Naturalmente, não consegui ver
tudo que gostaria. Cada ano que passa a sensação de que acabei deixando muita
coisa pra trás vai aumentando. Este último foi mais difícil em virtude
das escassas viagens a capital, mais rarefeitas depois do nascimento do meu
filho. Não bastasse isso, o próprio circuito da capital paulista me pareceu
menos democrático, com bons títulos sendo lançados em apenas uma sala, em
apenas um horário e por apenas uma semana.
Sendo assim, eu, que nunca fui
muito afeito aos downloads, passei a enxergá-los com mais simpatia. Tardou
bastante, já que a minha teimosia só foi ultrapassada depois que me vi em um
beco sem saída – o Alexandre do www.analiseindiscreta.wordpress.com
deu um empurrãozinho para a minha estreia. Não fosse esse recurso, dois dos
títulos desta lista (e outros que estarão por vir) existiriam apenas no plano
das intenções. Minha insistência no formato de exibição das salas de cinema se
deu sempre por uma questão de princípio, afinal, tal qual uma bela cerveja
tomada em um copo de requeijão, um filme assistido em uma tela de computador
não combina. Embora o conteúdo em ambas as circunstâncias seja o mesmo, a
fruição plena de ambos exige o formato mais apropriado. Ao que tudo indica,
agora, o tal princípio que eu tanto valorizava não passa de perfumaria. Enfim,
fui vencido.
Alguns filmes importantes ficaram
para trás: Um toque de pecado, A caça,
Era uma vez na Anatólia, Depois de Maio, A Grande Beleza, Camille Claudel 1915,
etc. A lista abaixo contempla apenas os lançamentos comerciais ocorridos em
2013.
Vocês Ainda Não Viram Nada
(Alain Resnais, 2012) –
além deste título, 2013 me proporcionou mais duas experiências com Resnais: Providence (1977) e Noite e Neblina (1955). Mesmo separados por um longo intervalo de
tempo, todos os três filmes refletem os esforços do diretor para tentar
encapsular o tempo na tentativa de resguardar a memória. Recordo, logo existo. Em Noite
e Neblina a encenação do holocausto tornou-se impossível, já que o cenário
foi transmutado a ponto de descaracterizar-se – só o cinema para reestabelecer
a sua gravidade. Providence materializa
os truques que a memória costuma nos pregar, sem a qual, contundo, somos incapazes
de tirar proveito das agruras e das alegrias da vida. Vocês Ainda Não Viram Nada recria com todas as formas e cores o que
só a memória é capaz de nos proporcionar; o cenário transmuta-se conforme a
conveniência de quem encena, reavivando e reescrevendo experiências passadas. A
encenação (da peça de Eurídice)
corrente sobrepõe-se à antiga, estabelecendo novas interações e significados. A
morte permeia as três produções, lhes servindo, inclusive, como ponto de
partida, mas, ao fim, é a vida que prevalece.
Tabu (Miguel Gomes, 2012) – esse filme daria um belo estudo da
importância da forma no cinema. Uma história relativamente banal (um triângulo
amoroso) ganha novos contornos nas mãos de Miguel Gomes. O emprego do preto e
branco e do mudo encontram as circunstâncias apropriadas para emergirem como se
fossem novidades (um verdadeiro achado). As memórias que nos tornam únicos fundem-se
às memórias coletivas criando uma experiência nova, encontrando território
fértil apenas no cinema. A África afetiva de Miguel Gomes só existe projetada
na tela, moldada pelas matinês de filmes americanos situados no continente, dotada,
neste caso, do senso crítico que distingue o olhar do explorador (de quem
escreve a história) do olhar do explorado.
O Estranho Caso de Angélica
(Manoel de Oliveira, 2010) – os
filmes de Manoel de Oliveira não costumam me conquistar de pronto. Eu não
experimento uma verdadeira sensação de descoberta enquanto eu os assisto. Passados
alguns dias da sessão, as imagens captadas e o ritmo do filme começam a
influenciar a minha percepção exercendo um fascínio singular. O chamado da
morte nunca recebeu um tratamento tão fantástico e angelical como aqui. O
vilarejo adotado como locação (a cidade de Douro), bem como os seus habitantes,
vão aos poucos enclausurando o protagonista, drenando suas energias, como que a
expulsá-lo (persona non grata) deste
plano existencial. Seu espírito só encontra conforto nos braços (e sorriso) de
Angélica.
A Bela que Dorme (Marco
Bellocchio, 2012) – Bellocchio
é capaz de traçar um panorama preciso da Itália contemporânea a partir de um
caso polêmico de eutanásia (verídico) que envolveu a intervenção política e
religiosa da questão – do governo italiano e do Vaticano, respectivamente. Os
dramas dos personagens orbitam ao redor da influência dessas entidades em suas vidas,
configurando um terreno fértil para explorar os dilemas morais que acompanham
esse assunto. Um grande filme.
Barbara (Christian Petzold,
2012) – o cinema alemão permanece
refém do legado nazista, sem o qual suas produções são incapazes de alçar voo
além de suas fronteiras territoriais. Petzold explora a herança do assunto, a
partir da influência da Stasi
(polícia secreta e inteligência da República Democrática Alemã – RDA), mas
extrai um panorama bem mais rico da questão do que foi capaz Florian Henckel
von Donnersmarck em seu A Vida dos Outros
(2006). O assunto respira muito bem longe dos grandes centros urbanos, sem
abrir mão da sua vocação para o suspense policial ao qual costuma filiar-se.
Las Acacias (Pablo
Giorgelli, 2011) – o cinema
argentino bem longe das parcerias bem sucedidas (do ponto de vista
mercadológico) com o ator Ricardo Darín. O mais prosaico dos filmes listados nesta
postagem – um road movie praticamente
sem paradas, ambientado dentro do espaço restrito de um caminhão. A sua força
advém do humanismo da história e “de um suspense que se intensifica na duração
precisa das cenas e por meio de cortes, com elipses que condensam uma longa
viagem em pouco menos de uma hora e meia”, de acordo com Cassio Starling Carlos
em sua crítica para a Folha. Quase um
filme mudo, construído apenas nos detalhes dos gestos e das expressões de seus
protagonistas.
Django Livre (Quentin
Tarantino, 2012) – na segunda
e derradeira parte o filme quase sai dos trilhos, sobretudo depois da saída de
cena de Christoph Waltz e Leonardo DiCaprio. Ainda assim, até a chegada desse
momento, Tarantino explora seus dotes dramatúrgicos, calcados no exímio talento
para escrever diálogos (e escalar os atores adequados para interpretá-los) e na
habilidade apropriada para criar situações absurdas. Exemplo disso é a cena do
Klu Klux Klan, antológica, que balanceia perfeitamente essas duas vertentes do
seu ofício. Embora irregular, o filme é memorável, com um todo mais sustentável
do que o anterior Bastardos Inglórios
(2009).
O Mestre (Paul Thomas
Anderson, 2012) –
o estudo mais interessante que Paul Thomas Anderson roteirizou e dirigiu de
duas pessoas (sejam eles pais e filhos, amigos ou desconhecidos, amantes ou
parceiros) em uma relação instável e conturbada, de pura dependência (física,
emocional e/ou financeira), pautada pelo excesso e carregada de culpa (a
religião, qualquer que seja ela, exerce uma influência decisiva sobre o
comportamento de suas criações). Não é o seu melhor filme, mas está perto
disso. Levanta mais questões do que respostas, acertando em cheio ao não
centrar o foco da narrativa no personagem de Philip Seymor Hoffman (Lancaster
Dodd), livremente inspirado em L. Ron Hubbard, criador da Cientologia.
Um Estranho no Lago (Alain
Guiraudie, 2013) – nas
palavras do Alexandre, que me levou ao filme, “Trata-se de uma obra-prima, não
só pela forma como sua história é contada – apenas um ambiente, poucos atores,
mais especulação do que ação explícita – mas também pelo interessante e obscuro
estudo psicológico do autor sobre os seus personagens: ao lado de Eros, o
instinto da Morte; o sexo e a autodestruição; o estranho fascínio do homem com
a violência, levado até as últimas consequências em um thriller hitchcockiano
fascinante”.
A Filha de Ninguém (Hong Song-Soo,
2013) – a minha primeira experiência com o diretor sul coreano. É o
típico filme que engana por sua singeleza e naturalidade, escondendo um
controle preciso da mise-en-scène. As
comparações com Rohmer não me pareceram gratuitas, ainda que o filme reverbere
por mais tempo no plano da realidade. As circunstâncias exploradas parecem
familiares ao universo do cineasta (próprias do seu meio), do qual ele extrai
uma força extraordinária sem chamar a atenção para a sua enorme influência
sobre o material. Só um olhar desatento para não reconhecer seus méritos.
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