sexta-feira, outubro 15, 2010

A França e seus fantasmas

Não faz nem cinco anos que a imprensa francesa relatava em seus noticiários - com uma boa dose de inconformismo - as queimas de carros que se passava em suas periferias. O movimento, que ficou conhecido como motim francês, trouxe à tona um fantasma que vez ou outra infla as publicações jornalísticas e que costuma servir de explicação reducionista para condutas injustificáveis: a xenofobia. Esse sentimento costuma vir associado a um problema, mais amplo e complexo, de ordem social.

O assunto voltou à pauta dos jornais nos últimos meses. Dessa vez, chamou a atenção da opinião pública internacional o caminho adotado pelo governo Francês, em caráter legal, de expulsar os ciganos de seu território e proibir o uso do véu islâmico em lugares públicos. Agora é oficial: a xenofobia está em vias de se tornar lei.

Eu já tive a oportunidade de visitar a França em duas ocasiões e como qualquer turista que conhece Paris pela primeira vez não há como não ficar impressionado com a riqueza e dimensão histórica da cidade: trata-se de um livro de história a céu aberto. Não deixa de ser irônico notar que a mesma terra que já deu luz a pensadores iluministas como Rousseau e Voltaire, responsáveis pelos valores difundidos pela Revolução Francesa - Liberdade, Igualdade e Fraternidade – se encontre hoje nesse beco sem saída de intenções e princípios equivocados. Do discurso formulado à prática, existe um abismo.

Como o espaço foi criado para se falar de cinema, a ideia é aproveitar esse gancho pra comentar brevemente quatro recentes produções francesas que dão voz a esses estrangeiros, imigrantes, desempregados, refugiados e marginalizados que povoam os grandes centros urbanos da França. Nenhum dos filmes trata especificamente dos episódios relatados no início dessa postagem, ainda assim, em todos, preconceito e desprezo são os sentimentos prevalecentes. Os quatro filmes oferecem um panorama bem realista do que é a França hoje em dia; em alguns a língua francesa soa estrangeira, tamanha a influência desses “novos cidadãos franceses”.


Entre os muros da escola (Entre le murs, 2008), de Laurent Cantet

Esqueça os filmes norte-americanos que abordam a relação professor-aluno num tom sentimentalista como Ao mestre com carinho (1967). O cineasta Laurent Cantet opta por um registro realista, semi documental, seguindo o dia-a-dia de um professor de uma escola da periferia de Paris e sua difícil tarefa de educar os jovens nos dias de hoje. Ao deixar a sessão de cinema, minha esposa, que já foi professora na periferia brasileira comentou: “No Brasil é bem pior”. Não duvido que seja, a questão é outra: em matéria de cinema não existe filme mais honesto, complexo, humano e denso do que este ao tratar uma jornada escolar. Não há concessões sentimentalistas, a realidade é dura. Quem dá as caras é a França multi étnica e racial. O professor não ensina apenas, ele também aprende.


O Profeta (Un Prophète, 2009), de Jaques Audiard

Um dos melhores filmes a que assisti no ano. A trama se passa em uma prisão francesa, onde curiosamente não há franceses como prisioneiros. Os internos são todos estrangeiros que se organizam de acordo com as suas crenças religiosas e brigam pelo controle de poder. A França é o palco dessas diferenças que são resolvidas por meio da violência. A improvável história de superação do jovem Malik e sua ascensão ao mundo do crime é tão apaixonante que desarma o espectador de qualquer resquício de preconceito. O filme dá voz àqueles que talvez tenham sido os protagonistas do motim francês. Duas cenas memoráveis: o primeiro assassinato em que Malik ganha a confiança do poderoso chefão do presídio e a matança em uma rua parisiense à luz do dia.


Bem vindo (Welcome, 2009), de Philippe Lioret

O mais sentimental dos quatro filmes, nem por isso o menos sério ou o menos urgente. Um jovem iraquiano refugiado tenta entrar na Inglaterra, através da Normandia, do jeito mais difícil: cruzando o Canal da Mancha a nado. Seu objetivo: reencontrar a jovem iraquiana por quem se apaixonou e que agora habita Londres junto à família na condição de imigrante. A relação que o filme constrói a partir da aproximação de Bilal, o refugiado, e Simon, um ex-campeão de natação francês, trilha caminhos inesperados. O filme mostra a ação opressiva do estado sobre os imigrantes e refugiados.


O pecado de Hadewijch (Hadewijch, 2009), de Bruno Dumont

O filme lida com o radicalismo religioso e suas possíveis consequências. Da aproximação entre uma católica fervorosa e um muçulmano fundamentalista brota uma relação improvável de interesses complementares. Mesmo se tratando do filme que menos se encaixa na proposta inicial, os passeios da câmera pela Paris ora rica, ora marginal, denunciam uma França fragmentada. Sob a superfície calma, paira um mundo em ebulição.
Próximo da França, na vizinha Bélgica, os irmãos Dardenne, Jean Pierre e Luc, também retratam as condições de vida dos imigrantes nos ótimos A Promessa (1996) e O silêncio de Lorna (2008). Imperdíveis!

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