Antes mesmo do merecido reconhecimento
internacional de O Som ao Redor, que
culminou com a sua presença na lista dos dez melhores filmes de 2012 do New York Times elaborada pelo crítico A.
O. Scott, a expectativa para a tão esperada estreia de Kléber Mendonça Filho em
longas metragens, após uma bem sucedida carreira em curtas, já era altíssima. A
despeito do acanhado prestígio dos curtas metragistas no meio cinematográfico,
a sequência magnífica de trabalhos de Kléber já prenunciava a formação de um
cineasta de mão cheia: Vinil Verde (2004),
Eletrodoméstica (2005), Noite de Sexta, Manha de Sábado (2007) e
Recife Frio (2009) representam,
agora, um privilegiado cartão de visitas à obra em construção desse cineasta,
que exerceu o ofício de crítico antes de assumir o papel de roteirista, diretor
e produtor de um filme. Como se vê, foram uns bons anos de treinamento antes de
entrar em campo com o time completo – detalhe: pra dar show de bola.
O resumo do enredo proposto pelo
IMDB, que representa a quintessência do olhar estrangeiro para o nosso produto,
dá bem conta do recado: Life in a
middle-class neighborhood in present day Recife, Brazil, takes an unexpected
turn after the arrival of an independent private security firm. The presence of these men brings a sense of safety and a good deal of
anxiety to a culture which runs on fear. Meanwhile, Bia, married and mother of
two, must find a way to deal with the constant barking and howling of her
neighbor´s dog. A slice of “Braziliana”, a reflection on history, violence and
noise. Essa
“reflexão da violência” exercitada pelo diretor evita a todo o custo a sua espetacularização,
bem como o grafismo comumente associado ao seu emprego. A violência não dá as
caras efetivamente; sua manifestação é silenciosa, embrenhada, contida, mas nem
por isso menos danosa – ela sobrevive nas entrelinhas. Ela corrói as entranhas das
diversas relações pessoais que o filme cultiva, sem que a vertente panfletária
do discurso se imponha. Nesse contexto, o gesto mais singelo não raro torna-se o
mais carregado de nocividade.
Essa abordagem implícita da
violência, construída quadro a quadro num clima crescente de tensão que nunca
se converte num efetivo abuso de força, o aproxima do terror sugestivo temperado
com ingredientes fantásticos, muito bem explorados em outro exemplar brasileiro
bastante elogiado pelo próprio Kléber: Trabalhar
Cansa (2011), de Juliana Rojas e Marco Dutra. Os dois filmes não partilham
apenas o mesmo formato, encerrado no “gênero cinematográfico”, mas também o
“tema”, ao abordar “uma época que tem pintado o Brasil como país que passa por
uma virada econômica, onde festejam-se avanços na qualidade de vida e sua capacidade
de gerar riqueza”, conforme passagem do texto de Kléber para o filme da dupla
publicado no Festival de Cannes de 2011. O dilema dos personagens de Trabalhar Cansa, que levanta duas ótimas
questões de sua parte, também
atormenta o microcosmo dos personagens de O
Som ao Redor, “como negociar com uma nova funcionária que é, cultural,
racial e socialmente uma descendente de escravos, desempenhando o papel de
escrava moderna numa família moderna que existe numa sociedade patriarcal?” e
“como administrar um empreendimento familiar de pequeno porte onde mais
funcionários precisam ser gradualmente explorados para maiores resultados no
sentido de pagar as contas e gerar lucro?”.
Kléber encerra a sua crítica de Trabalhar Cansa com um parágrafo certeiro,
que um desavisado não hesitaria em relacioná-lo à sua própria produção, “de
qualquer forma, há uma enorme felicidade achada no desfecho, uma sequência
essencial onde não apenas o homem, a sociedade e o próprio filme revelam um
desejo importante de se libertar através do som. Essa libertação vem depois de
um exercício tão bem conduzido em estabelecer uma crônica de tensos costumes,
muitos deles só possíveis de serem observados no Brasil. A maneira que esses
costumes são revirados, por outro lado, só é possível no cinema”. Detalhe para
a observação feita a respeito do emprego do som, cuja importância lhe garantiu a
presença no título, tamanha a onipresença da sua influência sobre os
personagens.
Por mais que se abafe qualquer
tentativa de se conferir uma unidade a alguns filmes produzidos em Pernambuco,
parece que uma força oculta, inconsciente, insiste em aproximá-los. A partir do
surgimento de Baile Perfumado (1977),
de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, com a inspirada recriação do registro da
passagem do libanês Benjamim Abrahão pelo Brasil, responsável pelas únicas
imagens registradas de Lampião, o caminho para abordar o presente sem abdicar
do passado estava pavimentado. Cinemas,
Aspirinas e Urubus (2005, Marcelo Gomes), Árido Movie (2005, Lírio Ferreira) e Baixio das Bestas (2006, Cláudio Assis)
“revelam a presença do arcaico no moderno, a reiteração sob novas formas de um
modelo civilizatório ao mesmo tempo perverso e fascinante”, conforme observação
de José Geraldo Couto em um dos seus textos que trata do fenômeno O Som ao Redor. Dessa vez, entretanto,
tudo isso aparece “sob a aparência de uma prosaica crônica urbana ambientada
num bairro recifense de classe média”. O nordeste, desse modo, é retratado sem a
costumeira carga de estereótipos que caracteriza as suas abordagens.
É o típico filme, raro, que não
se esgota em um único texto. Mesmo as melhores críticas, e a internet está
repleta delas, não são capazes de condensar toda a sua riqueza de valores. Cada
texto tem ao menos alguma observação relevante capaz de enriquecer a discussão ambicionada
por Kléber. Não é pra menos, já que ele se desenvolve como uma longa sequência
de cenas inspiradíssimas, de impacto duradouro, alternando de um personagem a
outro, de um episódio a outro com uma desenvoltura notável. Pena que o filme
não encontrou um público mais amplo. Merecia.
fiquei curioso.
ResponderExcluirO Falcão Maltês
É imperdível Nahud!
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