Eu até estava disposto a escrever
alguma coisa sobre o filme, mas encontrei o texto do Gardnier no site da
Contracampo e me senti intimidado. A percepção dele se tornou a minha, bem mais
abrangente do que eu seria capaz de considerar. Quem preferir, pode acessar o
link.
Por Ruy Gardnier
O cineasta e seus pobres
Se o
subdesenvolvimento é fator patente na obra de Maurice Capovilla, logo o seu
aspecto mais flagrante tomará forma com seu segundo filme: a miséria, a fome.
Não à toa, o protagonista do filme é seu profeta: O Profeta da Fome. Nesse
filme, tratava-se de mostrar a miséria brotando de cada estômago,
transformando-se em miséria espiritual e por fim virando um grande espetáculo
de cidade grande. Fazendo da fome o tótem por excelência do Terceiro Mundo,
Capovilla faz em seu mais famoso filme uma estética do choque – declaradamente
baseada na "Eztetyka da Fome" glauberiana –, uma arte da repugnância,
da fruição incômoda, do cuspe na cara do dominante. É um cinema da revolta, da
denúncia. Um filme que exige mudanças.
Quase dez anos mais
tarde, Capovilla passa a tratar a fome, mais uma vez. Dessa vez, a intenção não
é abertamente política, e a fome não é mais objeto de repugnância. Num momento,
poderíamos pensar em conformismo. Mas estaríamos equivocados: O Jogo da
Vida é uma reflexão ainda mais profunda, um questionamento ainda mais
importante. Se O Profeta da Fome é um filme que foi feito a partir da
pergunta "Como é possível viver assim?", O Jogo da Vida foi
feito a partir da investigação dessa pergunta. O filme é uma apaixonada declaração:
"eles vivem assim" (e aí é de se perguntar qual exatamente é o filme
mais efetivo politicamente).
Não se trata de
um filme que trabalha o nojo, o incômodo. Eles como que foram purgados nesses 8
anos que separam um filme do outro. Os elementos do choque não são jogados na
cara do espectador, mas antes integrados à vida do personagem de forma que
adquiram um sentido para além do nojo. O Profeta da Fome é uma
denúncia, é um filme que brota do desespero, do impossível que é continuar
vivendo dessa forma. Daí a forma exploratória com que os personagens são
tratados, mais "tipos" do que verdadeiras pessoas. Em O Jogo da
Vida, porém, dá-se uma mudança sensível – que entretanto opera mudanças
radicais –: percebeu-se que É possível viver assim, que É possível e que assim
se vive. Assim, a estética do choque – que é o equivalente estético da luta de
classes – é substituída por uma outra forma de filmar, uma que não vê beleza
apenas na revolução ou na denúncia, mas que tira partido das pequenas coisas,
uma arte do detalhe, uma arte do instante, do passar do tempo. Se o primeiro
filme precisa de uma classe burguesa para desabafar (e encara o cinema como um
instrumento contra a alienação), o segundo já é o mergulho indistinto na classe
pobre, sobretudo nos miseráveis sem destino que não têm oportunidade e são
jogados no mundo do biscate e da marginalidade.
O Jogo da Vida conta
a história de três homens que perambulam pela cidade de São Paulo (mas poderia
ser qualquer cidade grande) procurando alguma coisa pra fazer. Um, mais jovem,
era operário; outro, um apostador; e o outro, um metido a malandro. Juntos,
eles parecem invencíveis, procurando a maneira certa de achar um otário para
degolar no jogo de sinuca. Separados, todos mostram a insuficiência de viver
sem renda: um briga em casa por falta de dinheiro, o outro chora na cama, outro
tem o barraco destruído pelos oficiais do governo. Na grande noite deles, em
que eles estão se fazendo, aparece um malandro que é mais malandro que eles e
papa tudo.
Mas o mais
importante no filme é o tom encontrado para narrar todas essas mazelas que
poderiam dar num melodrama mexicano ou num filme fake de contestação.
Todos os efeitos artificialescos são abandonados; todas as referências à
ideologia são descartadas. Não estamos mais aqui no terreno em que o
intelectual filma exploratoriamente o pobre sabendo exatamente aquilo que é
preciso para que o pobre alcance uma cidadania (o que é a ideologia clássica
dos filmes medianos de esquerda à la CPC); estamos num terreno em que
o intelectual abandona seus prejulgamentos, sua cultura de livros e respostas
fáceis e se mistura à multidão, sem querer ser maior que os outros, sem querer
deter um saber (que na verdade ele não tem) que os outros,
"alienados", não têm. O intelectual se dissolve como cineasta e passa
a ser observador interessado, passa a amar os personagens pelo que eles são
(pessoas simples) e não pelo que eles podem ser (classe revolucionária). O
trabalho de encenação de Capovilla recebe essa mudança como mudança estrutural
do cinema: ele deve registrar, não denunciar; realizar não uma imagem justa,
mas justo uma imagem, como nos dizeres de Godard. O Jogo da Vida é
terno, cândido, doce como um aceno. Toda essa candura, quando filma uma
realidade torpe e sem saída, revela uma desesperança forte que atinge
diretamente o espectador, que deve amar os personagens porque eles são homens,
porque eles sofrem, e não mais porque eles representam uma classe ou um
potencial revolucionário.
É notório que nos
filmes brasileiros engajados fala-se mais da pobreza do que mostra-se os
pobres. É de se questionar se os pobres aí não residiam mais como massa de
manobras do que como qualquer outra coisa. É só ver Barravento, Cinco
Vezes Favela, as cenas de ficção de Cabra Marcado Para Morrer, O
Desafio e daí em diante: filmes em que os pobres só aparecem para encarnar
um ideal, o da luta de classes; ou então para servirem de denúncia. Com O Jogo
da Vida, o foco de atenção desse cinema muda, a vida vale mais do que o dogma,
o cineasta deixa de ser sabichão e filma para aprender. E como todo aprendizado
aplicado, O Jogo da Vida é um filme comovente.
Olá, Rodrigo. Como vai?
ResponderExcluirFaz bastante tempo que estou atrás desse filme e não o encontro em lugar nenhum. Como você fez para assistir? Sabe me indicar onde posso comprá-lo? Tem uma cópia? Qualquer ajuda me deixará muito grata. Meu e-mail é nadiabense@gmail.com
Abraço,
Nádia.
Nádia, obrigado pela visita! Eu consegui assistir a ele graças ao Canal Brasil. Gravei-o a uns três anos atrás, mas só o vi em setembro do ano passado. Não sei como orientá-la a conseguir esse filme de outra forma.
Excluir