segunda-feira, junho 17, 2013

O Som ao Redor (Kléber Mendonça Filho, 2012)




Antes mesmo do merecido reconhecimento internacional de O Som ao Redor, que culminou com a sua presença na lista dos dez melhores filmes de 2012 do New York Times elaborada pelo crítico A. O. Scott, a expectativa para a tão esperada estreia de Kléber Mendonça Filho em longas metragens, após uma bem sucedida carreira em curtas, já era altíssima. A despeito do acanhado prestígio dos curtas metragistas no meio cinematográfico, a sequência magnífica de trabalhos de Kléber já prenunciava a formação de um cineasta de mão cheia: Vinil Verde (2004), Eletrodoméstica (2005), Noite de Sexta, Manha de Sábado (2007) e Recife Frio (2009) representam, agora, um privilegiado cartão de visitas à obra em construção desse cineasta, que exerceu o ofício de crítico antes de assumir o papel de roteirista, diretor e produtor de um filme. Como se vê, foram uns bons anos de treinamento antes de entrar em campo com o time completo – detalhe: pra dar show de bola.

O resumo do enredo proposto pelo IMDB, que representa a quintessência do olhar estrangeiro para o nosso produto, dá bem conta do recado: Life in a middle-class neighborhood in present day Recife, Brazil, takes an unexpected turn after the arrival of an independent private security firm. The presence of these men brings a sense of safety and a good deal of anxiety to a culture which runs on fear. Meanwhile, Bia, married and mother of two, must find a way to deal with the constant barking and howling of her neighbor´s dog. A slice of “Braziliana”, a reflection on history, violence and noise. Essa “reflexão da violência” exercitada pelo diretor evita a todo o custo a sua espetacularização, bem como o grafismo comumente associado ao seu emprego. A violência não dá as caras efetivamente; sua manifestação é silenciosa, embrenhada, contida, mas nem por isso menos danosa – ela sobrevive nas entrelinhas. Ela corrói as entranhas das diversas relações pessoais que o filme cultiva, sem que a vertente panfletária do discurso se imponha. Nesse contexto, o gesto mais singelo não raro torna-se o mais carregado de nocividade.

Essa abordagem implícita da violência, construída quadro a quadro num clima crescente de tensão que nunca se converte num efetivo abuso de força, o aproxima do terror sugestivo temperado com ingredientes fantásticos, muito bem explorados em outro exemplar brasileiro bastante elogiado pelo próprio Kléber: Trabalhar Cansa (2011), de Juliana Rojas e Marco Dutra. Os dois filmes não partilham apenas o mesmo formato, encerrado no “gênero cinematográfico”, mas também o “tema”, ao abordar “uma época que tem pintado o Brasil como país que passa por uma virada econômica, onde festejam-se avanços na qualidade de vida e sua capacidade de gerar riqueza”, conforme passagem do texto de Kléber para o filme da dupla publicado no Festival de Cannes de 2011. O dilema dos personagens de Trabalhar Cansa, que levanta duas ótimas questões de sua parte, também atormenta o microcosmo dos personagens de O Som ao Redor, “como negociar com uma nova funcionária que é, cultural, racial e socialmente uma descendente de escravos, desempenhando o papel de escrava moderna numa família moderna que existe numa sociedade patriarcal?” e “como administrar um empreendimento familiar de pequeno porte onde mais funcionários precisam ser gradualmente explorados para maiores resultados no sentido de pagar as contas e gerar lucro?”.

Kléber encerra a sua crítica de Trabalhar Cansa com um parágrafo certeiro, que um desavisado não hesitaria em relacioná-lo à sua própria produção, “de qualquer forma, há uma enorme felicidade achada no desfecho, uma sequência essencial onde não apenas o homem, a sociedade e o próprio filme revelam um desejo importante de se libertar através do som. Essa libertação vem depois de um exercício tão bem conduzido em estabelecer uma crônica de tensos costumes, muitos deles só possíveis de serem observados no Brasil. A maneira que esses costumes são revirados, por outro lado, só é possível no cinema”. Detalhe para a observação feita a respeito do emprego do som, cuja importância lhe garantiu a presença no título, tamanha a onipresença da sua influência sobre os personagens.

Por mais que se abafe qualquer tentativa de se conferir uma unidade a alguns filmes produzidos em Pernambuco, parece que uma força oculta, inconsciente, insiste em aproximá-los. A partir do surgimento de Baile Perfumado (1977), de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, com a inspirada recriação do registro da passagem do libanês Benjamim Abrahão pelo Brasil, responsável pelas únicas imagens registradas de Lampião, o caminho para abordar o presente sem abdicar do passado estava pavimentado. Cinemas, Aspirinas e Urubus (2005, Marcelo Gomes), Árido Movie (2005, Lírio Ferreira) e Baixio das Bestas (2006, Cláudio Assis) “revelam a presença do arcaico no moderno, a reiteração sob novas formas de um modelo civilizatório ao mesmo tempo perverso e fascinante”, conforme observação de José Geraldo Couto em um dos seus textos que trata do fenômeno O Som ao Redor. Dessa vez, entretanto, tudo isso aparece “sob a aparência de uma prosaica crônica urbana ambientada num bairro recifense de classe média”. O nordeste, desse modo, é retratado sem a costumeira carga de estereótipos que caracteriza as suas abordagens.

É o típico filme, raro, que não se esgota em um único texto. Mesmo as melhores críticas, e a internet está repleta delas, não são capazes de condensar toda a sua riqueza de valores. Cada texto tem ao menos alguma observação relevante capaz de enriquecer a discussão ambicionada por Kléber. Não é pra menos, já que ele se desenvolve como uma longa sequência de cenas inspiradíssimas, de impacto duradouro, alternando de um personagem a outro, de um episódio a outro com uma desenvoltura notável. Pena que o filme não encontrou um público mais amplo. Merecia.

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