Por Bernando Brum, do ótimo Cine Café
Abel Ferrara, filme após filme, fez do céu e do inferno forças que
ditas opositoras, são assustadoramente próximas, conectadas e dependentes uma
da outra. Do dilema do personagem de Harvey Keitel em Vício Frenético (1992) ao clímax com a serial killer surda-muda vestida de freira em Sedução
e Vingança (1981), entre tantos outros momentos
de sua filmografia, Ferrara costurou um mundo onde a sociedade, para continuar
a existir, é progressivamente contaminada por uma pestilência inevitável, uma
corrupção irresistível e uma tendência para a destruição impressionante.
Em O Rei de Nova York, a primeira de suas grandes obras-primas
que iria realizar ao longo dos anos noventa, ele conta a história de Frank
White, um chefão da cocaína de Nova York que, após anos encarcerado, se vê em
liberdade de novo para mais uma vez reconstruir seu império, ajudado por sua
gangue de traficantes negros. Ao mesmo tempo que negocia e/ou combate
outras gangues étnicas, também vê em seu encalço um grupo de policiais que
desejam desesperadamente prender Frank e seus cúmplices.
Só pelo início, Ferrara já denuncia o que vem pela frente: cercado
tanto da escória social quanto da alta cúpula da sociedade, White parece ser
ideal para a profissão que escolheu: ao mesmo tempo, é refinado, implacável,
charmoso e brutal – o que faz com que as pessoas nos postos mais altos da
sociedade facilmente se sujeitem a ele, obriga outras gangues a se ajoelharem
com sua mão de ferro, recruta bandidos não filiados, desperta desejo nas
mulheres e a todo o momento faz a polícia se sentir desafiada.
Toda a aura de mito urbano construído em cima de Frank – fazendo dele
um nome muito mais citado do que visto – é construído de forma absolutamente
genial pelo diretor, desde a dança que reintegra o gângster a sua gangue, o que
lembra em muito uma dança tribal, ainda que estejam cantando hip hop até os travellings de luz, sombras, corredores e vidros que
fazem o personagem de Walken, com seu penteado revolto, palidez e figura
imponente parecer uma espécie de Nosferatu reconfigurado,
que faz de Nova York sua Transilvânia, mas que ao contrário da figura que lhe
deu origem, não é uma criatura amaldiçoada por tudo e por todos, ainda que seja
o pária. O mais poderoso dos párias, mas o desajustado em todos os lugares que
frequenta. Inclusive, o clássico de Murnau é citado explicitamente onde uma
tentativa de negociação ocorre num cinema particular onde uma gangue asiática
assiste filmes do expressionista alemão.
A estilização feita da violência é outro ponto impressionante a se
destacar. De cada momento violento, o diretor faz disto um ponto chave de
mudança do roteiro e arranca uma imagem impressionante atrás da outra. O
tratamento que Ferrara dá a cada uma delas é preciso demais – desde a execução
de um informante delator, que tem uns plongées e contra-plongées
aterrorizantes até sua sequência mais famosa, onde em uma boate barra pesada
toda iluminada de azul começam a surgir faíscas brancas que provocam um esporro
sonoro tremendo. Dessa imensa tela azul que não se deixa enxergar mais nada
além dos contornos, Ferrara vai rompendo com luzes que prenunciam morte,
destruição e degradação – a paz pervertida do azul é corrompida pela luz das
balas sendo disparada, o interior da boate é rompido pelas infinitas ruas da
Grande Maçã, o mormaço é substituído pela perseguição, a chuva rompe, começam
as batidas e culminam nas mortes do mais leal dos traficantes e do mais
dedicado policial.
Nessa cena, uma das maiores sínteses do cinema de Abel, podemos
encontrar pela sua estética de raro domínio de compreensão e distorção de
espaço o mesmo que vamos ouvir quando Walken invade o quarto de um dos únicos
cabeças da operação que saiu vivo. “Você acha que me matando em algum clube noturno vai impedir o que leva
alguém a se drogar?”, pergunta
ele. “Eu não sou seu
problema. Eu sou apenas um homem de negócios”. Após esse último discurso, vai embora.
Numa perseguição de clima mais pesado ainda, o último momento de filme leva
todos para o buraco. Policiais, civis e bandidos caem. Até o rei de Nova York,
que faz o trânsito parar, o saudando sem saber. Sem marcha fúnebre, sangrando as
tripas fora, sem o tapete vermelho, sem mulher, Frank White dá seu último
suspiro encerrando uma das sequências mais sufocantes do cinema.
Objetivo, estilizado, metafórico e realista, Abel faz tudo chover na
cara do espectador ao mesmo tempo, uma tempestade de paradoxos a nível de
cartarse. Sem concessões ou freios, foi erguido um monumento cinematográfico de
poderio inenarrável – uma das mais impressionantes orgias de imagem, luz,
sombra, som, música e ruído da história.
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