domingo, setembro 28, 2014

Era Uma Vez em Nova York (James Gray, 2013)




É absolutamente inevitável fazer uma comparação entre Era Uma Vez Em Nova York e O Poderoso Chefão II (Francis Ford Coppola, 1974), ainda mais quando a sessão cinematográfica de um dista apenas uma semana da outra - o filme de Coppola foi exibido recentemente no ciclo de Clássicos do Cinemark, refrescando a minha memória com as suas imagens. A imigração é o ponto de partida de ambos, cujos personagens fogem dos conflitos originários em território europeu no início do século passado, em busca do sonho americano na terra do Tio Sam. James Gray, ainda, adota a fotografia em tom sépia que consagrou a trilogia do Chefão e a famosa locação de Little Italy que rendeu inúmeros travellings memoráveis de De Niro na cobertura dos edifícios da região. Alguém comentou que Era Uma Vez na América (Sergio Leone, 1984) também estabelece a mesma ponte, o que me parece ser verdade, ao menos até onde minhas lembranças me permitem chegar, já que faz muito tempo que o vi.

Esse é o primeiro filme de época de Gray. Em todos os outros quatro seus personagens também são imigrantes ou descendentes deles, Fuga para Odessa (1994), Caminho Sem Volta (2000), Os Donos da Noite (2007) e Amantes (2008), embora nenhuma dessas produções se preste a realizar um relato exclusivo sobre essa questão. Era Uma Vez em Nova York é aquela que chega mais perto disso (intenção, inclusive, explícita no título original The Immigrant), especialmente na primeira metade, antes da entrada em cena de Orlando, o Mágico (Jeremy Renner). Desde a tomada que abre o filme, de uma das janelas do navio que atraca em solo americano, enquadrando a Estátua da Liberdade, à triagem dos tripulantes na Ilha Ellis, tudo dá a entender que a ideia é abordar o (grande) tema da imigração com ênfase no seu aspecto mais sórdido - para ganhar a vida, eles se submetem às maiores crueldades, abrindo mão das suas crenças e valores morais. O diretor evita o tempo todo associar a ideia de triunfo ao périplo desses personagens, ao contrário do que fizera Coppola com a trajetória do jovem Vito Corleone (Robert De Niro).

Da segunda metade em diante o melodrama dá as caras, com explosões dramáticas frequentes, na tentativa inexequível de conciliar o destino dos três personagens. Não requer muita astúcia da parte do espectador para farejar a tragédia presente em cada fotograma. A revelação final nada mais é do que a verbalização literal do que James Gray se esforçou para nos fazer ver com suas imagens, julgando-nos capazes de montar o quebra cabeça das intenções de Bruno Weiss (Joaquin Phoenix) por nossa própria conta. Entretanto, o verdadeiro impacto da descoberta exige que exerçamos com intensidade a empatia estabelecida com Ewa (Marion Cotillard), que não tinha meios de reconhecer a armação a qual foi submetida. O maior mérito dos envolvidos na produção, sobretudo roteiristas, diretor e ator é conseguir arrancar do público a absolvição de Bruno Weiss, cujo comportamento ambíguo desperta mais repulsa do que compaixão. A revelação é a sua confissão, tendo o público como mediador. Por meio da nossa identificação com o drama de Ewa, Gray testa a nossa capacidade de perdoar.

sábado, setembro 20, 2014

Eles Voltam (Marcelo Lordello, 2012)



Ainda que o meu entusiasmo por Eles Voltam não se compare ao arrebatamento proporcionado pelas últimas produções provenientes de Pernambuco, é inegável que o material possui uma sensibilidade que o distingue dos outros trabalhos gerados nesta região. O enfrentamento das forças arcaicas colonialistas frente à disposição corrente das relações urbanas contemporâneas, característico do cinema pernambucano em atividade, encontra uma abordagem menos hostilizada nas mãos de Lordello - ele investe mais na aproximação e no entendimento do que no conflito, distanciando-se do caráter violento a qual outras abordagens estiveram associadas. A protagonista de nome Cris (Maria Luiza Tavares), uma pré-adolescente de 12 anos, é forçosamente submetida a um rito de passagem, curto, é verdade, mas bem erigido, composto por cenas e situações bastante inventivas. Lordello testa o tempo todo nosso preconceito, construindo sua narrativa de forma a fazemos um julgamento prévio de algumas questões, para logo em seguida sermos desarmados pelo desenrolar dos eventos. O mundo "conspira" o tempo todo contra ela, que se vê obrigada pouco a pouco a reagir, experimentando na pele o que seus pais se esforçaram para lhe poupar. Dessa vivência involuntária e até então indesejada, desabrocha uma mulher.

sábado, setembro 06, 2014

O Jogo da Vida (Maurice Capovilla, 1977)


Eu até estava disposto a escrever alguma coisa sobre o filme, mas encontrei o texto do Gardnier no site da Contracampo e me senti intimidado. A percepção dele se tornou a minha, bem mais abrangente do que eu seria capaz de considerar. Quem preferir, pode acessar o link.

Por Ruy Gardnier

O cineasta e seus pobres

Se o subdesenvolvimento é fator patente na obra de Maurice Capovilla, logo o seu aspecto mais flagrante tomará forma com seu segundo filme: a miséria, a fome. Não à toa, o protagonista do filme é seu profeta: O Profeta da Fome. Nesse filme, tratava-se de mostrar a miséria brotando de cada estômago, transformando-se em miséria espiritual e por fim virando um grande espetáculo de cidade grande. Fazendo da fome o tótem por excelência do Terceiro Mundo, Capovilla faz em seu mais famoso filme uma estética do choque – declaradamente baseada na "Eztetyka da Fome" glauberiana –, uma arte da repugnância, da fruição incômoda, do cuspe na cara do dominante. É um cinema da revolta, da denúncia. Um filme que exige mudanças.

Quase dez anos mais tarde, Capovilla passa a tratar a fome, mais uma vez. Dessa vez, a intenção não é abertamente política, e a fome não é mais objeto de repugnância. Num momento, poderíamos pensar em conformismo. Mas estaríamos equivocados: O Jogo da Vida é uma reflexão ainda mais profunda, um questionamento ainda mais importante. Se O Profeta da Fome é um filme que foi feito a partir da pergunta "Como é possível viver assim?", O Jogo da Vida foi feito a partir da investigação dessa pergunta. O filme é uma apaixonada declaração: "eles vivem assim" (e aí é de se perguntar qual exatamente é o filme mais efetivo politicamente).

Não se trata de um filme que trabalha o nojo, o incômodo. Eles como que foram purgados nesses 8 anos que separam um filme do outro. Os elementos do choque não são jogados na cara do espectador, mas antes integrados à vida do personagem de forma que adquiram um sentido para além do nojo. O Profeta da Fome é uma denúncia, é um filme que brota do desespero, do impossível que é continuar vivendo dessa forma. Daí a forma exploratória com que os personagens são tratados, mais "tipos" do que verdadeiras pessoas. Em O Jogo da Vida, porém, dá-se uma mudança sensível – que entretanto opera mudanças radicais –: percebeu-se que É possível viver assim, que É possível e que assim se vive. Assim, a estética do choque – que é o equivalente estético da luta de classes – é substituída por uma outra forma de filmar, uma que não vê beleza apenas na revolução ou na denúncia, mas que tira partido das pequenas coisas, uma arte do detalhe, uma arte do instante, do passar do tempo. Se o primeiro filme precisa de uma classe burguesa para desabafar (e encara o cinema como um instrumento contra a alienação), o segundo já é o mergulho indistinto na classe pobre, sobretudo nos miseráveis sem destino que não têm oportunidade e são jogados no mundo do biscate e da marginalidade.

O Jogo da Vida conta a história de três homens que perambulam pela cidade de São Paulo (mas poderia ser qualquer cidade grande) procurando alguma coisa pra fazer. Um, mais jovem, era operário; outro, um apostador; e o outro, um metido a malandro. Juntos, eles parecem invencíveis, procurando a maneira certa de achar um otário para degolar no jogo de sinuca. Separados, todos mostram a insuficiência de viver sem renda: um briga em casa por falta de dinheiro, o outro chora na cama, outro tem o barraco destruído pelos oficiais do governo. Na grande noite deles, em que eles estão se fazendo, aparece um malandro que é mais malandro que eles e papa tudo.

Mas o mais importante no filme é o tom encontrado para narrar todas essas mazelas que poderiam dar num melodrama mexicano ou num filme fake de contestação. Todos os efeitos artificialescos são abandonados; todas as referências à ideologia são descartadas. Não estamos mais aqui no terreno em que o intelectual filma exploratoriamente o pobre sabendo exatamente aquilo que é preciso para que o pobre alcance uma cidadania (o que é a ideologia clássica dos filmes medianos de esquerda à la CPC); estamos num terreno em que o intelectual abandona seus prejulgamentos, sua cultura de livros e respostas fáceis e se mistura à multidão, sem querer ser maior que os outros, sem querer deter um saber (que na verdade ele não tem) que os outros, "alienados", não têm. O intelectual se dissolve como cineasta e passa a ser observador interessado, passa a amar os personagens pelo que eles são (pessoas simples) e não pelo que eles podem ser (classe revolucionária). O trabalho de encenação de Capovilla recebe essa mudança como mudança estrutural do cinema: ele deve registrar, não denunciar; realizar não uma imagem justa, mas justo uma imagem, como nos dizeres de Godard. O Jogo da Vida é terno, cândido, doce como um aceno. Toda essa candura, quando filma uma realidade torpe e sem saída, revela uma desesperança forte que atinge diretamente o espectador, que deve amar os personagens porque eles são homens, porque eles sofrem, e não mais porque eles representam uma classe ou um potencial revolucionário.

É notório que nos filmes brasileiros engajados fala-se mais da pobreza do que mostra-se os pobres. É de se questionar se os pobres aí não residiam mais como massa de manobras do que como qualquer outra coisa. É só ver BarraventoCinco Vezes Favela, as cenas de ficção de Cabra Marcado Para MorrerO Desafio e daí em diante: filmes em que os pobres só aparecem para encarnar um ideal, o da luta de classes; ou então para servirem de denúncia. Com O Jogo da Vida, o foco de atenção desse cinema muda, a vida vale mais do que o dogma, o cineasta deixa de ser sabichão e filma para aprender. E como todo aprendizado aplicado, O Jogo da Vida é um filme comovente.