sexta-feira, setembro 30, 2011

À margem da sociedade

Seu Último Refúgio (Raoul Walsh, 1941) - Ida Lupino e Humphrey Bogart - o sonho americano que não deu certo. O anti filme de gângster. A cena em que Roy Earle (Humphrey Bogart) toma um toco da jovem Velma (Joan Leslie) é antológica - o filme depende dessa cena, que funciona à perfeição, pra humanizar o personagem de Bogart.

Deus Sabe Quanto Amei (Vincente Minnelli, 1958) - Shirley Maclaine e Frank Sinatra -  o português João Benard da Costa chamou a personagem de Shirley Maclaine de "o mais bonito que o cinema alguma vez inventou". Depois de visto é fácil entender como o trabalho de Billy Wilder em Se meu apartamento falasse (1960) e Irma La Douce (1963) ficou bem mais fácil. A sociedade americana e o fantasma da hipocrisia.

segunda-feira, setembro 26, 2011

O Universo de Terrence Malick





É difícil começar um texto a respeito de Terrence Malick, são tantos os pontos de partida... Pra dar conta de toda a dimensão dos seus trabalhos eu teria de fazer um texto extenso, o que não é a minha intenção. Pra encurtar, vou me ater a dois momentos de Dias de Paraíso (1978) e A Árvore da Vida (2011), que, a meu ver, proporcionam uma boa reflexão das suas preocupações e da sua maneira de enxergar as coisas.

Deixei a sessão de A Árvore da Vida convencido de que não seria possível registrar qualquer pensamento em um texto sem antes assistir ao filme dele que me faltava, Dias de Paraíso – seus outros três são Terra de Ninguém (1973), Além da Linha Vermelha (1998) e O Novo Mundo (2005). A impressão que fica é que desde sempre Terrence Malick buscou filmar A Árvore da Vida, numa espécie de evolução natural dentro da sua própria cinematografia. O que não quer dizer que seus filmes anteriores sejam menos interessantes, complexos ou importantes. Todos os seus anos de reclusão – de 1978 a 1998 ele não fez um filme sequer – devem ter contribuído para amadurecer a concepção do projeto ambicioso de A Árvore da Vida. É uma enorme carga de informação concentrada em 2h19min de projeção, o típico filme concebido pra ser explorado na telona do cinema. Sua dimensão não cabe na telinha da TV. Já estou curioso pra saber qual caminho será trilhado pelo diretor a partir de seu próximo projeto (que já se encontra em fase de pós-produção).

Honestamente, não sei se compartilho de todo o entusiasmo que encontro nos textos da net, o que não quer dizer necessariamente que tenha desgostado do filme, muito pelo contrário. Uma coisa é certa: é impossível ficar indiferente a sua grandiosidade. Não é fácil se livrar dele. Assistir a Dias de Paraíso posteriormente ajudou a aumentar o meu apreço pelo filme.

Salvo O Novo Mundo, todos os seus outros quatro filmes são ambientados na primeira metade do século passado e retratam, de maneira direta ou indireta, um período que reside na memória do realizador. A Árvore da Vida é o mais autobiográfico de todos, conforme atesta o trecho do livro Como a Geração Sexo, Drogas e Rock-and-Roll Salvou Hollywood de Peter Biskind:

Ele era tímido e introvertido, falava muito pouco. Malick vinha do Texas. Seu pai era um executivo da Phillips Petroleum, e ele tinha dois irmãos mais moços, Chris e Larry. Larry foi para a Espanha estudar violão com Segovia, um professor cujo rigor era lendário. No verão de 1968, Terry soube que seu irmão havia quebrado as próprias mãos, aparentemente enlouquecido com seus estudos. O pai pediu que Terry fosse à Espanha ajudar Larry. Terry se recusou. O pai foi, e voltou com o corpo de Larry. Aparentemente, ele cometera suicídio. Terry, o irmão mais velho, fora coberto pelos privilégios da primogenitura. Ele é que havia estudado em Harvard, tornara-se um Rhodes Scholar (prestigiosa bolsa de estudos que permite a universitários americanos fazer pós-graduação em Oxford, na Grã-Betanha), e quando seu irmão caçula mais precisara dele, tinha falhado. Para sempre carregaria o peso da culpa."

Seus personagens quando crianças ou adolescentes representam verdadeiros espíritos livres, inocentes, guiados pelo prazer da fantasia e da descoberta; seus homens, adultos, embora sejam seres capazes de amar impetuosamente, já estão corrompidos pela riqueza material, pela ambição e pela ganância. O contraste entre essas duas “existências” é reforçado pelos voices off (narração) de Terra de Ninguém, Dias de Paraíso e A Árvore da Vida: neles, os mais jovens se prestam a observar as atitudes e decisões dos mais velhos, mesmo sem compreendê-las. É uma espécie de voz da consciência do Malick jovem: o que fui e o que me tornarei.

Uma cena de Dias de Paraíso e outra de A Árvore da Vida, elaboradas de forma muito semelhante (do ponto de vista cinematográfico), evidenciam esses dois momentos da “existência” dos Homens (mais precisamente das figuras masculinas dos filmes de Malick): quando Bill (Richard Gere em Dias de Paraíso) e o jovem Jack (Hunter McCraken em A Árvore da Vida) adentram uma casa que não lhes pertence. Embora Bill tenha sido convidado pelo proprietário das terras (Sam Shepard) para usufruir da sua mansão na sua ausência, uma vez lá dentro experimentamos um sentimento de invasão; como adulto, ele se maravilha com a riqueza (material) dos bens dispostos nela - ele herdará todo o patrimônio do proprietário caso seu golpe seja bem sucedido. Já o jovem Jack viola a intimidade de uma vizinha em busca de uma aproximação amorosa, afetiva; como criança, ele se maravilha com uma peça íntima de uma mulher, como que ao “roubá-la” esteja dando vazão a sua fantasia, seu desejo. É o despertar da sexualidade. Seus Homens se mostram ora sob a forma de crianças inocentes, ora sob a forma de adultos corrompidos.

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Em Malick existe sempre uma força superior, de caráter divino, regendo as vidas que habitam o nosso Universo. Seus personagens estão sempre recorrendo ao Criador, na busca de respostas para os eventos que lhes escapam à razão. Não é à toa que os voices off (dos narradores) de todos os seus filmes fazem menção a Deus.

Em A Árvore da Vida, Malick parece encontrar a melhor forma para representar a influência dessa “mão invisível” nos rumos de seus personagens, como se quisesse organizar o caos que orienta nossas vidas. Essa ambição desmedida (não consigo encontrar um termo melhor para expressar esse desejo) é que confere uma aura de grandiosidade ao filme. Em Dias de Paraíso a solução encontrada é mais simplória, nem por isso menos interessante. Em A Árvore da Vida, a reflexão que Malick propõe não diz respeito apenas aos personagens retratados, mas a todos os seres em vida, aos que já viveram e aos que ainda estão por vir.

Quando Bill (Richard Gere) percebe que o seu plano se aproxima de um desfecho indesejado, – seu golpe toma um rumo inesperado (sua namorada, Brooke Adams, se apaixona pelo proprietário das terras, Sam Shepard) – como que por um milagre, um grupo de circenses irrompe no céu pilotando dois monomotores para “salvá-lo” dali antes que a farsa seja desnudada. Um ano depois, quando ele retorna para a colheita da safra e logo em seguida a plantação sofre o ataque súbito de uma praga devastadora, fica implícito que ele é o vetor da desgraça, da danação. Seus “salvadores involuntários” (mesma espécie) vêm do céu, bem como o seu infortúnio, a praga (da natureza).

Em A Árvore da Vida, Malick complica mais as coisas: ele recorre aos dinossauros pra falar de nós mesmos – mais precisamente da vida, da Natureza, “the way of grace and the way of nature”, segundo as palavras iniciais de Mrs. O’Brien, a mãe (Jessica Chastain). Nas duas únicas cenas em que eles aparecem, ora um deles é ferido por outros predadores (da natureza), ora um deles é poupado por um de seus pares (mesma espécie). Não somos os únicos a sucumbir aos caprichos da Natureza, em verdade, todos os seres vivos trilham o mesmo caminho. A sucessão de imagens que remete à criação do Universo explora muito bem essa ideia: vida e morte; início e fim - sucessivos Ciclos de Vida asseguram a continuidade de uma espécie. Malick inverte a lógica do Ciclo, iniciando pela morte de um dos três filhos da família O’Brien, pra só então voltar ao nascimento do mesmo.

Embora eu tenha feito uma analogia entre os dois filmes de forma a aproximá-los, é a diferença entre eles que mais me interessa: em Dias de Paraíso, Bill (Richard Gere) carrega consigo uma semente do mal, um desvio de conduta, de forma que o seu retorno desequilibra a harmonia do relacionamento entre Abby (Brooke Adams) e o Fazendeiro (Sam Shepard), levando-o à morte - numa espécie de castigo; em A Árvore da Vida, o filho mais novo chamado de R.L (Laramie Eppler) carrega toda a pureza da vida em seu interior, a inocência ou isenção de culpa, de certa forma o equilíbrio, mas nem por isso seu fim é menos dramático: ele também morre. A Natureza que nos dá a vida é a mesma que nos priva dela.

Terrence Malick levou todo esse tempo para enfrentar os seus fantasmas. O filme, na minha interpretação, funciona como uma espécie de prestação de contas com o passado.

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Infelizmente, não consegui cumprir com a minha intenção: o texto acabou ficando longo. Imagine se eu tivesse me proposto a escrever sobre mais aspectos da filmografia de Malick?


PS: Cinzas do Paraíso ou Dias de Paraíso???? Inicialmente eu colocaria Cinzas do Paraíso, que foi o nome pelo qual eu conheci o filme de Malick muito antes de assisti-lo. Ao locá-lo, a capa do DVD - antigo - trazia o nome Dias de Paraíso. Na dúvida, fiquei com o DVD. O livro de Peter Biskind (Como a geração sexo, drogas e rock n' roll salvou Hollywood) se refere ao filme como Cinzas do Paraíso. Pra salvar a prosa da confusão talvez seja melhor ficar com o nome original do filme, Days of Heaven (Terrence Malick, 1978).

sexta-feira, setembro 16, 2011

Singularidades de Manoel de Oliveira



Não é de estranhar que Manoel de Oliveira reserve as melhores falas de Singularidade de uma Rapariga Loura (2009) ao personagem do tio Francisco (Diogo Dória): ora pois, como diria um autêntico português, ele é o alter ego de Oliveira, o único personagem sóbrio de todo o filme. De início pensamos tratar-se de um carrasco insensível, um homem amargurado que praticamente boicota a felicidade do sobrinho Macário (Ricardo Trêpa), despedindo-o quando toma conhecimento das suas intenções de casar-se com a bela vizinha Luísa (Catarina Wallenstein). Ocorre que, assim como Macário, também nos apaixonamos de imediato pela bela Luísa e seu leque chinês, de forma que torcemos por ele.

A mesma imagem que confunde a cabeça de Macário engana os nossos sentidos: se converterá numa verdadeira armadilha, como saberemos. Bem como ele, enxergamos apenas a superfície, o invólucro, não o seu conteúdo. Aquilo que vemos – ou talvez, aquilo que queremos ver – não comporta imperfeições ou questionamentos; sendo assim, como julgar por mal uma imagem imaculada, cândida como a de Luísa?

A virada de mesa, que determinará o verdadeiro julgamento que faremos do tio, vem da mesma linhagem retórica que levou Manoel de Oliveira a costurar seus últimos filmes: a ironia (que, aliás, foi muito bem aproveitada do texto de Eça de Queiroz). O tio, que já enxergava o conteúdo desde os primeiros flertes, tentou avisar o jovem contador da impostora, porém foi injustamente tomado por insensível, desumano. Ao final, entenderemos que Macário deveria tê-lo escutado, mas aí já terá sido tarde. A cena em que o tio aceita o sobrinho de volta como colaborador e aprova seu casamento, mesmo desgostoso de suas decisões matrimoniais, é um primor de realização - dá até pra imaginar Oliveira se divertindo atrás das câmeras, sarcástico.

Tudo em enxutos 63 minutos. Não dá pra desrespeitar um senhor de mais de 100 anos de idade.

segunda-feira, setembro 12, 2011

Vincente Minnelli no CCBB

Não havia visto qualquer um dos títulos listados abaixo. Valeu a espera (inconsciente) para assistí-los em película 35mm. O catálogo elaborado para a Mostra, assinado por Luis Carlos Oliveira Jr. e Sérgio Alpendre, ficou impecável.

Deus Sabe Quanto Amei (Some Came Running, 1958) - Obra Prima!!!  Tudo funciona à perfeição: casting, interpretações, cores, luz, roteiro e direção. Está à altura dos melhores filmes de Minnelli, senão o melhor.


A Lenda dos Beijos Proibidos (Brigadoon, 1954) - um musical nas Highlands da Escócia (pena que foi filmado em estúdio); um conto de fadas. A parte urbana da estória (no final) é fundamental pra valorizar o bucolismo da cidade fantasia de Brigadoon. O mais fraco do conjunto.

Madame Bovary (1949) - o filme vale pela cena do baile.

A Cidade dos Desiludidos (Two Weeks in Another Town, 1962) - uma bela meditação a respeito dos rumos que a indústria cinematográfica tomava: a projeção (foto acima) de Assim Estava Escrito (1952) dentro do filme evidencia isso - uma Nova Ordem ditava as regras para a Velha Hollywood (representada por Kirk Douglas e Edward G. Robinson). A partir desse filme passei a entender a fascinação exercida por Cyd Charisse: quando em cena, não há nada capaz de prender a atenção do espectador a não ser ela.

Paixões sem Freios (The Cobweb, 1955) - uma lição de como administrar uma trama que gira em torno do nada - a troca de uma cortina (parece absurdo, mas é isso mesmo). Por mais cliché que seja esse comentário, não vejo melhor ocasião para empregá-lo: Minnelli literalmente pinta com a luz. Ainda estou para ver um filme com Gloria Grahame que não pegue fogo.

Gigi (1958) - É um crime a cópia do filme em DVD que anda circulando pelo Brasil. Uma demonstração perfeita de que é impossível apreciar no formato standard 1.37:1 um filme concebido no formato 2.35:1. A melhor experiência 3D que tive assistindo a um filme em formato 2D: as cores literalmente saltavam da tela!

Agora Seremos Felizes (Meet me in St. Louis, 1944) -  tristeza em um musical... quem mais seria capaz de fazer um musical melancólico a não ser Minnelli? Enquanto a Europa ardia em chamas, Hollywood se ocupava em vender o american way of life. 

quarta-feira, setembro 07, 2011

Ex-Isto (Cao Guimarães, 2010)





Fiquei curioso para ler o livro Catatau, de Paulo Leminski (1944-89), que serviu de base para a realização do filme Ex-Isto (2010), de Cao Guimarães. Embora eu saiba que não se trata de uma adaptação convencional, o genial ponto de partida da empreitada se encontra todo lá: uma viagem imaginária do filósofo racionalista francês René Descartes (interpretado brilhantemente por João Miguel) ao Brasil, desembarcando como membro da comitiva do holandês Maurício de Nassau (1604-1679) na ocupação de Pernambuco. Desse mote interessantíssimo Cao Guimarães extraiu um filme sensorial, exuberante, quase tátil, repleto de cores, sons e “cheiros”. Uma verdadeira viagem pelo Brasil das contradições, dos paradoxos, da riqueza natural e do povo resignado, que mesmo diante dos infortúnios encontra alegria onde prevalece a miséria.

João Miguel começa bem vestido, carregado de trajes de época dignos de um mosqueteiro e aos poucos vai se despindo, peça por peça, culminando num banho de mar totalmente nu - reflexo do calor tropical insuportável e da necessidade do filósofo de se aproximar/tocar/sentir nossa exuberância: água, terra e ar. São dois extremos bem captados por Cao Guimarães: no início bem trajado, fotografado no segundo andar de uma biblioteca, “engolido” pela quantidade de livros que o circundam; no final despido, fotografado em uma praia do nosso extenso litoral, banhado pela areia, o sol e as águas do mar. O desempenho mudo de João Miguel é a alma do filme, no estilo “estou, logo existo”. O voice-over representa seu fluxo de consciência e justifica a célebre frase “penso, logo existo”. Ótimo filme.