito que
decidirá entre a sua permanência no posto e a eleição de um candidato moço, que
faz questão de exibir o seu dinamismo por meio de uma propaganda “moderna”, tão
estridente quanto demagógica.
O filme é o relato sempre fascinante do que ocorre nos dias que
precedem a eleição, quando a generosidade e o sentimento de justiça de Priest o
vão impelindo a tomar as atitudes mais impopulares, como impedir o linchamento
de um negro acusado de estupro de uma menina branca e, a seguir, receber em sua
residência a dona do prostíbulo local, que vem solicitar-lhe ajuda no que diz
respeito ao enterro cristão, a que também tinha direito uma prostituta. O
sentimentalismo que se descobre nessa história é o mesmo que existe, ora
ultrapassado pelo sentido épico, ora controlado pela “malícia irlandesa”, em
quase todas as obras de Ford. O cineasta não teme, nem o repele – até o
aprecia. E sabe fazer com que também o espectador o aprecie.
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Há muitas cenas dignas de menção – a da sessão do tribunal que o juiz
transforma em sessão de “Dixie”, acompanhando com uma corneta o banjo do réu
(U.S.) e a gaita de seu criado (Fetchit); a chegada da mãe de Lucy Lee ao povoado.
Mas as duas sequências mais trabalhadas, ambas excepcionais, são: 1) a do
pânico dos negros ante a aproximação da turba de linchadores brancos, na qual Ford
usa, numa sucessão cadenciada de close-ups, cinco negros apenas, que lhe dão
dez imagens – estabelecendo com a décima primeira, que focaliza Fetchit
correndo, a ligação do incidente com o juiz Priest, que, advertido pelo criado,
vai postar-se à porta da cadeia, onde enfrenta sozinho a multidão enfurecida;
2) a do enterro da prostituta, que corta a rua principal de Fairfield,
interrompendo o comício do candidato renovador, com Priest acompanhando à pé o
carro fúnebre, e, atrás, na carruagem de aluguel do preto Zac (Clarence Muse),
Mallie Crump e suas “moças”, todas de luto. Ao escândalo que o fato provoca,
sucede o inesperado: o general da União (Henry O’Neill) entra no cortejo, ao
lado de Priest, e, pouco a pouco, a fila se vai tornando maior, com a
solidariedade dos “veteranos”, dos negros, da respeitável Mrs. Ratchitt (Jane
Darwell). É uma sequência memorável, pontilhada de um humor que conduz a
platéia da lágrima ao riso – e que prossegue na igreja, onde o juiz, assumindo
o lugar do pastor, relê o trecho bíblico da mulher adúltera.
Antônio Moniz Vianna