É uma pena que eu só tenha tido
dois dias para desfrutar da programação da Mostra deste ano. A rigor, se eu
considerar o final de semana no MIS, em companhia dos filmes de Kubrick, foram
três dias. Passado os dias de vivência in
loco, resta apenas a cobertura impressa e/ou eletrônica. Acompanhar o
dia-a-dia do Evento nos diversos blogs e sites especializados é tão estimulante
quanto frustrante. Estimulante porque o entusiasmo da cobertura contagia o
leitor, ávido pela oportunidade de poder assistir aos títulos que mereceram uma análise; e frustrante porque a experiência não se limita apenas ao instante em
que os olhos encontram a tela do cinema: existem as filas, os curtos intervalos
que separam as sessões, os poucos momentos de reflexão devido ao corre-corre da
programação, os trade-offs, as
caminhadas, as refeições, etc. Enfim, pra quem gosta, é um prato cheio.
Meu primeiro dia foi bastante
proveitoso, facilitado pela concentração atrativa de filmes em um único espaço,
evitando que eu fizesse deslocamentos entre as sessões. Esses filmes estarão
nesse post. No próximo post eu abordo o segundo dia, que me forçou a fazer
escolhas difíceis, abrindo mão de boas promessas. Enfim, vamos ao que interessa.
Providence (1977), Alain Resnais
O rapaz responsável pela
legendagem quase melou a festa dos presentes na sessão. Levou um tempo para que
ele sincronizasse as falas às imagens correspondentes – dando margem para a
distração. Em um filme de Resnais, que demanda atenção redobrada, isso pode
comprometer a experiência. Prejudicou, mas não foi capaz de confiscar o encanto
proporcionado pelos últimos 25 minutos de projeção – quando o jogo de
encenação, caro ao seu autor, é desnudado magnificamente sob a regência do pouco
lembrado John Gielgud (um excelente ator normalmente mal aproveitado). A
presença de Dirk Bogarde me trouxe lembranças do Despair (1978), de Rainer Werner Fassbinder, exibido há dois anos
na mesma sala, sem a mesma leveza do filme de Resnais. Leva um tempo para que o
espectador mergulhe no labiríntico pesadelo do escritor Clive Langham (John
Gielgud), cheio de imagens e situações (aparentemente) desconexas. Assim que a
ficha cai, sobressai-se o humor refinado de Resnais e a elegância costumeira da
sua direção. O personagem do jogador de futebol é impagável. A fluidez
narrativa do mestre francês, que fez do sonho e da memória a matéria prima do
seu cinema, contrasta com o calculismo exacerbado de Christopher Nolan no
elogiado Inception (2010).
Escudo de Palha (2013), Takeshi Miike
Os orientais sempre souberam
extrair bons exemplares do cinema de gênero norte-americano. Este é um deles. A
rigor, o filme não traz nada de novo – a escolta de um assassino em primeiro
grau mobiliza a força armada (a fim de garantir o seu julgamento e integridade física), que luta contra uma oferta volumosa de dinheiro feita pelo milionário avô da vítima a quem se dispuser a matá-lo.
O argumento tem sido comparado com o de O
Preço de um Resgate (1996), de Ron Howard, mas eu diria que está mais para um
híbrido deste com o ótimo Rota Suicida
(1977), de Clint Eastwood. Takeshi Miike segura bem o ritmo do filme,
investindo em situações que colocam à prova a integridade moral dos
responsáveis pela custódia do homicida.
A Rotina Tem Seu Encanto (1962), Yasujirô Ozu
Diz-se deste exemplar de Ozu que
se trata de uma refilmagem de Pai e Filha
(1949). De fato, o ponto de partida de ambos é o mesmo: pai (viúvo) e filha
dividem o mesmo espaço, até que começam a ser “pressionados” por parentes e
amigos a encontrar um pretendente para garantir o matrimônio da menina. No
primeiro exemplar, a narrativa alterna melhor entre a rotina de ambos, fazendo
com que dividam proporcionalmente o tempo de cena e o protagonismo do filme. No
canto do cisne de Ozu, a rotina do pai é mais bem investigada, se valendo,
inclusive, de uma inclinação cômica do relato, muito bem explorada pelo diretor
para atenuar os transtornos inerentes à velhice. Mas não se engane: junto ao
riso despretensioso das situações abordadas paira um tom de melancolia que
insiste em permanecer conosco muito depois de findada a sessão.
A Garota do 14 de Julho (2013), Antonin Peretjatko
Eu desconhecia por completo a
proposta do filme, mas fui vê-lo influenciado pelas sugestões de blogs que fariam
a cobertura. No final das contas, descobri que a melhor alternativa para
terminar a jornada da Mostra é uma comédia. O diretor apresentou o filme na
abertura da sessão alertando o público para o caráter franco-francese (palavras dele) da produção, e mostrou-se
entusiasmado com a oportunidade de presenciar a reação da plateia a um produto
de universo restrito. Peretjatko
retoma o tom libertário que caracterizou as primeiras produções da nouvelle vague, influenciado sobretudo
por Godard (O Demônio das Onze Horas),
para esculhambar o politicamente correto e o legado político e financeiro do
ex-presidente Nicolas Sarkozy. Como bem pontuou Bruno Cursini em seu breve
texto para o filme na Revista Interlúdio, Peretjatko “faz de seu primeiro filme
algo livre, excitante, de uma inventividade anárquica bastante ingênua, ora
dando vazão a uma selvageria satírica debochada, ora brincando ingenuamente com
a linguagem cinematográfica”.
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