quinta-feira, dezembro 31, 2015

Um Amor a Cada Esquina (Peter Bogdanovich, 2014)


O tempo anda escasso nesse final de ano, quando anteriormente eu conseguia colocar em dia quase tudo que havia ficado para trás. Vi esses dias Um Amor a Cada Esquina e me diverti bastante com um Bogdanovich que já não filmava há algum tempo. Mesmo com o acesso às clássicas screwball comedies de outrora cada vez mais fácil é sempre um deleite encontrar uma releitura de um (sub)gênero tão querido à altura dos seus melhores exemplares.

O texto do Gilberto Silva Jr. para a Revista Interlúdio contribuiu para que eu reposicionasse o filme como o primeiro da minha longa lista de prioridades cinematográficas. A leitura anterior a sessão serviu para aguçar os meus sentidos e a posterior para reforçar a merecida valorização que o Gilberto lhe atribuiu. Aqui vai o link e abaixo a reprodução.

Por Gilberto Silva Jr.

A imensa maioria da produção do cinema americano contemporâneo é composta de filmes que poderiam ser dirigidos por qualquer um. É, portanto, ao mesmo tempo, um alento e um choque quando surge um filme que só poderia existir quando dirigido por um cineasta específico. Um Amor a Cada Esquina é um desses casos, cada vez mais raros: um filme que, como se constata em seu resultado final, não faria sentido algum sem a visão pessoal de Peter Bogdanovich. Um alento para os amantes de cinema, que cada vez mais se vêm privados da oportunidade de assistir a produtos de entretenimento concebidos com tamanha delicadeza. Um choque para a indústria, que fica sem saber o que fazer com um produto que não se encaixa em qualquer dos seus padrões industriais e mercadológicos.

Bogdanovich é um cineasta que, tendo em vista sua história como crítico e, acima de tudo, fã de um cinema clássico, carrega para todos os seus filmes a bagagem de um passado acumulado, sem perder de vista o momento presente. Consegue, quase sempre, atingir a árdua missão de ser nostálgico sem se tornar saudosista. O padrão unicista que impera na produção hollywoodiana das últimas décadas segue lhe permanecendo algo estranho, o que acabou por deixá-lo sendo uma figura cada vez mais à margem, tornando sua carreira errática por mais de quatro décadas. 

Portanto, ao assistir a Um Amor a Cada Esquina, nos transparece o fato de Bogdanovich ter agarrado com unhas e dentes a oportunidade de realizar um filme que tenha realmente a sua cara. Em tempos onde manuais de escrita cinematográfica demandam de um roteiro uma suposta “coerência”, assistimos a uma comédia que manda essa “coerência” às favas, onde o que importa é a graça removida de cada sequência, burilada em toda sua individualidade. Retoma os fundamentos da screwball comedy, sedimentados há cerca de oito décadas por roteiristas como Ben Hecht e cineastas como Howard Hawks, e aplica a sua visão pessoal do universo contemporâneo do entretenimento. Disso surge uma experiência praticamente única no cinema atual, calcada principalmente no estranhamento. Seja do estranhamento do autor perante padrões de comportamento que lhe soam cada vez mais distantes, seja do estranhamento do espectador diante de um produto que, apesar de soar como um filme diferente de tudo que se tem assistido ultimamente, se revela fascinante a cada momento. 

O padrão estabelecido em privilegiar o conceito de cada sequência como um todo, que surge no roteiro assinado por Bogdanovich e sua ex-esposa Louise Stratten, se revela de tamanha eficiência que, mesmo quando surgem, ao longo do filme, saltos narrativos que parecem estar mais relacionados a cortes na sala de montagem ou a possível interferência dos produtores, estes surgem perfeitamente diluídos na concepção do todo. Mais um retorno aos princípios da essência do cinema clássico, onde a montagem exerce inequívoca corresponsabilidade na geração do efeito cômico. 

O que nos leva a não deixar de destacar que Um Amor a Cada Esquina é acima de tudo um filme extremamente engraçado, no qual, além de unir com maestria todos os pilares do artesanato cinematográfico (mise-en-scène, roteiro, montagem), Bogdanovich consegue extrair do elenco uma total compreensão de sua proposta, onde duas intérpretes conseguem ainda brilhar acima do conjunto onde impera a excelência: se Jennifer Aniston, estrela da indústria, tem aqui, em um papel coadjuvante, sua melhor atuação em cinema, é a protagonista, Imogen Poots, que, com toda sua juventude, faz um trabalho digno de antologia. É como se Carole Lombard não tivesse morrido em seu apogeu (aos 33 anos, em 1942), atravessasse décadas, chegado aos nossos tempos e rejuvenescesse por um toque de mágica, preservando toda sua malícia, mas recuperando uma doce inocência de quem experimenta novas sensações. Acompanhar as expressões faciais e modulações vocais de Pots é mais um prazer à parte nesse filme ímpar que, em seu renovado classicismo, se revela hoje tão moderno quanto Essa Pequena é uma Parada ou Muito Riso e Muita Alegria o foram, respectivamente, em 1972 e 1981.

sábado, dezembro 26, 2015

De Volta ao Jogo (Chad Stahelski e David Leicht, 2014)


Pra variar, eu não estava botando muita fé nesse entusiasmo todo com que De Volta ao Jogo vinha colhendo elogios de boa parte da crítica, chegando a constar em algumas listas de melhores de 2014. Cheguei a abrir mão de vê-lo no cinema, certo de que seria mais um filme de ação genérico. Honestamente, desconfiei que um filme protagonizado por Keanu Reeves pudesse realmente gozar desse status (o preconceito dando as caras novamente). No final das contas me dei mal. É um p... filme.

O roteiro se restringe ao básico, estabelecendo logo nos dez primeiros minutos as premissas as quais permanecerá fiel até o fim. É o velho tema da vingança levado com muito vigor e muita inventividade. Trata-se basicamente de um matador profissional aposentado (mais por opção do que por tempo de serviço), o tal John Wick do título original (Keanu Reeves), que perdeu a mulher numa batalha contra uma doença, mas se vê novamente exercendo o ofício do qual se afastara quando recebe a visita indesejada do filho do seu antigo contratante que o subtrai dos seus itens mais estimados.

Em nenhum momento o roteiro perde o foco da empreitada, fazendo da caçada um subtexto perfeito para empilhar uma cena de ação melhor do que a outra. Joga a favor dos envolvidos com a produção e a direção o fato de serem antigos dublês que conhecem bem a dinâmica desse gênero. O hotel que serve de abrigo aos matadores quando estes estão a serviço é um achado. Nele orbita uma galeria de personagens dos mais criativos, responsáveis por manter ativa a engrenagem desse comércio de vidas, a ponto de contar com um médico de plantão para atender àqueles que prescindiram da sorte no exercício de suas missões.

Os códigos que regem o convívio desses tipos, e que condizem com as premissas estabelecidas no início, são reforçados no segmento do hotel. O filme respira o tempo todo dentro dessa bolha que ele mesmo criou, mas em nenhum momento sofre de asfixia ou se esgota. O tiroteio noturno na boate é uma das melhores cenas de ação dos últimos tempos, comparável ao de Colateral (2004), de Michael Mann.

sábado, dezembro 19, 2015

Itinerância da Mostra 2015



Este ano tive de abortar minha ida a São Paulo para usufruir da Mostra em virtude da abertura de um novo negócio ainda no primeiro semestre e desde já vislumbro dificuldades para comparecer a próxima edição em função da chegada de uma nova filha.

Sendo assim, me sobrou de consolo a Itinerância da Mostra em Ribeirão Preto, que trouxe boas alternativas na seleção, cujos títulos que mais me interessavam consegui ver: o derradeiro Manuel de Oliveira, Visita - Ou Memórias e Confissões, filmado em 1982, mas lançado após o falecimento do diretor a pedido do próprio, e o último Ermanno Olmi, Os Campos Voltarão, que aborda as dificuldades de um bando de soldados ocupando uma trincheira na fronteira da Itália com a Áustria, em plena Primeira Guerra Mundial. Ambos são filmes curtos de pouco mais de uma hora de duração.

O primeiro captura o fantasma do diretor falecido em imagens semi espirituais num passeio pela casa onde o mesmo passou boa parte da sua vida e cuja influência se faz presente em seus filmes. A leveza das imagens captadas atrelada a serenidade do discurso de Manoel coloca o espectador num estado de transe, na fronteira onde o sonho e a realidade se misturam a ponto de se tornarem indistinguíveis. Um dos pontos altos é o relato breve e apaixonante da sua esposa, que emociona por sua singeleza e honestidade.

Ermanno Olmi aborda um ambiente de desesperança assombrado pela presença da morte. A trincheira de Olmi é bem diferente da trincheira de Stanley Kubrick em Glória Feita de Sangue (1957). Nessa versão mais recente praticamente nada acontece, tudo não passa de um exercício de espera agonizante. O tempo é implacável. Por essas e por outras quando vem o bombardeio o efeito é mais impactante, lembrando um pouco Verão Violento (1959), de Valério Zurlini. Apesar da jornada desgastante em meio a um frio congelante, a sensação que fica ao término é mais positiva que negativa.

quinta-feira, novembro 26, 2015

Weekend à francesa (Jean-Luc Godard, 1967)



Por Ethan de Seife

Weekend à francesa pode ser o mais selvagem e obscuro de todos os filmes de Jean-Luc Godard, o que quer dizer alguma coisa. É também uma de suas obras mais audaciosas. Vale tudo na tela. Uma conversa telefônica mundana se transforma em um número musical absurdamente encantador, nossos heróis se encontram com personagens de contos de fadas no bosque, e protagonistas podem ter finais horríveis a qualquer hora. A decisão de Godard de avançar do episódico para o episódico e bizarro foi ousada e de grande repercussão. Cineastas radicais de todas as tendências devem muito a essa obra.

Mas “radical” seria um rótulo bem infeliz para a película, pois conota uma politização simplista e falta de humor. Pode ter certeza de que Weekend não padece desses males. Na realidade, é um filme extremamente engraçado, em parte por conta das suas atitudes políticas. A capacidade de misturar o sério, o cômico, o belo e absurdo era apenas um dos muitos dons de Godard.

Nenhuma discussão sobre Weekend estaria completa sem a menção a sua tomada mais famosa, provavelmente uma das mais famosas do cinema. Talvez o esteio do filme seja a tomada panorâmica de mais ou menos 10 minutos sobre o pior engarrafamento de trânsito do mundo, interrompida pelo gosto de Godard por subtítulos didáticos e elípticos. Mas não se trata de um engarrafamento comum: a versão assustadora mas hilariante de Godard inclui animais de zoológico, barcos, um piquenique ocasional e um bocado de sangue. Mas, como o diretor disse uma vez, não é nada para se preocupar. É tudo tinta vermelha.

sexta-feira, novembro 20, 2015

A Costa do Mosquito (Peter Weir, 1986)


Eu acho que o nome do filme nunca me despertou o devido interesse quando eu frequentava locadoras nas décadas de 80 e 90. Era sempre um título disponível, que, embora estrelado por um astro em ascensão / consolidado na ocasião (Harrison Ford em ótima performance), não foi capaz de romper a barreira da minha curiosidade. A comodidade de acesso ao Netflix me trouxe ele numa bandeja que eu não pude recusar: dois ou três cliques e o brasão da Warner Bros. já estava girando no centro do meu televisor.

Honestamente, foi a descoberta de que Paul Schrader roteirizava o filme que me levou a ele, ainda que possa ser considerado um autêntico Peter Weir (a relação de autoria também funciona para a parceria Schrader-Scorsese, no sentido de que o universo abordado funciona para ambos os cineastas).

A relação do homem branco "civilizado" com outra cultura permeia a filmografia de Peter Weir. O espectador descobre junto com o protagonista (o tal homem branco) a extensão da sua insignificância à medida que sua curiosidade avança sobre a outra cultura (sobrepondo-se a ela). O instinto predatório de dominação, contrário à ideia de aproximação e compreensão do outro, culmina fatalmente com a violência. A religião, que talvez pudesse apaziguar os ânimos dos envolvidos, escamoteia as reais intenções dos seus pregadores, cujas investidas "civilizatórias" se justificam como a manifestação voluntária da vontade de Deus. Por fim, prevalece a máxima de Thomas Hobbes: "o homem é o lobo do homem".

Cada um puxa a sardinha para o seu lado em detrimento dos interesses alheios. Allie Fox (Harrison Ford) se torna uma vítima da sua própria obsessão, perdendo de vista seus próprios ideais e sendo levado por um senso de propósito distorcido. Ele abandona um ambiente que considera ofensivo (os EUA dos anos 80), levando toda a família em busca do sonho de poder erguer sua própria cultura (ao exercer sua influência sobre um meio ambiente "virgem", a Costa do Mosquito do título). A seu ver, sua inteligência (extremamente valorizada pelos outros personagens do filme) e senso civilizatório seriam suficientes para garantir o bem estar de seus pares bem como de quem fosse influenciado por ele. Allie só não contava encontrar com outros indivíduos com a mesma intenção que a sua.

sábado, novembro 07, 2015

Ponte dos Espiões (Steven Spielberg, 2015)

Duelo de interpretações memoráveis entre Tom Hanks e Mark Rylance - a interação entre os dois atores sustenta boa parte do filme

No balanço da filmografia de Steven Spielberg é muito provável que Ponte dos Espiões apareça como um filme menor do diretor. O lançamento modesto da produção que aborda a espionagem na extinta Guerra Fria, em que os diálogos são mais relevantes para a construção dramática do filme do que o próprio ato de espionar, pode levar a falsa impressão de inferioridade. O que poderia se tornar um thriller corriqueiro de espionagem nas mãos de outro cineasta, com Spielberg se torna uma aula de cidadania. Desde já é um dos meus preferidos do diretor. A postagem do Luiz Carlos Merten a seu respeito, intitulada “Spielberg, pensador da América”, reserva boa parte das minhas impressões, trazendo a lembrança da influência vívida de John Ford em suas últimas produções.

Já escrevi mil vezes no blog que existe um Spielberg antes e um depois da trilogia sobre o 11 de Setembro. O Terminal, Guerra dos Mundos e Munique elevaram, para mim, o cinema dele a um outro patamar, o que foi confirmado por Lincoln. Spielberg não apenas cineasta, mas pensador político. Ei-lo que volta em Ponte dos Espiões. Tom Hanks, que se chama Donovan, é chamado a defender Frank Relyance, um espião russo preso da ‘América’. A expectativa de todo o mundo é de um julgamento pró-forma, com sentença (de morte) antecipada, mas Donovan leva a defesa a sério, e a um custo elevado – a segurança da própria família -, faz de tudo para inocentar Abel. Quando isso é impossível, luta para preservar sua vida. Queria saber o nome do estudante e fiz há pouco uma pesquisa na rede. Não encontrei o que procurava e, em contrapartida, vi que muita gente que acha o filme patrioteiro, uma defesa do sistema de Justiça norte-americano etc etc. Não foi o que vi. Donovan usa o argumento de que os olhos do mundo estão sobre a América como pretexto para um julgamento honesto, mas o circo está armado e o clima de linchamento moral – do acusado, do advogado – é muito forte. Abel vai definir Donovan como o Sr. Obstinado, e ele é. Chamado para negociar com a URSS a troca de Abel pelo piloto cujo avião de espionagem foi abatido em território inimigo, Donovan obstina-se, de novo, em conseguir a libertação de Gary Powers e a do estudante preso em, Berlim Oriental. Para a CIA, o estudante não importa. O governo dos EUA só quer o piloto, que pode revelar segredos importantes, como Abel também, poderia, mas não fez. Só a obstinação de Donovan salva o garoto e, no fim, quando Powers, no voo de volta, senta-se ao lado do negociador – e percebendo como todos o evitam – diz em tom choroso “Eu não contei nada, nada’, toda a arquitetura dramática do filme converge para a frase que diz Tom Hanks. “Não importa o que os outros pensem ou digam. O que vale é a tua (sua) consciência.” É uma frase fordiana. A grandeza ética dos derrotados – dos acusados, dos que são colocados sob suspeita. Spielberg tem feito esses filmes grandes, e grandes filmes, para pensar a América no pós-11 de Setembro, colocando em discussão o que quase se perdeu com George W. Bush e seus asseclas do Departamento de Estado e do Pentágono.
Gostei muito de Ponte dos Espiões e, mesmo assim, me decepcionei. Gostei talvez menos que da trilogia, e do que Lincoln... Pode estar na tendência de Spielberg ao melodrama. No trem, em Berlim, Donovan vê os alemães que tentam fugir ser fuzilados no Muro. De volta à casa, no metrô, seu olhar acompanha as crianças que pulam muros. A América é melhor, sem dúvida, mas certamente não é por sua covarde maioria silenciosa, mas por homens que fazem a diferença. Como Donovan, como Spielberg. Creio que, mais que nunca, John Ford permanece com ‘o’ mestre’. Tem inspirado Clint, na medida em que Sniper Americano retoma a tragédia do solitário de Rastros de ÓdioPonte dos Espiões me lembrou mais Liberty Valance, O Homem que Matou o Facínora. A lição de democracia daquele filme, na escola, é repetida aqui no encontro de Donovan com o agente da CIA. Um, irlandês, o outro, alemão. O que os une senão o respeito ao código de leis, à Constituição? O próprio nome, se não fosse real, teria de ser inventado. Existem personagens de Ford que se chamam Donovan em Depois do Vendaval e O Aventureiro do Pacífico/Donovan’s Reef. Dou-me conta de que achava que não tinha gostado tanto – a la folie, como dizem os franceses – de Ponte dos Espiões. Mas gostei, sim.

quarta-feira, outubro 28, 2015

Mapas para as Estrelas (David Cronenberg, 2014)



Sem que isso represente qualquer tipo de spoiler, as estrelas do título Mapas para as Estrelas são as celebridades que movimentam (ou já movimentaram) a máquina de entretenimento de Hollywood. O título completo refere-se à rota a qual inúmeros turistas se submetem ao visitarem Los Angeles, interessados em conhecer o paradeiro dos seus astros favoritos. A galeria de personagens abordada pelo filme inclui o(a) estrela, o(a) agente, o(a) pretendente, o(a) assessor(a), o(a) fã e toda a esfera de sangue-sugas que orbitam esse universo de glamour.

Mesmo sem contar com um personagem ativo que represente essa estrela, um filme como Bling Ring (Sofia Copolla, 2012) me diz bem mais sobre Hollywood do que a abordagem direta que Mapas para as Estrelas faz dos bastidores do showbizz.

Bling Ring explora a influência bizarra que a busca incessante por fama e reconhecimento pode causar na vida de jovens aspirantes sem um horizonte consistente de perspectivas. A diretora Sofia Coppola aborda esse universo pela ótica do fã, construindo um cenário bastante melancólico da questão, que beira o absurdo.

A inconsistência dos valores compartilhados por esses tipos encontra na abordagem contida de Coppola o seu discurso mais eloquente. As invasões às mansões das celebridades à procura de pertences em seus guarda roupas representam a essência da futilidade que esses jovens insistem em idolatrar. O panorama de bestialidade se completa quando a figura dos pais entra em cena a fim de encorajá-los a seguir buscando esse modelo falido de ascensão social e/ou reconhecimento. A superfície cristalina desse mundo esconde um conteúdo totalmente oco.

Mapas para as Estrelas também aborda esse universo doentio, porém se vale de tipos bem mais caricatos para explorá-lo. Essa opção de abordagem causa um distanciamento da proposta, cuja extravagancia já se encontra intrinsicamente atrelada a ela (reflexo da própria natureza excêntrica da celebridade). A personagem da protagonista, Agatha, interpretada por Mia Wasikowska, é fraca demais para sustentar o peso do filme. Ela é o elo de ligação entre todo o restante, representando o bastião de sanidade que falta à outra parte do conjunto.

Mesmo não tendo me envolvido completamente com a proposta de Cronenberg, as palavras de Bruno Cursini para a Revista Interlúdio me ajudaram a melhor considerá-lo.

Antes de sabermos sua verdadeira identidade, o roteiro de Bruce Wagner insere outros personagens, nenhum dos quais capaz de causar simpatia. É como se aquelas paisagens – há muito transformadas em cenários – carregassem consigo alguma energia contagiosa e hábil em destituir seus habitantes de quaisquer sentimentos além daqueles mais primitivos. Em outras palavras, estamos diante de caricaturas repulsivas, à beira do insuportável: Havana Segrand (Julianne Moore) é uma decadente atriz tentando desesperadamente fazer o remake de um filme cujo original foi protagonizado por sua própria mãe. Neurótica, conforta-se em sessões regulares com um mezzo massagista mezzo guru – completo picareta – interpretado por John Cusack. Ele é pai tanto de um ator mirim dependente químico (Evan Bird) quanto de Agatha, fugitiva desde que ateou fogo na casa em que moravam. Para fechar o círculo de tão sutil trama, ela torna-se a faz-tudo de Havana. 

Seja por ter um transtorno mental previamente diagnosticado ou por ter passado uma longa temporada afastada daquele universo, Agatha permanecerá a pessoa pela qual pode-se crer em alguma forma de remissão. Com suas cicatrizes de queimadura pelo rosto e suas longas luvas pretas, ela é a única capaz de reconhecer (e reagir violentamente, por fim) a doença escamoteada por traz de toda aquela exterioridade asséptica. O incômodo que sua presença traz é por refletir, às claras, o que os outros escondem. Desfigurada e em algum estágio incerto de metamorfose, é ela a personagem que ligamos à filmografia de Cronenberg.  Ao novamente recusar a podridão ao seu redor, ela parte em busca de seu irmão. Estas ações (suas últimas) devem ser compreendidas como uma espécie de resgate, sendo talvez as únicas com alguma coerência – certamente as mais humanas que dali poderiam sair.

domingo, outubro 25, 2015

Romance e Cigarros (John Turturro, 2005)





Ao contrário do que prega a norma do bom jornalismo, eu prefiro as críticas ou resenhas em que o autor se projeta sobre o tema em detrimento daquelas em que o autor se esconde sob ele. Não há nada como ser agraciado com um texto apaixonado que te incita a conferir a obra tão logo o último parágrafo termina, sobretudo quando a subjetividade de quem escreve se manifesta. Esse entusiasmo contagiante acaba se tornando o combustível para transformar esse material num programa obrigatório inadiável. Embora o meu foco esteja voltado para o universo do cinema, ele se aplica perfeitamente ao universo da música, do teatro, da dança, etc.

Mesmo não compartilhando de todo o entusiasmo de Roger Ebert pelo Romance e Cigarros (2005), de John Turturro, a forma como ele convoca o seu leitor para assistir o que ele considera um dos melhores filmes de 2005 (ainda que só tenha sido lançado comercialmente em 2007) é notória. Alguns dos números musicais são realmente inspirados, especialmente aqueles que lidam com o tema do filme de forma bastante humorada (adultério), colocando atores que carregam o estigma de machos pra cantar canções que irradiam sensibilidade. James Gandolfini e Christopher Walken estão absolutamente fantásticos e bem à vontade nos papéis. Uma curiosidade, que imagino seja do interesse de alguns: os irmãos Coen emprestam seu prestígio para garantir a produção do filme (Turturro é um dos atores prediletos da dupla). 

Por Roger Ebert

08/11/07

How did one of the most magical films of the 2005 festival season become one of the hardest films of 2007 to see? John Turturro's "Romance & Cigarettes" is the real thing, a film that breaks out of Hollywood jail with audacious originality, startling sexuality, heartfelt emotions and an anarchic liberty. The actors toss their heads and run their mouths like prisoners let loose to race free.

The story involves a marriage at war between a Queens high-steel worker named Nick (James Gandolfini) and his tempestuous wife Kitty (Susan Sarandon), who has found a poem he wrote to his mistress (Kate Winslet), or more accurately to that part of her he most treasures.

After Kitty calls him a whoremaster (the film is energetic in its profanity), they stage a verbal battle in front of their three grown daughters, and then he escapes from the house to do -- what? To start singing along with Engelbert Humperdinck's "A Man Without Love," that's what.

He dances in the street and is joined by a singing chorus of garbagemen, neighbors and total strangers. What do I mean by "singing along"? That we hear the original recordings and the voices of the actors, as if pop music not only supplies the soundtrack of their lives, but they sing along with it. The strategy of weaving in pop songs continues throughout and is exhilarating, reminding me of Woody Allen's "Everyone Says I Love You."

Gandolfini and Sarandon, who portray a love that has survived but is battered and bitter, are surrounded by their "armies," as Nick describes them to a cop. She has their three young adult daughters (Mary-Louise ParkerMandy Moore and Aida Turturro), her cousin Bo (Christopher Walken) and the church choir director (Eddie Izzard). He has his work partner (Steve Buscemi) and of course his mistress, who works in a sex lingerie boutique.

Now that I have made this sound like farce, let me make it sound like comedy, and then romance. The dialogue, by Turturro, has wicked timing to turn sentences around in their own tracks. Notice how Nick first appeals to his daughters, then shouts, "This is between your mother and me!" Listen to particular words in a Sarandon sentence that twist the knife.

Observe a scene in Gandolfini's hospital room. He is being visited by his mother (Elaine Stritch) and Buscemi (eating the Whitman's Sampler he brought as a gift). She tells them both something utterly shocking about her late husband, in a monologue that is off the wall and out of the room and heading for orbit. Then observe Buscemi's payoff reaction shot, which can be described as an expression of polite interest. I can draw your attention to the way he does that, the timing, the expression, but I can't do it justice. Actors who can give you what Stritch gives you, and who can give you Buscemi's reaction to it, should look for a surprise in their pay packets on Friday.

Now as to Winslet's mistress, named Tula. She is not a tramp, although she plays one in Nick's life. She actually likes the big lug, starting with his belly. She talks her way through a sex rompRuss Meyer would envy, and then is so tender to the big, sad guy that you wanna cry. Although the characters in this movie are familiar with vulgarity, they are not limited to it, and "Romance & Cigarettes" makes a slow, lovely U-turn from raucous comedy to bittersweet regret.

The movie got caught in its own turnaround as MGM and United Artists changed hands, was in limbo for a time, has now been picked up by Sony for DVD release (next year) and is in the meantime being personally distributed by Turturro. He had a hit run at Film Forum in New York, went into limited national release Nov. 9, and comes to Chicago's Music Box today.

So many timid taste-mongers have been affronted by the movie that it's running 33 percent on the TomatoMeter, so let me run my own RebertoMeter, which stands at 100, and includes these quotes: "It's the most original picture by an American director I've seen this year, and also the most delightful" (Andrew O'Hehir, Salon); "More raw vitality pumping through 'Romance & Cigarettes' than in a dozen perky high school musicals" (Stephen Holden, New York Times); "Turturro's energetic, stylish musical about love, sex and death is such an outrageous film that it's almost impossible not to adore it" (Geoff Andrew, Time Out London), and "Four stars and both of my thumbs way up!" (me).

terça-feira, outubro 06, 2015

Corrente do Mal (David Robert Mitchell, 2014)



Foi ainda na década de 70 que os filmes de terror "descobriram" o público adolescente, explorando a combinação bombástica: sexo + morte. Os anos 80 foram pródigos na exploração desse combo. O cinema empilhava referências que enriqueciam o imaginário popular, com os seus vilões/monstros que se tornaram ícones, difundindo o gênero para uma gama mais ampla de adoradores. Eu mesmo cresci nesse ambiente cultural que foi menosprezado na ocasião e hoje ganha ares de valorização (menos pela relação nostálgica de quem escreve, mais pela tendência corrente de explicitar o que antes era apenas sugerido).

David Robert Mitchell bebe nessa fonte para construir o excelente Corrente do Mal (It Follows). Sua referência explícita é o formato que consagrou o diretor John Carpenter, com o uso das lentes panorâmicas e o subúrbio americano em Halloween (1978), principalmente, e Christine, O Carro Assassino (1983), secundariamente.

Em Halloween, o assassino Michael Myers divide o protagonismo do filme com a mocinha (Jamie Lee Curtis). A sua presença é tão marcante (beirando o extremo de ser quase sedutora) que o espectador experimenta um misto de medo e identificação, a ponto de torcer pelo êxito da sua empreitada (ou, ao menos, pelo seu aparecimento, que é a razão de ser do filme). David Robert Mitchell cria um assassino/perseguidor não identificável, praticamente abstrato, decorrente da prática sexual (recorrendo a combinação de medo e desejo). No limite da sua proposta, o vilão/assassino/perseguidor/monstro pode ser qualquer pessoa que se aproxime da vítima. Ainda, aproveitando outra referência do gênero, A Noite dos Mortos Vivos (1968), de George Romero, essa coisa (o "It" do título original), bem como os zumbis do clássico, apenas caminha, não corre, sobrando tempo para a vítima escapar, o que contribui para alongar a tensão da cena.

Em pouco mais de quinze minutos o espectador já se encontra familiarizado com a trama e o fluxo de "contaminação" que orienta a propagação desse mal. Uma vez "infectada", a vítima só se livra dessa condição fazendo sexo com outra pessoa. A combinação entre sexo e morte é levada ao extremo, em pleno acordo com as convenções do gênero.

O roteiro flerta com uma saída redentora, no cerne dessa "brincadeira macabra", que poderia soar bastante piegas não fosse a habilidade do diretor de conduzir a situação sem forçar demais a barra. A protagonista se depara com o "mal" numa noite de aventura com um sujeito boa pinta que transita fora da sua esfera de influência (aquele tipo desejado por todas as garotas da escola). Um dos seus amigos, que nutre por ela uma atração (sugerida apenas pela troca de olhares captada pela câmera), se sujeita a libertá-la dessa condição mas não vê correspondência nas suas insinuações. O sexo com esse amigo, caracterizado como um nerd, não oferece perigo, já que o desejo acaba por ficar de fora da equação. Seu sacrifício, e o desfecho do filme, reservam um dos grandes anticlímaxes do cinema de massa contemporâneo. A cena da piscina de quebra me trouxe a boa lembrança do Deixa Ela Entrar (2008), de Tomas Alfredson.

quarta-feira, setembro 30, 2015

Que horas ela volta? (Anna Muylaert, 2015)


Eu queria ter gostado mais de Que Horas Ela Volta?, por mais que eu o considere um bom filme. A sombra das outras produções de Anna Muylaert influenciaram a minha percepção de forma que eu sinto falta do surrealismo do Durval Discos (2002), que me surpreendeu demais, e do clima de tensão crescente de É Proibido Fumar (2009), evoluindo para um suspense em seu desfecho. São filmes mais difíceis de rotular, se é que existe alguma vantagem nisso. A rica interação entre os personagens continua a representar a essência do seu trabalho, que não seria suficiente se não houvesse talento para dirigir os atores. Não é fácil desarmar o espectador das figuras públicas de Glória Pires e Regina Casé, que deixam a vaidade em casa para interpretar pessoas absolutamente comuns, contrárias ao universo de glamour que elas habitam.

Suas estórias se passam em ambientes fechados (sejam eles uma casa, um apartamento ou um carro), e contam sempre com um elemento externo, representado por um dos personagens, que entra em cena para romper com a letargia do protagonista. Desta vez o "tema" do filme dominou a pauta de discussões, trazendo à tona o conflito de classes (bem como o conflito geracional), refletindo a condição atual da doméstica brasileira - e talvez mais importante, porém menos evidente, a condição atual da mulher brasileira, já que são as três personagens femininas que empurram a narrativa.

domingo, setembro 20, 2015

Blade Runner (Ridley Scott, 1982)






Desde sábado passado retrasado só faço pensar na sessão de Blade Runner da Série de Clássicos do Cinemark. Ainda hoje me recordo da única vez que assisti ao filme, numa TV plana tubular de 29 polegadas, quando ainda morava com os meus pais, há mais de vinte anos. Na ocasião, eu me esforçava para "consumir" alguns dos filmes canônicos da sétima arte ao mesmo tempo em que devorava as resenhas publicadas em livros dedicados a esmiuçar o entendimento deles (sem o recurso da internet, havia a publicação diária dos jornais impressos ou os livros específicos). Um desses livros, encontrado na estante da biblioteca da faculdade, explorava a produção dos anos 80 ("O Cinema dos Anos 80", organizado por Amir Labaki) e acabou tornando-se uma verdadeira referência pra mim. Por meio dele descobri que o policial Deckard (Harrison Ford) acumulava indícios de que também pudesse ser um replicante (a ambiguidade do personagem encontra defensores fervorosos dos dois lados), bem como de que o filme poderia ser interpretado por um viés religioso. Embora essa leitura despertasse uma necessidade de se voltar ao filme para poder constatar essas revelações, esse texto "explicativo", que trazia, inclusive, os bastidores da produção conturbada, acabou ficando maior do que o filme na minha memória.

Eis que agora, 20 anos depois da sessão meia boca que fiz em casa, mesmo contando com o melhor recurso de reprodução da época, o VHS, voltei a ele em uma condição mais do que apropriada. Como eu já conhecia o conteúdo narrativo do material (fomentado sobretudo pelo livro supramencionado), investi a minha fruição na riqueza visual do filme. Não sei se existe um jeito adequado de experimentá-lo, só estou certo de que ele não cabe na tela da TV. Embora Ridley Scott tenha se recusado a "atualizar" a tecnologia do seu filme digitalmente (exatamente como George Lucas fez com a trilogia "Star Wars"), mesmo "datada", a concepção visual do filme permanece revolucionária. As produções que vieram posteriormente são todas, em maior ou menor grau, filhas bastardas de Blade Runner. O artesanato empregado pelo visionário "visual effects" Douglas Trumbull não envelheceu, bem como preserva uma autenticidade que as imagens geradas por computador (os CGIs) atualmente não se mostraram capazes de emular com desenvoltura. Os CGIs hoje em dia resultam normalmente fakes demais. A Los Angeles de Blade Runner é demasiadamente palpável, de forma que até hoje continua a representar o futuro sombrio imaginado por Ridley Scott e seus colaboradores, seja ele no vindouro ano de 2019, conforme a narrativa fílmica, ou bem mais adiante que isso.

Não só o “visual effects” abordado no parágrafo acima é memorável, bem como a composição do quadro (o preenchimento do ecrã). O mundo está superpovoado, com gente circulando por todas as frestas da imagem captada, despertando uma sensação desconfortável de enclausuramento. A cidade não comporta seus cidadãos. Os chineses já dominavam a cena, transformando Los Angeles num reduto cultural da sua influência, manifestando-se na culinária ou nos imensos outdoors televisionados que encobrem a cidade. A chuva ácida incessante (uma preocupação onipresente na década de 1980), amplia a sensação de decadência e falência do modelo de exploração planetária, que confiscou dos residentes remanescentes a luz solar reconfortante.

Outro componente que contribui imensamente para a atemporalidade do filme é a magnífica trilha sonora de Vangelis. Ela dispensa um tema principal ou um "refrão", recorrente em partituras que se descolam da sombra do filme que as projetou. O músico John Williams, colaborador frequente de Steven Spielberg, foi um mestre nesta arte de "criar temas" memoráveis. Em Blade Runner, cada cena é orquestrada individualmente, sem sacrificar a unidade do todo. O tema dos créditos finais só faz reforçar o clima de ameaça e insegurança que o filme se esforçou por disseminar.

A sensação despertada por esses fatores combinados resulta numa experiência pontual redimensionada pela memória atemporal, de forma que independente do momento que ela se concretize, o futuro terá sempre a cara de Blade Runner.

segunda-feira, agosto 31, 2015

Lutador de Rua (Walter Hill, 1975)


Eu acho que encontrei o filme que foi capaz de me fazer enxergar o talento de Charles Bronson. Os anos em que a programação televisiva insistia nas sessões de Desejo de Matar (SuperCines e afins), fizeram-me criar um preconceito infundado em relação ao ator. O IMDB lista 167 produções em que ele atuou, dos quais vi algumas poucas, embora não me recorde de sua presença na maioria delas - verdade que ele atua como coadjuvante em todas elas.

O filme de estréia de Walter Hill opera muito próximo de um Jean Pierre Melville, com algumas tomadas quase extraídas de O Samurai (1967). Além do aspecto estético, o comportamento lacônico dos protagonistas contribui para a aproximação comparativa. A estrutura narrativa é a mais simples possível, podendo servir de referência para os livros que se prestam a ensinar a elaboração de roteiros. O protagonista, lutador de rua do título em português (Charles Bronson), exibe suas habilidades marciais no início (na apresentação do personagem), no meio do filme (quando o triunfo da sua arte equivale a sua invencibilidade) e na última cena (quando a humildade se sobrepõe ao orgulho).

O arco narrativo esboçado pelo roteiro serve ao protagonista tão bem como ao coadjuvante (James Coburn). Na verdade, é o personagem de James Coburn que estabelece o conflito ao qual todo o eixo de sustentação moral do filme será julgado. Só ao termino da última luta é que as motivações de todos os personagens serão devidamente esclarecidas. Nessa manipulação dos ânimos dos envolvidos, da qual o espectador participa passivamente, Walter Hill entrega exatamente o que prometeu: um espetáculo artístico de alto nível, proporcionado pela rivalidade ficcional de seus personagens. O vício do jogo, que alimenta o desejo de Speed (James Coburn) e Gandil (Michael McGuire), é a razão de ser do filme, cujo efeito extasiante atinge em cheio o espectador.

sexta-feira, agosto 21, 2015

Depois da Chuva (Cláudio Marques e Marília Hughes, 2013)


Foi por causa de gente como você, que confunde liberdade com bagunça, que os militares tomaram o poder. Basta desse confronto aqui na escola. Eu vou conversar com a sua mãe, espero que ela dê um jeito no senhor.
Diretor da escola 
Esse breve sermão é direcionado ao protagonista Caio (o ótimo Pedro Maia) por causa de uma redação redigida no calor do Movimento das Diretas Já, em que o mesmo manifestava sua descrença com os rumos do país, sujeito a "escolha" de dois candidatos à presidência que não despertavam a ideia de renovação que o Movimento se esforçava em "vender".

Logo após o término dessa fala, os diretores Cláudio e Marília realizam um corte abrupto para inserir um comercial famoso dos anos 80, do jeans Starup, conhecido como "O Protesto". Com uma ambientação digna do clipe London Calling do grupo britânico The Clash, o comercial reproduz habilmente o embate do proletariado com a polícia, fundindo imagens dignas de um Estado repressor (por meio da ação policial) à uma narração oportuna que valoriza as qualidades do produto em questão sob as mais adversas condições. Esse material publicitário inserido nesse momento da narrativa, um pouco antes da metade do filme, rivaliza com a seriedade do Movimento, visto até então como a pedra de salvação do nosso país - o material de arquivo selecionado explora o contexto de euforia que levou milhares de pessoas às ruas, em sua maioria confiantes de que as mudanças viriam e seriam transformadoras.

Ao término do comercial os realizadores cortam para a mãe de Caio sentada na poltrona de casa com a televisão ligada, no que o próprio Caio chega para conversar com ela. Segue-se um discurso bem escapista, quase uma não-conversa, um puxão de orelha mal dado, ao que a mãe termina com o seguinte pedido (no intuito de estabelecer um pacto entre ela e o filho): "eu não dou trabalho pra você, e você não dá trabalho pra mim".

A partir dessa sequência, bem representativa do jogo de toma lá dá cá que os pais e a escola praticam quando se trata de assumir responsabilidades pela educação dos jovens, a narrativa assume um tom mais sombrio, reconfigurando o papel do grupo de resistência do qual Caio faz parte, ao alinhar o macroambiente (Diretas Já) com o microambiente (eleições para representante na escola local).

Pode-se argumentar que a distância que separa os eventos retratados pelo filme dos dias de hoje permite aos realizadores olhar para o passado com uma sobriedade questionadora, impossível de se manifestar plenamente à medida que os eventos transcorriam. Ainda que alguém julgue esse exercício fácil de ser realizado, ninguém pode lhes tirar o mérito de promover no espectador uma reflexão madura do macroambiente político em que estamos inseridos hoje: colhemos a muda que foi plantada lá atrás.

No calor das Manifestações de Junho de 2013, sempre havia alguém para nos lembrar que os políticos são o espelho de nós mesmos. Nunca essa premissa foi tão verdadeira.

quinta-feira, julho 30, 2015

O Quimono Escarlate (Samuel Fuller, 1959)




Eu acho que consigo imaginar o entusiasmo do Carlão Reichenbach ao assistir O Quimono Escarlate pela primeira vez. Ao menos, de todas as referências possíveis e prováveis que o filme pode despertar (Godard seria muito influenciado por ele), Carlão foi a mais premente. A maneira aparentemente despretensiosa com que o thriller vai aos poucos se tornando um libelo poderoso contra a intolerância e o racismo, me trouxe à tona as mesmas qualidades que distinguem o cinema de Carlão. Posso dizer que encontrei a inspiração para a cena sublime de Alma Corsária (1993) em que o negro subitamente começa a tocar piano, desarmando por completo o espectador num rompante de epifania. No ambiente masculinizado do thriller policial, a sensibilidade do diretor Samuel Fuller encontra espaço para se manifestar plenamente.

A cena em que James Shigeta e Victoria Shaw "se declaram" ecoa em vários dos filmes de Carlão, um verdadeiro manifesto de liberdade, esperança e leveza em meio à um ambiente repleto de hostilidade. Logo me veem a mente A Ilha dos Prazeres Proibidos (1979), Anjos do Arrabalde (1987), o já mencionado Alma Corsária (1993) e Bens Confiscados (2004). Em todos eles, o amor atua como a única forma de redenção possível. Um exercício em forma de tolerância.

segunda-feira, julho 27, 2015

Charles Foster Kane


ESMAGADOR

“De maneira esmagadora, infinita, Orson Welles expõe fragmentos da vida do homem Charles Foster Kane e nos convida a combiná-los e reconstruí-lo. No fim compreendemos que os fragmentos não são regidos por uma unidade secreta: Foster Kane, o execrado, é um simulacro, um caos de aparências. (Corolário possível, já previsto por David Hume, por Ernst Mach e por nosso Macedônio Fernandez: nenhum homem sabe quem é, nenhum homem é alguém). Em um dos contos de Chesterton, o herói observa que nada é mais assustador que um labirinto que não possui centro. Este filme é exatamente esse labirinto.

A execução é digna, em geral, do vasto tema. Ouso prever, no entanto, que Cidadão Kane durará como “duram” certos filmes de Griffith ou de Pudovkin, cujo valor histórico ninguém nega, mas que ninguém se dispõe a rever. Cidadão Kane sofre de gigantismo, de pedantismo, de tédio. Não é inteligente, é genial: no sentido mais sombrio e mais alemão desta má palavra.”
Jorge Luis Borges
Jorge Luis Borges: Sur le cinema, Editions Albatros, 1979