segunda-feira, dezembro 30, 2013

Memórias do Cárcere (Nelson Pereira dos Santos, 1984)


Da esmagadora quantidade de filmes que retratam a ditadura militar no Brasil, sobretudo aqueles que se prestam a uma abordagem mais direta da questão, apenas uma minoria consegue escapar do estigma da tortura. Enquanto alguns empregam recursos narrativos ou de linguagem (cinematográfica) para sugerir o tema, outros só veem seu discurso validado, ou se encontram verdadeiramente respaldados, quando a prática é explicitamente explorada. O segundo exemplo sempre corre o risco de se tornar apelativo, especialmente quando mal trabalhado, ao apostar na empatia do público com os personagens na base da marra – basta pensar no uso de cobaias em pesquisas científicas, cujas imagens são suficientemente capazes de despertar repulsa mesmo em um círculo de entusiastas inflexíveis.

Embora Nelson Pereira dos Santos não tenha feito um filme da ditadura militar no Brasil ao adaptar Memórias do Cárcere de Graciliano Ramos (ela já estava enfraquecida, mas não de todo exterminada), ele aproveitou a urgência da questão para resgatar o livro do autor alagoano que descreve sem rodeios sua experiência como prisioneiro durante o Estado Novo de Getúlio Vargas. Mesmo que a distância de quase 50 anos que separa os dois governos autoritários possa ter contribuído para corroborar com práticas mais duras de tortura, a ponto de justificar o seu emprego em produções da época (o assunto ainda estava saindo do forno), Nelson adota o discurso estoico de Graciliano Ramos, fundamentado no domínio da palavra e da escrita (na educação, no sentido mais amplo do termo), para condenar os procedimentos abomináveis praticados pelos agentes da lei em vigência. Nele, a violência física nunca é explicitada; sempre que ela está prestes a ser cometida, um fade out poupa o espectador do espetáculo lamentável. O diretor, contudo, não economiza negativo para mostrar a miséria da condição de vida dos presos, bem representada pela precária alimentação dos mesmos – que motiva o próprio Graciliano a se negar a comer o que era servido.

Das pouco mais de três horas de projeção, o filme se dedica quase que exclusivamente ao período em que Graciliano esteve encarcerado. Após uma breve aparição do mesmo em uma repartição pública do Alagoas, que registra a Intentona Comunista de 1935, seguida de uma cena em casa com a mulher (Glória Pires) e filhos, logo ele é encaminhado para o périplo de aproximadamente um ano por cárceres do país. Por meio dos presos que dividem o espaço com o escritor, sejam eles políticos ou comuns, Nelson traça um panorama da população brasileira com ênfase nos aspectos determinantes do nosso atraso, próprio dos países subdesenvolvidos. A ignorância funcional salta aos olhos, sobretudo na terceira e derradeira parte, quando os companheiros, e até mesmo os seus detratores, já reconhecem a fama dos seus escritos. A cena em que Graciliano (Carlos Vereza) faz a correção do texto dos comunistas, contracenando com Tonico Pereira, é hilária. Um tom mais grave é empregado quando uma autoridade lhe solicita um discurso para ser pronunciado na data do aniversário do diretor do presídio, a qual lhe é negada – a argumentação é perfeita, impecável, embora seja involuntariamente humilhante.

Sem amenizar o tom da jornada de sofrimento e punição, Nelson se serve da prosa de Graciliano Ramos para veicular o seu discurso, mais calcado na esperança de mudança do que na permanência da estupidez – vale lembrar que na época do lançamento do filme o movimento pelas “Diretas Já” estava a pleno vapor. No último terço do filme, em que Carlos Vereza encontra-se de cabeça raspada por exigência da direção carcerária, sua figura assemelha-se a de Gandhi, fragilizado pelos sacrifícios assumidos em prol da sobrevivência moral. Recolhido em um canto do presídio, sentado ao lado de uma valise com suas valiosas anotações, enfraquecido pela dieta sofrível imposta e venerado pelos seus semelhantes, bem como pelas autoridades que o mantiveram sob custódia, Graciliano Ramos emerge com o único resquício de dignidade capaz de ser preservado em ambiente tão hostil. Pena que o seu bastião configure ainda hoje material escasso em nosso país. Um dos grandes filmes brasileiros.

sexta-feira, dezembro 20, 2013

Azul é a Cor Mais Quente (Abdellatif Kechiche, 2013)


A desconfiança é o meio mais apropriado para encarar a polêmica que cercou a exibição de Azul é a Cor Mais Quente em Cannes, que desde então vem acompanhando o filme em todas as praças em que ele estreia. Embora ela lhe proporcione uma exposição desmesurada, servindo como uma campanha de marketing (até certo ponto) involuntária, ela encobre, a ponto de cegar, a beleza que envolve o tratamento da questão – essencialmente, uma intensa relação amorosa entre dois seres-humanos. As cenas de sexo entre as duas atrizes, Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux, em especial a primeira, mais longa, são de fato muito bem escaneadas (daí que alguns espectadores se dispuseram a manifestar a sua indignação contra a causa – o homossexualismo). Mas também é fato que o diretor Abdellatif Kechiche desenvolve a sua Adèle (Adèle Exarchopoulos) ancorada, quase em absoluto, no desejo carnal, de forma que o apetite sexual imoderado dela por Emma (Léa Seydoux) parece ser a única força motriz capaz de propulsionar o leme da sua vida. Não é exagero afirmar que todo o restante na vida dela é significativamente mal resolvido, apesar de que a adolescência se encarrega de absorver boa parte da culpa por essa (maldita) condição. A adolescência, período da descoberta por excelência, funciona como uma espécie de álibi para Kechiche, que se esquiva da necessidade de explicar o inexplicável.

Como bem pontuou o Filipe Furtado em breve comentário no seu blog, o esquematismo da segunda parte, em que pesa a tentativa de se estabelecer a influência dos pais e do meio social (as cenas dos jantares se prestam a esse fim), dilui um pouco da força que o corpo de Adèle se esforçou para imprimir na primeira parte, quando fora extenuantemente explorado por Kechiche nos (perversos) closes do seu rosto e da sua boca. Aqui ele é acusado de voyeurismo, mas fosse o relacionamento explorado heterossexual, diriam que a sua câmera estava apaixonada pela protagonista. Afinal, quem não ficou?

segunda-feira, dezembro 09, 2013

As Damas do Bois de Boulogne (Robert Bresson, 1945)



“É o ‘interior’ que comanda. Sei que isso pode parecer paradoxal numa arte que é toda ‘exterior’. Mas vi filmes em que todo mundo corre e que são lentos. Outros em que os personagens não se agitam e que são rápidos. Constatei que o ritmo das imagens não tem o poder de corrigir toda lentidão interior. Só os nós que atam e desatam no interior dos personagens conferem ao filme seu movimento, seu verdadeiro movimento. É esse movimento que eu me esforço a tornar aparente por alguma coisa ou alguma combinação de coisas – que não seja só um diálogo”.
Robert Bresson

Eu vi As Damas do Boi de Boulogne sob a forte influência de Um Corpo que Cai (1958), de Alfred Hitchcock. Não que eu os tenha visto em sequência a ponto de relacioná-los quase que involuntariamente. A influência se deu pela minha relação com o filme de Hitchcock, que guardo na memória, cujo exemplar revela perfeitamente a ascendência do diretor sobre seus personagens por meio das histórias que ele elegeu para contar. Essa sensação de que existe uma entidade in command, uma figura que manipula, beirando o sadismo, o destino de seus personagens, perpassa toda a extensão de As Damas do Bois de Boulogne. Coincidentemente, ambas as tramas contam com um arranjo, revelado logo nas primeiras cenas, que envolvem personagens dispostos a exercer um domínio sobre o destino dos outros – por razões distintas. Por consequência desses arranjos, as vítimas deles se envolvem emocionalmente de tal modo que se apaixonam loucamente. Dos amantes loucos pode-se esperar qualquer coisa, tanto que Hitchcock encerra seu filme de forma trágica, enquanto Bresson termina o seu de forma redentora – espírito prevalecente na primeira parte de sua carreira.

Novamente, recorro ao excelente livro de Tony Pipolo, Robert Bresson – A Passion for Film, que se esforça para dissuadir estudiosos de Bresson de desvalorizar As Damas, fruto do flerte incipiente do diretor com o melodrama, apesar do fato de Bresson dividir com Diderot (autor do livro, cuja seção Jacques, o fatalista, deu origem ao filme) o mesmo interesse pelo livre arbítrio e o determinismo.

A passagem selecionada é relativamente longa, embora tenha sido editada por mim - no livro, o capítulo relacionado ao filme abrange quase vinte páginas. Preservei a língua original, o inglês, com o intuito de conservar a força do texto. Quem tiver paciência, será agraciado com uma bela análise do filme. Boa leitura!

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Por Tony Pipolo

Watching Les Dames one has the sense that its melodramatic is indeed infused by an otherworldly residue of the mythic and the sacred. But if, on one level, the characters seem to embody good and evil, the denouement asks us to believe that people can change and that the source of that change lies in yet another kind of power beyond the world. Morality is not merely personal in Bresson but is rooted in a premodern spirituality. Indeed Les Dames can be viewed as a contest between the dark forces of a pre-Christian world and death and resurrection through love and faith.

Hélène evokes not only the femme fatale of film noir, before the latter term had any currency, but a number of larger than life incarnations of the vengeful woman, from Medea and Clytemnestra to Racine´s Phaedra and the title character of Keats´s “La Belle Dame Sans Merci”, who lures braves knights to their deaths. The darkness of the imagery associated with Hélène and the gravity with which Bresson treats her give her a near mythic aura, in no small measure reinforced by the Spanish actress Maria Casarés´s hypnotic demeanor and Mona Lisa smile. Despite the problems Bresson had with her and she with him, she perfectly embodies the requisite qualities, as otherworldly as she would be in Cocteau´s Orpheus films. Though Hélène scheme falls short of the ultimate fatalities brought about by her legendary sisters, in the context of society to which she and Jean belongs she certainly calculates his social death.

The very polarities that the women in Bresson´s first two films occupy (the only two with mature women in principal roles) – namely, those devoted to the religious life and those of questionable morality – suggest the force of original sin in Bresson´s universe. Each film has a secondary female character who must be rescued from her fallen condition. In Les Anges Thérèse kills the man responsible for her imprisonment and is saved by Anne-Marie; in Les Dames Agnès disreputable past, Hélène instrument of revenge, is ultimately redeemed by the power of love. To clinch the matter, of the moment of redemption Thérèse, in nun´s habit, leaves Anne-Marie´s deathbed a new person, just as Agnès, in bridal gown, lying as if on a saint´s tomb, is roused from near death to a new, purified life. In a sense all three are novices who must die to their previous lives. Bresson´s apparent disposition toward spiritual rebirth requires immoral characters in need of reformation, yet it is also true that he often links sin to sexuality and that most later characters, including the male protagonists of the three films of the 1950s and the female adolescents of the three in the 1960s, are either insulated from or corrupted through sexual initiation. To appreciate all of this is to realize that the generic frame of Les Dames du Bois de Boulogne is largely skeletal and that Bresson had other things in mind.

Just as he would qualify Pickpocket´s affinity with the police or crime thriller by asserting that his main concern was the strange journey of two “souls” toward each other, Les Dames also concerns the union of two individuals after a strange journey. The love that finally binds the unlikely couple, Jean and Agnès, is beyond Hélène comprehension. Like Iago, whose evil schemes are underwritten by his envy of the love between Othello and Desdemona, Hélène cannot bear the thought that such a love can exist and that it can transform character. Where she miscalculates is to assume that Jean´s capacities and values, sprung from the same class predispositions, are identical to her own. The denouement therefore marks the affinity this film has with its predecessors and its successors.

As determined to chasten cinematic form as his narratives are to redeem sinners, Bresson was not content simply to alter the objectives of melodrama in line with his spiritual preconceptions. He engineered the mechanics of conventional cinematic storytelling into the machinery of formal and narrative design, embedding the contest of wills directly within the connective tissue of the film´s construction. Fades, dissolves, and cuts – those familiar, often redundant, tropes of sequential cinematic logic – are here loaded with moral and psychological weight, executing Hélène´s calculated will even as they advance the narrative inexorably toward an end she cannot foresee. Just as Iago´s designs propel nearly every move of Othello´s plot, Hélène´s insidious plan becomes – until it is disrupted – the blueprint of the film´s progression, its storyboard. The detailed analysis of the film´s deployment of transitional devices (e.g., fades and dissolves) is intended to reinforce that idea, demonstrating how Bresson turned such structural conventions into instruments of narrative control. In this way the moral contest of wills that drives the narrative is mirrored directly by the alternating implications of fades and dissolves.

sábado, novembro 30, 2013

Blue Jasmine (Woody Allen, 2013)


Sempre que eu abuso demais do lado analítico do meu cérebro, só um intensivo em matéria de humanas para reestabelecer o meu equilíbrio mental. O cinema sempre foi a minha escolha predileta para exercer essa função. A música também cumpre muito bem esse papel. Mesmo que as circunstâncias que costumam me levar a eles sejam bem mais abrangentes, eu gosto do caráter terapia que por vezes eles assumem – naturalmente, quando se prestam a isso. Nessas ocasiões, até o ato de escrever acaba sendo um exercício de descarga emocional – embora um tanto quanto custoso (pelo menos pra mim). A fadiga do raciocínio dificulta a escolha das palavras, mas não esconde a satisfação de ver um texto tomar corpo, mesmo quando curto.

Eu ainda não fui capaz de estabelecer a posição que Blue Jasmine ocuparia numa provável relação minha de melhores do Woody Allen. Não estou certo de que “se trata do melhor Woody Allen desde Match Point (2005)” como afirmam alguns sites, mesmo porque o meu Match Point é outro filme dele, Crimes e Pecados (1989). Essa é uma briga que eu não compro porque é natural que cada um tenha a sua preferência. Sobretudo em uma filmografia como a de Woody Allen, com inúmeros títulos excelentes, não seria incomum encontrar listas bastante díspares - sem qualquer prejuízo para a qualidade das seleções.

O diretor norte-americano não dá propriamente um testemunho sobre a crise financeira que assolou os EUA em 2008 (política nunca foi o seu forte), mas aproveita o mote para explorar uma estrutura de roteiro que já lhe valeu um registro cômico da situação, em Trapaceiros (2000), desenvolvida em Blue Jasmine numa inclinação mais dramática: enquanto no primeiro os small time crooks do título original ascendiam da classe média a classe abastada num verdadeiro golpe (hilário) de sorte do destino, no segundo a socialite casada com um corrupto vê a sua condição de fartura material ruir junto com a falência dos bancos que os bancaram (ao final, veremos que as coisas não foram bem assim...). Em ambos, Woody Allen investe na dicotomia burlesca que separa esses dois mundos, povoando as cenas com personagens caricatos, em uma decisão que garante a empatia do público ao mesmo tempo em que aponta as limitações de alcance do seu discurso. O registro cômico de Trapaceiros se mostra mais apropriado para abraçar esse formato. Em Trapaceiros, a risada tem um cunho de gozação; em Blue Jasmine, a presença dela pontua a narrativa de forma irônica.

O filme funciona perfeitamente como um precioso estudo de personagem (character study), valorizado pela atuação assombrosa de Cate Blanchett, bem como de todo o elenco de suporte. Mais um conto moral de Woody Allen em que o acaso assume um papel fundamental, pregando uma peça no universo de certezas do espectador. O diretor puxou o meu tapete mais uma vez.

sábado, novembro 23, 2013

Paisagem na Neblina (Theo Angelopoulos, 1988)



Por Adrian Martin

No plano de abertura de Paisagem na Neblina, de Theo Angelopoulos, um garotinho, Alexandre (Michalis Zeke) e sua irmã pré-adolescente, Voula (Tania Palaiologou), emergem da escuridão e se aproximam de um ponto próximo à câmera. Param. A câmera começa a circular lentamente ao redor deles. Ela pergunta: “Você está com medo?” Ele responde: “Não, não estou.” De repente se separam e começam a andar, desta vez mais rápido, em direção a uma estação de trem que agora vemos ao longe.

Essa tomada de um minuto é impressionante e define o padrão do que virá em seguida. Pessoas e veículos obstinadamente se mantendo em seus caminhos, alheios a todo o resto, algumas vezes parando, outras mudando de velocidade; paisagens desertas ou sombrias com uma única referência bem definida; sons naturais e estridentes substituídos, quando a cena se esvazia, pela música intensa de Eleni Karaindrou. E, sobretudo, a câmera de Giorgos Arvanitis circulando, avançando e recuando em um ritmo e com uma intenção sempre distintos da ação, sempre gravando a curiosidade, paixão, sabedoria e o pathos do olhar de Angelopoulos.

Tais padrões dão feição e forma aos eventos deliberadamente esparsos e em aberto da trama: as crianças fogem de sua casa e tentam chegar à Alemanha de trem para procurar um pai que talvez nem exista, encontrando, em seu caminho, estranhos que podem ser prestativos ou ameaçadores. Este é um road movie sombrio mas exultante, situado em algum ponto entre as crônicas de fragmentação do pós-guerra de Roberto Rossellini e os panoramas centrados em paisagens por Chantal Akerman que retratam uma “nova ordem mundial” vazia.

Quase nada nunca se junta nesses espaços e lugares sem nome entre Atenas e a fronteira alemã: enquanto Voula e Alexandre estão em um pátio, na frente deles um trator desatola um cavalo moribundo e, atrás deles, um grupo de convidados de um casamento sai do quadro cantando e dançando. É apenas na relação hesitante entre Voula e o músico itinerante Orestis (Stratos Tzortzoglou) que a imagem começa a zumbir com a tensão da atração e da repulsão. Contudo, isso dura apenas um pequeno e precioso intervalo de tempo: novamente essas crianças irão andar, parar e andar, ainda mais rápido, ao longo de uma estrada sem fim, enquanto a câmera se eleva bem alto no ar gélido e Orestis acena duas vezes uma despedida desamparada para ninguém.

sexta-feira, novembro 15, 2013

37ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo - Parte 2

Essa postagem tardou pra sair em virtude do aniversário de um ano do meu filho e dos compromissos profissionais acumulados no período. Ao mesmo tempo, ainda que involuntariamente, esse atraso permitiu que mais um filme fosse adicionado ao pacote, uma vez que a Itinerância da Mostra chegou ao SESC Ribeirão com uma pequena amostragem do grande Evento – 10 títulos. Se meu calendário ajudar, ainda terei a possibilidade de ver Centro Histórico (2012), com episódios dirigidos por Pedro Costa, Victor Erice, Manoel de Oliveira e Aki Kaurismäki, e Cães Errantes (2013), de Tsai Ming-liang. Torçamos!


A Morte Passou por Perto (1955), Stanley Kubrick (EUA)

O que me levou a essa sessão não foi propriamente a oportunidade de rever A Morte Passou por Perto, um dos filmes de Kubrick que não tenho muito em conta, mas sim os três curtas-metragens do início de sua carreira que compunham o Programa: Flying Padre: An RKO-Pathe Screenliner (1951), Day of the Flight (1951) e The Seafarers (1953). Eu desconhecia por completo a proposta dos três documentários, de forte cunho institucional – procurar qualquer resquício do que viria a ser o grande diretor é pura perda de tempo, nenhum deles se presta a isso. Ao menos, matei a minha curiosidade.


Salvo (2013), Fabio Grassadonia e Antonio Piazza (ITÁLIA)

A rigor esse filme não integrava a programação da Mostra. Ele havia estreado em circuito comercial na semana anterior, depois da elogiosa passagem pelo Festival do Rio – o entusiasmo do Luiz Carlos Merten me levou a fazer essa escolha. Eu havia perdido o horário da cinebiografia do Paradjanov e a grade de programação do Frei Caneca não ajudava muito – outras praças traziam melhores opções. O filme funciona quando se detém na construção da improvável relação amorosa entre Salvo, o assassino profissional do título, e a irmã cega de uma de suas vítimas – o plano-sequência de abertura, que formaliza o encontro entre as partes, é impecável. Todo o ambiente fora dessa esfera não contribui muito para o impacto do conjunto. O domínio de espaço é memorável, mesmo sendo construído essencialmente por primeiros-planos, com a câmera colada nos personagens. O som exerce uma poderosa função dramática.



O Lobo Atrás da Porta (2013), Fernando Coimbra (BRASIL)

Um assunto batido que já rendeu até uma versão cinematográfica vulgar escandalosa: Atração Fatal (1987), de Adrian Lyne. A comparação é muito desonesta, beirando o desserviço, com imenso prejuízo para o filme de Coimbra. O roteiro não subestima a inteligência do espectador, preocupado em contextualizar a tragédia que se anuncia logo nas primeiras imagens. Por meio do depoimento dos envolvidos, num recurso narrativo que valoriza o clima de suspense gradativo que o diretor pretende instaurar (aproximando-o de um filme de terror), todos os atores encontram espaço para brilhar. Esse é, inclusive, um dos alicerces da produção: as interpretações. As longas tomadas sem cortes, cuidadosamente enquadradas, valorizam o desempenho dos atores, bem como a exploração do espaço cênico – a periferia do Rio de Janeiro. Bela estreia de Coimbra na direção de longas – seu curta Magnífica Desolação (2010) é muito bom. Tomara que o filme encontre um público volumoso quando do seu lançamento comercial no início do ano que vem. Potencial pra tanto ele tem.



O Bacanal do Diabo e Outras Fitas Proibidas de Ivan Cardoso (2013), Ivan Cardoso (BRASIL)

Um pot-pourri das produções do próprio Ivan Cardoso, explorando a extensão da sua carreira, somado a alguns curtos trechos produzidos recentemente para compor o tempo do longa-metragem. Assim como havia sido na noite anterior, nada como fechar a programação diária com uma comédia desmoralizante. Como o filme é constituído de vinhetas, é natural que algumas funcionem melhor do que outras. O segmento Bob Dylan is back in town, que fantasia uma orgia do cantor norte americano no Rio de Janeiro logo após uma das suas passagens pelo nosso país, é de rachar o bico. O bacanal do diabo dá as caras. No bate papo que se seguiu depois de findada a sessão, o diretor externou a sua indignação, no humor escrachado que lhe é característico, com relação ao vigente mecanismo de financiamento das correntes produções nacionais (que ele menospreza) – aproveitou para prestar reverência ao seu mentor, Rogério Sganzerla, cuja filha, Djin Sganzerla, se encontrava presente. Dificilmente ele será distribuído. Um filme de festival, literalmente.



La Jaula de Oro (2013), Diego Quemada-Díez (MÉXICO)

Esse foi o filme que eu vi na Itinerância da Mostra que chegou a Ribeirão via SESC. O diretor Quemada-Díez fez um road movie da desesperança, embora seus personagens, três adolescentes guatemaltecos, transbordem humanismo na tela. O sonho americano é o destino da longa travessia que eles se propõem a fazer, fugindo da miséria que assola o trajeto entre a Guatemala e o extenso território do México até a fronteira com os EUA. Não há concessões: para cada mão que acaricia, há sempre outra na espreita pronta para dar o tapa. O final é de cortar o coração; a jaula de ouro do título, uma sugestiva metáfora dos EUA, pode até ser revestida de um material precioso, nobre, opulento, mas não esconde seu conteúdo vazio, fútil, oco. A liberdade tão almejada pelos personagens não será encontrada nesta vida.

quinta-feira, outubro 31, 2013

37ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo - Parte 1

É uma pena que eu só tenha tido dois dias para desfrutar da programação da Mostra deste ano. A rigor, se eu considerar o final de semana no MIS, em companhia dos filmes de Kubrick, foram três dias. Passado os dias de vivência in loco, resta apenas a cobertura impressa e/ou eletrônica. Acompanhar o dia-a-dia do Evento nos diversos blogs e sites especializados é tão estimulante quanto frustrante. Estimulante porque o entusiasmo da cobertura contagia o leitor, ávido pela oportunidade de poder assistir aos títulos que mereceram uma análise; e frustrante porque a experiência não se limita apenas ao instante em que os olhos encontram a tela do cinema: existem as filas, os curtos intervalos que separam as sessões, os poucos momentos de reflexão devido ao corre-corre da programação, os trade-offs, as caminhadas, as refeições, etc. Enfim, pra quem gosta, é um prato cheio.

Meu primeiro dia foi bastante proveitoso, facilitado pela concentração atrativa de filmes em um único espaço, evitando que eu fizesse deslocamentos entre as sessões. Esses filmes estarão nesse post. No próximo post eu abordo o segundo dia, que me forçou a fazer escolhas difíceis, abrindo mão de boas promessas. Enfim, vamos ao que interessa.


Providence (1977), Alain Resnais

O rapaz responsável pela legendagem quase melou a festa dos presentes na sessão. Levou um tempo para que ele sincronizasse as falas às imagens correspondentes – dando margem para a distração. Em um filme de Resnais, que demanda atenção redobrada, isso pode comprometer a experiência. Prejudicou, mas não foi capaz de confiscar o encanto proporcionado pelos últimos 25 minutos de projeção – quando o jogo de encenação, caro ao seu autor, é desnudado magnificamente sob a regência do pouco lembrado John Gielgud (um excelente ator normalmente mal aproveitado). A presença de Dirk Bogarde me trouxe lembranças do Despair (1978), de Rainer Werner Fassbinder, exibido há dois anos na mesma sala, sem a mesma leveza do filme de Resnais. Leva um tempo para que o espectador mergulhe no labiríntico pesadelo do escritor Clive Langham (John Gielgud), cheio de imagens e situações (aparentemente) desconexas. Assim que a ficha cai, sobressai-se o humor refinado de Resnais e a elegância costumeira da sua direção. O personagem do jogador de futebol é impagável. A fluidez narrativa do mestre francês, que fez do sonho e da memória a matéria prima do seu cinema, contrasta com o calculismo exacerbado de Christopher Nolan no elogiado Inception (2010).



Escudo de Palha (2013), Takeshi Miike

Os orientais sempre souberam extrair bons exemplares do cinema de gênero norte-americano. Este é um deles. A rigor, o filme não traz nada de novo – a escolta de um assassino em primeiro grau mobiliza a força armada (a fim de garantir o seu julgamento e integridade física), que luta contra uma oferta volumosa de dinheiro feita pelo milionário avô da vítima a quem se dispuser a matá-lo. O argumento tem sido comparado com o de O Preço de um Resgate (1996), de Ron Howard, mas eu diria que está mais para um híbrido deste com o ótimo Rota Suicida (1977), de Clint Eastwood. Takeshi Miike segura bem o ritmo do filme, investindo em situações que colocam à prova a integridade moral dos responsáveis pela custódia do homicida.



A Rotina Tem Seu Encanto (1962), Yasujirô Ozu

Diz-se deste exemplar de Ozu que se trata de uma refilmagem de Pai e Filha (1949). De fato, o ponto de partida de ambos é o mesmo: pai (viúvo) e filha dividem o mesmo espaço, até que começam a ser “pressionados” por parentes e amigos a encontrar um pretendente para garantir o matrimônio da menina. No primeiro exemplar, a narrativa alterna melhor entre a rotina de ambos, fazendo com que dividam proporcionalmente o tempo de cena e o protagonismo do filme. No canto do cisne de Ozu, a rotina do pai é mais bem investigada, se valendo, inclusive, de uma inclinação cômica do relato, muito bem explorada pelo diretor para atenuar os transtornos inerentes à velhice. Mas não se engane: junto ao riso despretensioso das situações abordadas paira um tom de melancolia que insiste em permanecer conosco muito depois de findada a sessão.



A Garota do 14 de Julho (2013), Antonin Peretjatko

Eu desconhecia por completo a proposta do filme, mas fui vê-lo influenciado pelas sugestões de blogs que fariam a cobertura. No final das contas, descobri que a melhor alternativa para terminar a jornada da Mostra é uma comédia. O diretor apresentou o filme na abertura da sessão alertando o público para o caráter franco-francese (palavras dele) da produção, e mostrou-se entusiasmado com a oportunidade de presenciar a reação da plateia a um produto de universo restrito. Peretjatko retoma o tom libertário que caracterizou as primeiras produções da nouvelle vague, influenciado sobretudo por Godard (O Demônio das Onze Horas), para esculhambar o politicamente correto e o legado político e financeiro do ex-presidente Nicolas Sarkozy. Como bem pontuou Bruno Cursini em seu breve texto para o filme na Revista Interlúdio, Peretjatko “faz de seu primeiro filme algo livre, excitante, de uma inventividade anárquica bastante ingênua, ora dando vazão a uma selvageria satírica debochada, ora brincando ingenuamente com a linguagem cinematográfica”. 

terça-feira, outubro 22, 2013

Stanley Kubrick na 37ª Mostra

Por uma feliz coincidência, o show do Black Sabbath me levou a São Paulo no mesmo final de semana em que a Exposição Stanley Kubrick começava no MIS, juntamente com a exibição de todos os seus filmes em versão restaurada -  incluindo os curtas do início de carreira, exceto o longa de estreia, Medo e Desejo (1953). A curadoria da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, nesta 37ᵃ Edição, decidiu destacar o trabalho do diretor homenageando-o com essa preciosa programação além de promover o lançamento do livro, Conversas com Kubrick, do renomado crítico francês Michel Ciment.

A priori, minha ida a capital estava programada para o fim de semana passado, quando eu já havia negociado com a patroa a minha participação nos dois primeiros dias do aguardado Evento. Acabei sacrificando um pouco mais a paciência dela para estender a minha estadia por mais um final de semana (anterior à abertura), justificado pela oportunidade de assistir em primeira mão alguns dos filmes de Kubrick, sobretudo aquele que me faltava, Barry Lyndon (1975). A intensa procura por ingressos antecipados, contudo, me fez perder a exibição que eu mais ensejava ver, 2001 – Uma Odisséia no Espaço (1968). Para compensar a perda, foi preciso uma sessão seguida de O Estranho Caso de Angélica (2010), de Manoel de Oliveira, e Las Acacias (2011), de Pablo Giorgelli – sorte que a programação da capital me reservou essas duas preciosidades. Ainda rolou o Gravidade (2013), de Alfonso Cuarón, a que devo voltar em outra ocasião – mas já adianto que gostei do filme.

Como a fila para a Exposição estava quilométrica e esta permanece em cartaz até 12 de janeiro de 2014, vou aguardar a poeira baixar para visitá-la (na companhia da esposa, de preferência, para ela entender melhor a razão do favor prestado). Em 2011, essa mesma Exposição estava de passagem por Paris, na Cinemateca Francesa, bem como eu. Visitei-a e prometi que voltaria a ela caso viesse ao Brasil. Pretendo cumprir a promessa. Na época, até postei uma mensagem com as fotos (meia boca) que eu consegui tirar.





Doutor Fantástico (1964)

Dr. Strangelove’s humor is generated by a basic comic principle: people trying to be funny are never as funny as people trying to be serious and failing.
Roger Ebert

Na primeira vez em que eu o vi, em meados da década de 90 (cópia VHS), o impacto proporcionado pelo absurdo da proposta foi tamanho que meu riso mal se manifestava, numa situação típica de quem sente vergonha alheia por um mico que outra pessoa está pagando. Um riso nervoso, cheio de remorso. Eu não estava preparado para ver um assunto sério tratado com tal grau de sarcasmo. Acho que foi a minha primeira experiência com um verdadeiro exemplar da comédia de humor negro. Inesquecível, pra dizer o mínimo. A sessão no MIS me proporcionou uma verdadeira catarse. Dei gargalhadas junto com o público sem nenhum constrangimento. O filme continua afiadíssimo (especialmente no que tange o discurso), repleto de interpretações magistrais. Normalmente, o enfoque das abordagens fica voltado para o desempenho triplo de Peter Sellers e seu memorável Dr. Strangelove - curiosamente, o personagem com o menor tempo de cena. Desta vez, minha atenção ficou toda voltada para George C. Scott e seu General Buck Turgidson, o mais anárquico de todos. Como bem observou Roger Ebert, “Scott´s work is hidden in plain view. His face here is so plastic and mobile it reminds you of Jerry Lewis or Jim Carrey (in completely different kinds of movies). Yet you don´t consciously notice his expressions because Scott sells them with the energy and conviction of his performance. He means what he says so urgently that the expressions accompany his dialogue instead of distracting from it”. Meu Kubrick preferido junto com 2001 – Uma Odisséia no Espaço. Obra-prima absoluta.





Nascido para Matar (1987)

Dei uma segunda chance para um dos filmes de Kubrick que sempre me despertou pouco interesse. Nem a ocasião especial, com direito a cópia restaurada e toda a pompa da exibição, foi capaz de alterar a minha percepção. É um filme desigual, com uma primeira parte interessante e uma segunda parte decepcionante. Kubrick chegou tarde para dar o seu testemunho sobre a Guerra do Vietnã. O filme não chega aos pés dos seus outros exemplares que tiveram a guerra como objeto principal, Glória feita de sangue (1957) e Dr. Fantástico (1964). Muita estilização para pouco resultado.





Barry Lyndon (1975)

Os filmes históricos têm em comum com os filmes de ficção científica o fato de tentarmos recriar neles alguma coisa que não existe. E as descrições, que são as partes mais enfadonhas dos romances, não exigem, na tela, nenhum esforço do público, mas exigem muito dos cineastas!
Stanley Kubrick

Como eu já disse no início deste texto, Barry Lyndon era o único filme de Kubrick que me faltava. Hipercontrolado, longo e com um ritmo lento de condução. Tinha tudo para ser uma experiência pouco memorável, percepção essa que parece ter prevalecido na ocasião do seu lançamento. Por mais frio e distante que seja, acusação que sempre pautou a opinião dos seus detratores, é uma experiência que exige um tanto de paciência do espectador. Não cabe na tela pequena das TVs domésticas, cujas exibições estão sujeitas a constantes interrupções. Requer devoção absoluta. Um dos melhores Kubricks; muito mais do que “um filme de época”.

segunda-feira, outubro 14, 2013

Boa sorte, meu amor (Daniel Aragão, 2012)



Foi o texto de José Geraldo Couto em seu blog do IMS que me levou a Boa sorte, meu amor. Tivesse eu de escolher entre as diversas opções de sessões no Espaço Itaú do Frei Caneca sem a prévia consulta ao seu blog, minha predisposição dificilmente teria me levado a esse filme. Embora o texto de Zé Geraldo atribua à película uma impressão positiva, ele não deixa de apontar as fraquezas da proposta, “o filme ocasionalmente resvala, sobretudo em seu terço final, para um certo inchaço estético (distorções de luz e som, enquadramentos oblíquos, vertiginosos plongées) e para rupturas frontais com o realismo que, a meu ver, nem sempre se justificam. A tendência à alegoria corre o risco de afrouxar o impacto de uma narrativa contundente”. A oportuna comparação com O Som ao Redor (2012) foi o gatilho responsável por despertar o meu interesse, “Os bons filmes de uma safra costumam iluminar uns aos outros, nem que seja por contraste. Dessa perspectiva, O Som ao Redor e Boa sorte, meu amor são opostos que se complementam. Se o filme de Kléber Mendonça Filho é um prodígio de equilíbrio e sutileza, o de Daniel Aragão é “petulante, ambicioso, desgovernado”, como escreveu o jovem crítico Fábio Andrade na melhor críticaque li a respeito. É dessa desmesura que ele extrai sua força, ainda que exponha também suas fragilidades”.

Enfim, Boa sorte, meu amor é mais um filho legítimo da safra de filmes pernambucanos que se dispõe a tratar da herança que o passado remoto colonialista exerce sobre a vida urbana contemporânea. Daniel Aragão trabalha esse mote no cerne de uma relação amorosa, praticamente transpondo Romeu e Julieta para o inóspito agreste nordestino (com um final mais ameno). A “volta às origens”, que representa um episódio dentro da estrutura narrativa do próprio filme, escancara esse legado maldito reforçando a impossibilidade de subvertê-lo – depois de um desentendimento, Maria (Christiana Ubach) deixa Dirceu (Vinicius Zinn) e se refugia no interior, forçando-o a procurá-la; esse regresso repentino “às origens” levanta uma poeira indesejada há muito tempo assentada. Enquanto o romance de ambos se desenvolve sob as sombras dos arranha céus de Recife, protegidos pela impessoalidade das relações que caracterizam as aproximações urbanas contemporâneas, tudo vai bem - até então, aflora apenas os interesses convenientes à manutenção da ligação afetiva. Na hora do confronto com as tradições, em que as máscaras são obrigatoriamente deixadas de lado e a configuração das peças assumem outras perspectivas, todas as alternativas levam ao mesmo fim: o destino desses amantes já estava selado muito antes de eles aportarem no mundo.

sexta-feira, outubro 04, 2013

Miyamoto Musashi (Hiroshi Inagaki, 1954, 1955, 1956)


Eu estava disposto a escrever alguma coisa sobre o Elysium (2013), de Neill Blomkamp, mas calhei de ver a trilogia Musashi no mesmo final de semana e desisti - embora a recepção por parte da crítica tenha sido morna, minha impressão é mais positiva do que negativa, mas longe do encantamento proporcionado por Distrito 9. Eu desconhecia completamente a trilogia samurai, nome pela qual ela passou a ser conhecida, oportunamente recuperada pela Versátil Home Video. O cinema japonês anda em alta na distribuidora que não tardou a lançar o Portal do Inferno (1953), de Teinosuke Kinugasa, e cinco títulos do mestre Yasujiro Ozu (para o desgosto do cinéfilo, a Continental reinava absoluta nessa seara até então). Aos poucos, o cinema oriental ganha o destaque que lhe foi confiscado durante muito tempo. À medida que os títulos mais lembrados começam a apresentar sinais de esgotamento (inclusive alguns deles sendo laçados por mais de uma distribuidora), sobra espaço para os lançamentos com menor apelo comercial, nem por isso menos importantes. Quem é digno de uma bela revisão é o cinema chinês, recentemente lembrado pelo Filipe Furtado em uma lista pessoal de 100Filmes de Hong Kong.

A estrutura narrativa da trilogia assemelha-se à de um folhetim, com inúmeros personagens que vem e vão e reviravoltas que se sucedem aos montes, repletas de coincidências. À parte o aspecto cultural que distingue as duas produções, que vai além da dicotomia ocidente/oriente, a saga de Musashi guarda semelhanças com o recente Mistérios de Lisboa (2010), de Raoul Ruiz. A rigor, essa observação remonta às produções literárias de Eiji Yoshikawa e Camilo Castelo Branco cujos filmes em questão são adaptações. Ambas as produções, literárias e cinematográficas, criam fiéis caracterizações dos tipos que representam o japonês e o português, respectivamente. Sendo assim, não espanta que Mistérios de Lisboa seja irônico e debochado, enquanto Musashi opte pela rigidez e o respeito irrestrito às tradições (o papel da mulher é simbólico nesse sentido).

O eixo dramático concentra-se na trajetória do famoso espadachim, interpretado pelo inigualável Toshiro Mifune, e suas relações com o amigo desorientado Honiden Matahachi, a senhora interesseira Osugi e sua filha Akemi, os discípulos Joutaro e Iori e a apaixonada Otsu. O vai e vem de todos esses personagens é entrecortado pelos duelos que elevaram Musashi à condição de mito. O último deles, contra Kojiro Sasaki (Kôji Tsuruta) na ilha de Ganryûjima, é digno de antologia. A fotografia de Kazuo Yamada exerce um papel superlativo na produção, contribuindo definitivamente para fixar o memorável duelo na retina do espectador.

Um comentário do usuário foxfirebrand no IMDB, em junho de 2009, reforça a importância do filme como “peça de propaganda” para disseminar a cultura japonesa em pleno pós-guerra, quando o Japão se esforçava para reerguer-se depois da hecatombe proporcionada pelas duas bombas nucleares. “The importance of the Miyamo Musashi saga has been lost somewhat today, even in Japan. These were not just early high-quality color samurai movies, not just great films – they were a nationwide event, and a milestone in Japanese social evolution. The early 50s were a time of postwar healing, and there were unsettled questions about the national character. The Miyamoto Musashi saga used the past to dramatize issues of morality – and, even more important at the time, morale. Japan had no problem westernizing and living under the rules of law under terms imposed by victors in war – the knotty issue was, how much of the past do we keep alive in our daily thoughts and actions, and just how much of the real Japan, the one we remember, will our children and grandchildren inherit, once the aftermath of global war has subsided? Watch these films with such then-important issues in mind, and your experience will be deepened and enriched”.

Coincidentemente, um dos livros do Vicente Falconi que mantenho em casa, Gerenciamento pelas Diretrizes, começa com uma nota do próprio autor comparando as artes gerenciais às artes marciais. Ele abre o primeiro capítulo com nove mandamentos de Miyamoto Musashi, fundamentais para o exercício das artes (e, consequentemente, do bom gerenciamento):

1.      Não pense com desonestidade.
2.      O Caminho está no treinamento.
3.      Trave contato com todas as artes.
4.      Conheça o Caminho de todas as profissões.
5.      Aprenda a distinguir ganho de perda nos assuntos materiais.
6.      Desenvolva o julgamento intuitivo e a compreensão de tudo.
7.      Perceba as coisas que não podem ser vistas.
8.      Preste atenção até no que não tem importância.
9.      Não faça nada que de nada sirva.

segunda-feira, setembro 16, 2013

The Bling Ring (Sofia Coppola, 2013)


Eu entendo perfeitamente quem considera os filmes da Sofia Coppola chatos: ela repousa um olhar atento, alongado, minucioso sobre seus personagens endinheirados, normalmente famosos (ou em busca da fama), conduzindo a sua câmera observadora por “longos momentos desinteressantes”. Seus personagens estão sempre entediados, vagando solitários pelo mundo, tentando encontrar alguém ou alguma coisa que preencha o vazio de suas vidas ordinárias (a despeito de todo o glamour que as rodeia). Mas daí a considerar seus filmes ocos ou desprovidos de interesse são outros quinhentos.

O material que ela tinha em mãos para realizar The Bling Ring (2013) poderia sem muito esforço acabar terminando em mais um filme de Amy Heckerling (As Patricinhas de Beverly Hills, 1995). O assunto é muito bom e a tentação em empregar um tom sensacionalista ao relato não deve ter sido pouca (coisa que Hollywood gosta de fazer bastante). O filme de Sofia aborda esse sensacionalismo sem fazer dele o seu principal foco de interesse – a cena do tribunal, que evita o julgamento, é um bom exemplo. Sua câmera permanece o tempo todo centrada em seus personagens.

Aos que dizem que ela mantém um olhar isento, carente de julgamento, eu discordo. A personagem de Leslie Mann, Laurie, que faz a mãe de Nicki (Emma Watson), não precisaria constar no filme. Sofia, também roteirista, poderia abrir mão dela e se concentrar apenas na saga dos adolescentes, tornando sua presença meramente ilustrativa. As poucas vezes em que ela aparece em cena, especialmente no momento da entrevista a Nancy Jo Sales, são determinantes para ampliar o escopo de observação da diretora: o filme deixa de ser apenas sobre os jovens retratados e passa a ser de toda uma sociedade, doentia com a ideia de fama e estrelato. Ninguém sai ileso.

sexta-feira, setembro 13, 2013

Barbara (Christian Petzold, 2012)


A comentada aproximação entre A Vida dos Outros (Florian Henckel von Donnersmarck, 2006) e Barbara é oportuna uma vez que ambos os filmes retratam o modus operandi da Stasi, polícia secreta e inteligência da República Democrática Alemã (RDA), seja do ponto de vista de quem a integrava, no primeiro caso, seja da perspectiva de quem era perseguido por ela, no segundo caso. A despeito das preferências pessoais de cada um, uma sessão dupla daria um belo programa. As duas abordagens convergem para o mesmo ponto de interesse: a opressão reprime a emoção de todas as partes envolvidas, no que se convencionou chamar de jogo perde-perde, uma vez que todos saem prejudicados.

Eu gostei de A Vida dos Outros quando do seu lançamento, mas confesso que o filme foi perdendo espaço em minha memória afetiva a ponto de quase extinguir. Restaram, basicamente, o retrato da Stasi e o desempenho dos atores Ulrich Mühe e Sebastian Kock. A sessão de Barbara resgatou A Vida dos Outros do limbo da minha memória, só não sei se para o bem, já que na comparação ele sai perdendo.

A análise de A Vida dos Outros praticamente se encerra no descortinamento do modus operandi da Stasi, todo orquestrado por meio de um de seus burocratas, surpreendentemente tocado pela vida de um de seus investigados (o que é tomado praticamente como um disparate, um absurdo, dada a famosa frieza alemã e a rigidez do regime). Tudo no filme funciona em função dessa premissa, a partir da qual se explora a crise moral do protagonista. Barbara é bem mais rico, operando em outros níveis de interpretação não circunscritos apenas à questão da Stasi, muito embora a sua influência represente o vetor adequado para potencializar o efeito dramático de todos os outros desdobramentos. O filme funciona como uma crônica eficiente das virtudes bucólicas da vida no campo ante a vida angustiante na cidade grande, bem como um thriller minimalista de espionagem que reconstitui um período nebuloso da história alemã - ao estilo da safra recém-premiada de filmes romenos. Ainda pode ser visto como o registro da jornada de uma médica, forçada a exercer a prática de seu ofício em uma região inóspita, carente de recursos, embora hospitaleira e cheia de humanidade - qualquer semelhança com o programa Mais Médicos da nossa presidente é mera casualidade. O romance entre os pares é quase uma afronta, um ultraje, que aflora de forma improvável, curiosamente alimentado pelos diferentes backgrounds dos seus protagonistas - a cena do quadro de Rembrandt é muito boa - e pela vigília constante a que são submetidos. Não fossem essas condições adversas, dificilmente a aproximação entre eles seria levada a cabo; a força para enfrentar essa situação incontornável vem do reconhecimento da necessidade do outro. O desfecho é soberbo, acomoda perfeitamente o destino de todos os personagens sem forçar a barra. Nenhuma ponta fica solta.

quinta-feira, agosto 29, 2013

Um barco e nove destinos (Alfred Hitchcock, 1944)


Num recente bate papo com o Alexandre do analiseindiscreta.wordpress.com, trocamos algumas figurinhas a respeito das influências que exerceram um papel importante na experiência cinéfila de cada um. Dali saiu que o livro que encabeça a minha lista de referências imprescindíveis é o mítico Hitchcock/Truffaut, responsável pelo sucesso do registro em forma de entrevistas, editado muito antes de o formato assumir um caráter declaradamente comercial. Depois da nossa breve conversa me pus a ver um Hitchcock dos menos valorizados. Pouco me falta para completar a fase americana de sua carreira, entre os quais havia Um barco e nove destinos. O trecho abaixo se refere à passagem do livro em que os dois cineastas dialogam a respeito desse filme. O entendimento de Truffaut não corresponde exatamente às intenções de Hitchcock, que aproveita a ocasião para contextualizar as suas decisões, sobretudo as de natureza técnica. Fica claro pelas respostas que o seu domínio sobre a realização do projeto é absoluto - característica onipresente no livro, perpassando a maioria de seus filmes. Não é à toa que à medida que sua carreira avançava, ele acabou assumindo o cargo de produtor. A questão derradeira aborda a engenhosa ponta de Hitchcock (a sua predileta!), recheada do típico humor inglês que o caracterizava, que acabou passando em branco pra mim. Não fosse a consulta ao livro eu a teria desconhecido – felizmente, a bela edição da Companhia das Letras traz uma enorme ilustração do momento.

François Truffaut – Alguns filmes seus apresentam-se como verdadeiros desafios. Um barco e nove destinos é um deles. Aqui, a aposta é fazer um filme inteiro dentro de um bote salva-vidas?

Alfred Hitchcock - De fato, era uma aposta, mas também uma demonstração de uma teoria que eu tinha nesse momento. Minha impressão era que, ao se analisar um filme psicológico corrente, percebia-se que, visualmente, oitenta por cento da metragem eram dedicados a primeiros planos ou semi-primeiros planos. Era algo não combinado, provavelmente instintivo entre a maioria dos diretores; era uma necessidade de se aproximar, uma espécie de antecipação do que seria a técnica da televisão.

É muito interessante, mas várias vezes você foi tentado por esse gênero de experiências sobre a unidade de lugar, de tempo e de ação; por outro lado, Um barco e nove destinos é o contrário de um thriller, é um filme de personagens. Terá sido o sucesso de A Sombra de uma Dúvida que o levou nessa direção?

Não, não tem nada a ver com A Sombra de uma Dúvida. Um barco e nove destinos foi influenciado apenas pela guerra. Era um microcosmo da guerra.

Em certa época pensei que a moral de Um barco e nove destinos fosse a de que todos são culpados, todos têm alguma coisa a se recriminar, e que você queria concluir com um: “Não julguem”. Mas acho que me enganei, não?

 A ideia do filme é diferente. Quisemos mostrar que naquele momento havia no mundo duas forças em presença, as democracias e o nazismo. Ora, as democracias estavam em absoluta desordem, ao passo que todos os alemães sabiam aonde queriam chegar. Portanto, tratava-se de dizer aos democratas que eles precisavam de qualquer maneira tomar a decisão de se unirem, se juntarem, esquecerem suas diferenças e divergências para se concentrarem num só inimigo, sobremodo poderoso por seu espírito de coesão e decisão.

Era uma ideia forte e justa...

O engenheiro interpretado por John Hodiak era praticamente um comunista e, no outro extremo, você tinha um homem de negócios que era um fascista. E, nos grandes momentos de indecisão, ninguém sabia o que fazer, nem mesmo o comunista. O filme foi muito criticado e a famosa Dorothy Thompson, na sua coluna, deu ao filme dez dias para sair da cidade!

O filme não é apenas psicológico, muitas vezes é moral também; por exemplo, já perto do fim os personagens vão linchar o alemão, e você mostra o grupo bem de longe, de costas, e é uma visão um tanto repugnante, proposital, creio?

É, eles são como uma matilha de cães.

O filme é ao mesmo tempo um conflito psicológico e uma espécie de fábula moral. Os dois elementos se entrelaçam muito bem, sem nunca se prejudicarem.

Primeiro, encomendei esse argumento a John Steinbeck, mas o trabalho ficou incompleto. Então mandei chamar um escritor muito conhecido, Mac Kinley Cantor, que trabalhou duas semanas... Eu não gostava nada do que ele fazia. Ele me disse: “Não consigo fazer melhor”, então respondi: “ Muito obrigado”, e peguei outro escritor, Jo Swerling, que tinha trabalhado para Frank Capra. Com o script pronto e o filme prestes a começar, percebi que nenhuma sequencia terminava com um toque apoteótico, e então me esforcei em dar uma forma dramática a cada episódio.

Foi por isso que deu tanta importância aos objetos, como a máquina de escrever, as joias, etc.

Foi. O que levou os críticos americanos a ser tão veementes contra esse filme foi que eu tinha mostrado um alemão superior aos outros personagens. Ora, nesse período de 1940-1, os franceses estavam derrotados e os Aliados estavam em decomposição. Por outro lado, o alemão que, no início, fingia ser um simples marinheiro tinha sido comandante de submarino; portanto, havia todas as razões para se pensar que era mais qualificado que os outros para assumir o comando do bote, mas aparentemente os críticos imaginaram que um nazista mau não podia ser um bom marinheiro! Mesmo assim o filme teve certo sucesso em Nova York, mas não era muito comercial, quando nada pelo desafio técnico. Nunca deixei a câmera sair do barco, nunca mostrei o barco visto de fora e, de quebra, não havia uma só nota musical, era muito rigoroso. Evidentemente, o conjunto foi dominado pela personagem de Tallulah Bankhead.

Ela segue um pouco o mesmo percurso da heroína de Os Pássaros: parte da sofisticação para atingir o aspecto natural, à medida que passa por sofrimentos físicos, e apreciei imensamente esse itinerário moral marcado pelo abandono de coisas materiais, a máquina de escrever que cai na água, e, no final do filme, o fecho da pulseira de ouro que serve de anzol quando não há mais nada para comer. A propósito de objetos, convém não esquecer o velho jornal que está ali largado no bote e que você usou para fazer sua ponta ritual.

É meu papel predileto e devo confessar que passei longos e penosos momentos para resolver esse problema.

Habitualmente, faço um transeunte, mas como inventar transeuntes no oceano?! Bem que eu tinha pensado em representar um cadáver boiando à distância do bote salva-vidas, mas morria de medo de me afogar. E era impossível para mim fazer um dos nove sobreviventes, pois todos esses papéis deviam ser feitos por atrizes e atores competentes.

Por fim, tive uma excelente ideia. Nessa época eu fazia um regime muito severo, avançando a duras penas para o meu objetivo de perder cinquenta quilos, baixando de cento e cinquenta para cem. Assim, resolvi imortalizar meu emagrecimento e ao mesmo tempo conseguir minha ponta, posando para fotografias “antes” e “depois” do regime de emagrecer. Essas fotos foram reproduzidas como se ilustrassem uma propaganda de jornal, preconizando uma droga imaginária, “Reduco” – e os espectadores podiam ver tanto esse anúncio como minha própria pessoa, quando William Bendix abria um jornal velho que tínhamos pendurado no barco. Esse papel fez grande sucesso!