sexta-feira, maio 01, 2015

A Casa Assassinada (Paulo Cesar Saraceni, 1971)


A correria da vida real anda cobrando um preço alto aqui em casa, o que tem dificultado as minhas postagens já bastante rarefeitas. A abertura de um novo negócio limou o resquício de tempo que ainda restava, comprometendo a trôpega escrita. Para não deixar a peteca cair, ando reproduzindo alguns textos de terceiros.

O www.estranhoencontro.blogspot.com.br da Andrea Ormond é o melhor espaço independente existente na net voltado para a exploração do cinema nacional. Minhas consultas ao seu blog são sempre enriquecedoras, já que sua abordagem esmiúça cada produção em relação ao contexto em que foram produzidas, trazendo à tona aspectos relevantes que só um olhar atento é capaz de revelar. Não foram poucas as ocasiões em que um filme só se revelou para mim a partir da leitura de um de seus textos. Bastam alguns acessos para perceber o quão enciclopédico é o seu conhecimento a respeito do nossa produção. Depois que o descobri, já há alguns bons anos, ele se tornou obrigatório para mim.

Por Andrea Ormond,

Em 1970, época de realização desteA Casa Assassinada, Paulo César Saraceni, Mário Carneiro e Antonio Carlos Jobim eram uma trinca bem azeitada, sete anos após a aventura inicial emPorto das Caixas” (1963).

Diretor-roteirista (Saraceni), montador-fotógrafo (Carneiro) e compositor (Jobim) voltavam agora os olhos paraCrônica da Casa Assassinada, obra do mesmo argumentista dePorto das Caixas, Lúcio Cardosofalecido em 1968 –, numa reiteração que não tem nada de casual.

É clichê qualificá-lo comocavalheiro do tipo fino sofisticado, mas o slogan está bem próximo da verdade. Cardoso era o irmão/pai/amigo, responsável pela formação intelectual de vários jovens, criando um vínculo atemporal, à semelhança dos tutores ingleses e seus pupils.

Como não estávamos em Oxford, mas sim na Guanabara, a audiência de Lúcio incluía gente como Saraceni e Luiz Carlos Lacerda. Este último, coincidentemente, também em 1970 rodavaMãos Vazias” – penúltimo filme de Leila Diniz, baseado em romance homônimo de Cardoso.
Tendo as referências acima fica mais fácil adentramos os portais do tempo que levam àCasa Assassinada. Desde a leitura inicial do livro, em 1959, Saraceni se interessou em adaptá-lo ao cinema.

O projeto teve idas e vindascom direito, inclusive, a recomendação da amiga Edla Van Steen para que Saraceni convidasse Luchino Visconti, terminando felizmente no início da década de 70 com um Saraceni e um ambiente fílmico brasileiro maduros, capazes de compreender a obra e não simplificá-la barbaramente.

Digo isto porque a família Menezes, que habita acasa assassinada, mansão decadente no sul de Minasas locações foram em Valença, interior do estado do Rioé uma reunião de tipos espectrais, folclóricos, sombrios.

Os Menezes vivem numa dupla-face entre o desequilíbrio existencialque inclui religiosidade e hipocrisia das velhas famílias mineirase o lado onírico, que desemboca na multiplicidade de narradores, alegorias e cortes temporais. No romance, levam o leitor a construir o quebra-cabeças e a conhecer os delírios de personagens em um estilo literáriointimista”, que muitos associam à escrita de Clarice Lispector.

Por isto, crucificar a demência dos Menezes, tachando-os como horrorosos, não seria o ideal. Melhor fez Saraceni, ao colocá-los convivendo como deuses de si mesmos, cada qual num conflito particular.

Nina (Norma Bengell) é casada com Valdo Menezes (Rubens Araujo), irmão de Demétrio (Nelson Dantas), o louco-chefe, por sua vez casado com Ana (Tetê Medina), a abutre-mor que olha Nina à distância, cobiça-a pela voluptuosidade que inveja e, claro, quer destruir.

Alberto (Augusto Lorenzo), roceiro apaixonado por Nina, tem um caso com a patroa mas suicida-se depois de vários desencontros. Passados alguns anos, existe um incesto fundamental entre Nina e André (também Augusto Lorenzo, suposto filho da moça e do capataz).

Por outro lado, literalmente trancado em um dos cômodos da casa, tal qual uma das pragas do Egito, está a maravilhosa figura ursina de Timóteo (Carlos Kroeber, em interpretação estupenda, no rol das maiores de nosso cinema).

Homossexual exagerado, triunfal, a boca pintada, os traços realçados pela maquiagem, pelas roupas e jóias do guarda-roupas da falecida mãe, Timóteo se funde em Nina e ela nele, como se ambos se prometessem a salvação que nunca se concretizaria, diante do ambiente atormentado em que vivem.

Deus é um canteiro de violetas, cuja estação não passa nunca, Timóteo vocifera em uma metáfora belíssima sobre o prazer e o amor (simbolizados nas violetas, que Alberto colocava diariamente na janela do quarto de Nina) em contraposição a um Deus perverso, punitivo, censor das relações humanas tomadas comoexóticase pecaminosas.

A frase ecoa no velório de Nina, depois de Timóteo beijar o rosto do cadáver e estapeá-lo uma vez, revoltado. Reparem que ele havia chegado ao local carregado por mucamos negros, em um dos momentos em que o surrealismo dá a tônica da trama. No meio da fauna típica dos velórios, do tom farsesco em que os risos, cafezinhos e falsas palavras de conforto pululam aqui e ali, é aquela figura over, ampla e bisonha de Timóteo a única provida de humanismo e dignidade.

Figurinos brilhantes de Ferdy Carneirocolaborador freqüente de Saraceni e Mário Carneiro –; fotografia e montagem de Mário Carneiro trabalhando na contenção entre cores frias e exuberantes, trazendo o quê viscontianotambém imprimido pela direção de Saraceni.

Essa massa de imagens (figurino e fotografia), por sinal, alcança vigor muito maior que o do roteiro, que trabalha com a ingratíssima tarefa de adaptar para o cinema uma obra perfeita e talhada em outro universo, o literário, vasto por si só.

A poética do livro é difícil de ser verbalizada naturalmente pelos atores. As frases longas nem sempre soam casadas com os conflitos visuais. Mesmo assim, há acertos como o do uso do arquétipo de padre interditor, ao qual Ana literalmente se agarra e acaricia, para dar vazão à culpa e aos seus delírios histéricos.

Jogado por décadas em algum porão à espera de ser trazido de volta, "A Casa Assassinada" por pouco não ficou na obscuridade. Muitos o davam como perdido, mas a partir dos anos 90 passou a ser figurinha fácil no Canal Brasil.

Dois momentos permanecem como fantasmas que rodeiam o longa: o rosto de Lúcio Cardoso e a citação do capítulo 11, versículos 29 e 30 do livro de São João na Bíbliaem que Jesus ressuscita Lázaro porque fiel à Palavra. Aparecem antes dos créditos, mas servem de aperitivo e elementos inicializadores, como se encerrassem o enigma que atormenta as paredes descascadas na mansão da fictícia Vila Velha.

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