quinta-feira, agosto 29, 2013

Um barco e nove destinos (Alfred Hitchcock, 1944)


Num recente bate papo com o Alexandre do analiseindiscreta.wordpress.com, trocamos algumas figurinhas a respeito das influências que exerceram um papel importante na experiência cinéfila de cada um. Dali saiu que o livro que encabeça a minha lista de referências imprescindíveis é o mítico Hitchcock/Truffaut, responsável pelo sucesso do registro em forma de entrevistas, editado muito antes de o formato assumir um caráter declaradamente comercial. Depois da nossa breve conversa me pus a ver um Hitchcock dos menos valorizados. Pouco me falta para completar a fase americana de sua carreira, entre os quais havia Um barco e nove destinos. O trecho abaixo se refere à passagem do livro em que os dois cineastas dialogam a respeito desse filme. O entendimento de Truffaut não corresponde exatamente às intenções de Hitchcock, que aproveita a ocasião para contextualizar as suas decisões, sobretudo as de natureza técnica. Fica claro pelas respostas que o seu domínio sobre a realização do projeto é absoluto - característica onipresente no livro, perpassando a maioria de seus filmes. Não é à toa que à medida que sua carreira avançava, ele acabou assumindo o cargo de produtor. A questão derradeira aborda a engenhosa ponta de Hitchcock (a sua predileta!), recheada do típico humor inglês que o caracterizava, que acabou passando em branco pra mim. Não fosse a consulta ao livro eu a teria desconhecido – felizmente, a bela edição da Companhia das Letras traz uma enorme ilustração do momento.

François Truffaut – Alguns filmes seus apresentam-se como verdadeiros desafios. Um barco e nove destinos é um deles. Aqui, a aposta é fazer um filme inteiro dentro de um bote salva-vidas?

Alfred Hitchcock - De fato, era uma aposta, mas também uma demonstração de uma teoria que eu tinha nesse momento. Minha impressão era que, ao se analisar um filme psicológico corrente, percebia-se que, visualmente, oitenta por cento da metragem eram dedicados a primeiros planos ou semi-primeiros planos. Era algo não combinado, provavelmente instintivo entre a maioria dos diretores; era uma necessidade de se aproximar, uma espécie de antecipação do que seria a técnica da televisão.

É muito interessante, mas várias vezes você foi tentado por esse gênero de experiências sobre a unidade de lugar, de tempo e de ação; por outro lado, Um barco e nove destinos é o contrário de um thriller, é um filme de personagens. Terá sido o sucesso de A Sombra de uma Dúvida que o levou nessa direção?

Não, não tem nada a ver com A Sombra de uma Dúvida. Um barco e nove destinos foi influenciado apenas pela guerra. Era um microcosmo da guerra.

Em certa época pensei que a moral de Um barco e nove destinos fosse a de que todos são culpados, todos têm alguma coisa a se recriminar, e que você queria concluir com um: “Não julguem”. Mas acho que me enganei, não?

 A ideia do filme é diferente. Quisemos mostrar que naquele momento havia no mundo duas forças em presença, as democracias e o nazismo. Ora, as democracias estavam em absoluta desordem, ao passo que todos os alemães sabiam aonde queriam chegar. Portanto, tratava-se de dizer aos democratas que eles precisavam de qualquer maneira tomar a decisão de se unirem, se juntarem, esquecerem suas diferenças e divergências para se concentrarem num só inimigo, sobremodo poderoso por seu espírito de coesão e decisão.

Era uma ideia forte e justa...

O engenheiro interpretado por John Hodiak era praticamente um comunista e, no outro extremo, você tinha um homem de negócios que era um fascista. E, nos grandes momentos de indecisão, ninguém sabia o que fazer, nem mesmo o comunista. O filme foi muito criticado e a famosa Dorothy Thompson, na sua coluna, deu ao filme dez dias para sair da cidade!

O filme não é apenas psicológico, muitas vezes é moral também; por exemplo, já perto do fim os personagens vão linchar o alemão, e você mostra o grupo bem de longe, de costas, e é uma visão um tanto repugnante, proposital, creio?

É, eles são como uma matilha de cães.

O filme é ao mesmo tempo um conflito psicológico e uma espécie de fábula moral. Os dois elementos se entrelaçam muito bem, sem nunca se prejudicarem.

Primeiro, encomendei esse argumento a John Steinbeck, mas o trabalho ficou incompleto. Então mandei chamar um escritor muito conhecido, Mac Kinley Cantor, que trabalhou duas semanas... Eu não gostava nada do que ele fazia. Ele me disse: “Não consigo fazer melhor”, então respondi: “ Muito obrigado”, e peguei outro escritor, Jo Swerling, que tinha trabalhado para Frank Capra. Com o script pronto e o filme prestes a começar, percebi que nenhuma sequencia terminava com um toque apoteótico, e então me esforcei em dar uma forma dramática a cada episódio.

Foi por isso que deu tanta importância aos objetos, como a máquina de escrever, as joias, etc.

Foi. O que levou os críticos americanos a ser tão veementes contra esse filme foi que eu tinha mostrado um alemão superior aos outros personagens. Ora, nesse período de 1940-1, os franceses estavam derrotados e os Aliados estavam em decomposição. Por outro lado, o alemão que, no início, fingia ser um simples marinheiro tinha sido comandante de submarino; portanto, havia todas as razões para se pensar que era mais qualificado que os outros para assumir o comando do bote, mas aparentemente os críticos imaginaram que um nazista mau não podia ser um bom marinheiro! Mesmo assim o filme teve certo sucesso em Nova York, mas não era muito comercial, quando nada pelo desafio técnico. Nunca deixei a câmera sair do barco, nunca mostrei o barco visto de fora e, de quebra, não havia uma só nota musical, era muito rigoroso. Evidentemente, o conjunto foi dominado pela personagem de Tallulah Bankhead.

Ela segue um pouco o mesmo percurso da heroína de Os Pássaros: parte da sofisticação para atingir o aspecto natural, à medida que passa por sofrimentos físicos, e apreciei imensamente esse itinerário moral marcado pelo abandono de coisas materiais, a máquina de escrever que cai na água, e, no final do filme, o fecho da pulseira de ouro que serve de anzol quando não há mais nada para comer. A propósito de objetos, convém não esquecer o velho jornal que está ali largado no bote e que você usou para fazer sua ponta ritual.

É meu papel predileto e devo confessar que passei longos e penosos momentos para resolver esse problema.

Habitualmente, faço um transeunte, mas como inventar transeuntes no oceano?! Bem que eu tinha pensado em representar um cadáver boiando à distância do bote salva-vidas, mas morria de medo de me afogar. E era impossível para mim fazer um dos nove sobreviventes, pois todos esses papéis deviam ser feitos por atrizes e atores competentes.

Por fim, tive uma excelente ideia. Nessa época eu fazia um regime muito severo, avançando a duras penas para o meu objetivo de perder cinquenta quilos, baixando de cento e cinquenta para cem. Assim, resolvi imortalizar meu emagrecimento e ao mesmo tempo conseguir minha ponta, posando para fotografias “antes” e “depois” do regime de emagrecer. Essas fotos foram reproduzidas como se ilustrassem uma propaganda de jornal, preconizando uma droga imaginária, “Reduco” – e os espectadores podiam ver tanto esse anúncio como minha própria pessoa, quando William Bendix abria um jornal velho que tínhamos pendurado no barco. Esse papel fez grande sucesso!

domingo, agosto 18, 2013

Cinzas que Queimam (Nicholas Ray, 1952)



A primeira parte de Cinzas que Queimam só prepara o terreno para que o impacto da segunda parte seja potencializado. A ênfase é toda voltada para a construção do caráter ambíguo do seu protagonista que será testado de maneira inesperada. São quase quarenta minutos do filme – aproximadamente metade do todo - dispostos a imergir o espectador na rotina desgastante de um policial da rota noturna, Jim Wilson (Robert Ryan), profundamente afetado pela sujeira e depravação que ele se esforça para combater. Os dois outros parceiros que dividem o itinerário com ele só existem para reforçar essa impressão ao contarem com o indispensável apoio da família para garantir a sanidade mental num ambiente predominantemente deturpado. Jim Wilson dispensa essa prerrogativa, absolutamente confiante na eficácia de seus métodos heterodoxos e implacáveis. É essa postura irrefreável que lhe garante um afastamento indesejado, deslocando a narrativa do filme até então centrada na cidade grande para a suposta vida pacata do interior norte-americano.

Ao contrário do que se esperava a vida de Jim Wilson não será menos agitada na insipidez interiorana que o aguardava de braços abertos. É lá que seus valores serão colocados à prova ao confrontarem-se com os de seu oposto, a compreensiva e angelical Mary Malden (Ida Lupino). O mundo dos dois se cruza quando o suspeito do assassinato de uma jovem refugia-se na casa de Mary em busca de abrigo, enquanto Jim e o pai da vítima, Walter Brent, interpretado pelo sempre ótimo Ward Bond, perseguem-no até o perderem de vista nos arredores da propriedade dela. A cegueira literal de Mary não é percebida de imediato pelos interrogadores, sobretudo por Walter, que interpreta o comportamento evasivo dela como sendo pouco colaborativo. Jim desconfia da sua deficiência visual e, sensibilizado pelo tratamento agressivo que o pai da vítima lhe dispensa em busca de respostas imediatas (numa autêntica mea culpa pelos excessos cometidos de outrora), passa a protegê-la de forma contida. Numa conversa reservada entre os dois, enquanto Walter persiste na busca nas imediações da casa, ela confessa que seu irmão mais jovem a procurara e se escondera – em decorrência da autoria do assassinato, embora esse detalhe fique subentendido.

A diferença entre as perspectivas de vida de Jim e Mary é magnificamente expressa pelo roteirista A.I. Bezzerides em um breve diálogo travado entre os dois personagens, que não poderia ser mais preciso.

Mary Malden: Tell me, how is it to be a cop? 
Jim Wilson: You get so you don´t trust anybody. 
Mary Malden: You´re lucky. You don´t have to trust anyone. I do. I have to trust everybody.

Por mais que identifiquemos o papel do protagonista no personagem de Robert Ryan, Ray coloca as partes de Ida Lupino, Ward Bond e Sumner Williams (o jovem Danny Malden) no mesmo pé de igualdade, muito embora suas participações sejam consideravelmente mais curtas. Especialmente a de Sumner Williams, que dispõe de praticamente uma cena pra mostrar seu talento. O jovem garoto carrega todo o peso do mundo nas costas e compõe mais um dos personagens da extensa galeria de rebeldes sem causa de Nicholas Ray.

sábado, agosto 10, 2013

Tabu (Miguel Gomes, 2012)






Lamento não ter assistido ao Tabu (1931) de F.W. Murnau antes do Tabu (2012) de Miguel Gomes. Pela breve descrição da trama encontrada em alguns dos User Reviews do site IMDB é certo que a semelhança entre os dois filmes vai muito além do título. Caso eu o tivesse visto, provavelmente a minha experiência teria sido enriquecida uma vez que eu teria outro (excelente e fundamental) parâmetro para construir a minha percepção. Parece-me que a influência de Murnau extrapola a esfera do título e da trama, manifestando-se, sobretudo, na forma.

Sempre que penso na discussão da forma no cinema me lembro dos anos em que meu interesse pelos filmes extrapolou o âmbito das imagens e foi de encontro ao papel desempenhado pela crítica. Meu gosto pela leitura surgiu nessa época, estimulado pelas questões que só um texto bem redigido é capaz de levantar. Como era de se esperar, a minha relação com a sétima arte só veio a se aprofundar a partir dessa ocasião. Confesso que levei um bom tempo para compreender a razão pela qual a forma era mais celebrada do que o conteúdo. Depois que a ficha caiu, um novo horizonte se abriu trazendo consigo um grau de amadurecimento nem sempre desejado, que se manifestava sempre que o novo discernimento se dispunha a expor as engrenagens dessa enganosa fábrica planejada de sonhos e fantasias - só os bons diretores fazem bom uso desse recurso, que nada mais é do que a manipulação pura e simplesmente.

Depois dessa breve introdução, necessária para o desenvolvimento do raciocínio, vamos ao que interessa. O Tabu de Miguel Gomes serve como um bom exemplo que pode ser muito bem empregado sempre que a discussão forma/conteúdo vem à tona. O que faz essa produção pairar sobre outras que também se prestam a fazer um relato de uma aventura amorosa num tempo remoto é justamente a forma adotada por seu diretor para conduzir essa história banal. Do ponto de vista do conteúdo ela tem pouco a acrescentar ao provável universo de experiências do espectador, mesmo quando se pensa em iniciados. O uso do preto e branco, da janela (aspect ratio) 1.33:1 e do mudo talvez sejam os aspectos mais óbvios, ainda que extremamente necessários e pertinentes, a justificar esse argumento, sendo os dois primeiros responsáveis pela “cara” do filme. A memória e a lembrança, fundamentais na segunda parte, materializam-se perfeitamente no tom acinzentado da fotografia, bem como na corajosa decisão de subtrair o som dos diálogos dos personagens – assim como se dá com os nossos sonhos! A narração melancólica e pausada do próprio Gomes infunde um ar saudosista ao relato, radiofônico, reforçado pelas intermitentes apresentações do grupo musical (anacrônicas, mas não menos que inspiradas). Esse conjunto de decisões é tão bem costurado pelo diretor que funciona maravilhosamente bem.

O que mais chama a atenção em Tabu é a forma como a segunda parte, ambientada totalmente na África, se manifesta na primeira, uma Lisboa representada como uma verdadeira selva de pedra. O que nos parece estranho num primeiro momento, adquire significados consistentes na segunda parte, reverberando uma inconsciente herança colonialista portuguesa. Relativamente branda, é verdade, porém perfeitamente ativa. O papel da doméstica Santa (Isabel Cardoso) é a prova cabal dessa frutífera relação. Dessa forma, Miguel Gomes expõe as engrenagens dessa enganosa fábrica planejada de sonhos e fantasias sem perder de vista o viés crítico que distingue os bons dos maus cineastas. Ah, sem falar do uso refinado que ele faz do humor.