O tempo anda escasso nesse final de ano,
quando anteriormente eu conseguia colocar em dia quase tudo que havia ficado
para trás. Vi esses dias Um Amor a Cada Esquina e me diverti bastante com um
Bogdanovich que já não filmava há algum tempo. Mesmo com o acesso às clássicas screwball comedies de outrora cada vez
mais fácil é sempre um deleite encontrar uma releitura de um (sub)gênero tão querido
à altura dos seus melhores exemplares.
O texto do Gilberto Silva Jr. para a
Revista Interlúdio contribuiu para que eu reposicionasse o filme como o primeiro
da minha longa lista de prioridades cinematográficas. A leitura anterior a sessão serviu
para aguçar os meus sentidos e a posterior para reforçar a merecida valorização
que o Gilberto lhe atribuiu. Aqui vai o link e abaixo a reprodução.
Por Gilberto Silva Jr.
A imensa maioria da produção do cinema americano contemporâneo é composta de filmes que poderiam ser dirigidos por qualquer um. É, portanto, ao mesmo tempo, um alento e um choque quando surge um filme que só poderia existir quando dirigido por um cineasta específico. Um Amor a Cada Esquina é um desses casos, cada vez mais raros: um filme que, como se constata em seu resultado final, não faria sentido algum sem a visão pessoal de Peter Bogdanovich. Um alento para os amantes de cinema, que cada vez mais se vêm privados da oportunidade de assistir a produtos de entretenimento concebidos com tamanha delicadeza. Um choque para a indústria, que fica sem saber o que fazer com um produto que não se encaixa em qualquer dos seus padrões industriais e mercadológicos.
Bogdanovich é um cineasta que, tendo em vista sua história como crítico e, acima de tudo, fã de um cinema clássico, carrega para todos os seus filmes a bagagem de um passado acumulado, sem perder de vista o momento presente. Consegue, quase sempre, atingir a árdua missão de ser nostálgico sem se tornar saudosista. O padrão unicista que impera na produção hollywoodiana das últimas décadas segue lhe permanecendo algo estranho, o que acabou por deixá-lo sendo uma figura cada vez mais à margem, tornando sua carreira errática por mais de quatro décadas.
Portanto, ao assistir a Um Amor a Cada Esquina, nos transparece o fato de Bogdanovich ter agarrado com unhas e dentes a oportunidade de realizar um filme que tenha realmente a sua cara. Em tempos onde manuais de escrita cinematográfica demandam de um roteiro uma suposta “coerência”, assistimos a uma comédia que manda essa “coerência” às favas, onde o que importa é a graça removida de cada sequência, burilada em toda sua individualidade. Retoma os fundamentos da screwball comedy, sedimentados há cerca de oito décadas por roteiristas como Ben Hecht e cineastas como Howard Hawks, e aplica a sua visão pessoal do universo contemporâneo do entretenimento. Disso surge uma experiência praticamente única no cinema atual, calcada principalmente no estranhamento. Seja do estranhamento do autor perante padrões de comportamento que lhe soam cada vez mais distantes, seja do estranhamento do espectador diante de um produto que, apesar de soar como um filme diferente de tudo que se tem assistido ultimamente, se revela fascinante a cada momento.
O padrão estabelecido em privilegiar o conceito de cada sequência como um todo, que surge no roteiro assinado por Bogdanovich e sua ex-esposa Louise Stratten, se revela de tamanha eficiência que, mesmo quando surgem, ao longo do filme, saltos narrativos que parecem estar mais relacionados a cortes na sala de montagem ou a possível interferência dos produtores, estes surgem perfeitamente diluídos na concepção do todo. Mais um retorno aos princípios da essência do cinema clássico, onde a montagem exerce inequívoca corresponsabilidade na geração do efeito cômico.
O que nos leva a não deixar de destacar que Um Amor a Cada Esquina é acima de tudo um filme extremamente engraçado, no qual, além de unir com maestria todos os pilares do artesanato cinematográfico (mise-en-scène, roteiro, montagem), Bogdanovich consegue extrair do elenco uma total compreensão de sua proposta, onde duas intérpretes conseguem ainda brilhar acima do conjunto onde impera a excelência: se Jennifer Aniston, estrela da indústria, tem aqui, em um papel coadjuvante, sua melhor atuação em cinema, é a protagonista, Imogen Poots, que, com toda sua juventude, faz um trabalho digno de antologia. É como se Carole Lombard não tivesse morrido em seu apogeu (aos 33 anos, em 1942), atravessasse décadas, chegado aos nossos tempos e rejuvenescesse por um toque de mágica, preservando toda sua malícia, mas recuperando uma doce inocência de quem experimenta novas sensações. Acompanhar as expressões faciais e modulações vocais de Pots é mais um prazer à parte nesse filme ímpar que, em seu renovado classicismo, se revela hoje tão moderno quanto Essa Pequena é uma Parada ou Muito Riso e Muita Alegria o foram, respectivamente, em 1972 e 1981.
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