domingo, dezembro 30, 2012

O Deserto dos Tártaros (Valerio Zurlini, 1976)



Em meio aos diversos compromissos festivos de final de ano a agenda cinematográfica vai sendo tocada do jeito que dá. As sessões, por exemplo, não poderiam ser em horários mais inconvenientes: das 23h00 em diante. Praticamente os horários de pré-estreias. Pena que nada do que tenho visto me despertou a vontade de escrever alguma coisa a respeito: O Hobbit (Peter Jackson, 2012), O Impossível (J.A.Bayona, 2012), As Aventuras de Pi (Ang Lee, 2012) e Os Penetras (Andrucha Waddington, 2012). Estivesse eu de passagem por São Paulo, ao menos haveria o filme As Quatro Voltas (2010), do Michelangelo Frammartino, ou o Hahaha (2010), do Hong Sang-Soo, dois prováveis postulantes a frequentar uma lista de melhores do ano – embora eu ainda não os tenha visto. Do jeito que a coisa anda, vai ficar pro DVD – se é que alguma distribuidora vai assumir a causa. Torçamos!

Bom mesmo tem sido a Mostra Nelson Pereira dos Santos no Canal Brasil, que nos fez o favor de disponibilizar raridades só antes acessíveis aos entusiastas do download gratuito, embora eu duvide que o padrão de apresentação dos filmes esteja no mesmo nível dos que o canal tem nos presenteado – todos restaurados. Pra mim tem sido uma surpresa melhor que a outra. Minha expectativa em torno de Como era gostoso o meu francês (Nelson Pereira dos Santos, 1971) era assistir a uma comédia escrachada e urbana, um tanto sofisticada - no limite do possível para um filme brasileiro da década de 70 (o francês do título me desperta essa sensação) – e ambientada nos glamorosos anos 20 carioca; e o que eu encontrei foi totalmente o oposto, uma obra quase etnográfica, retratando os primórdios da relação índio versus homem branco (tomando os relatos da expedição de Hans Staden no Brasil como referência), no que Nelson incorpora genialmente a antropofagia cara aos então recém extintos tropicalistas. Canibalismo literal e conotativo. Excelente! El Justicero (1967) não deixa nada a dever aos marginais e só me fez repensar o quanto Cinema Novo e Cinema Marginal guardam de semelhanças, a despeito das polêmicas farpas trocadas entre seus integrantes na ocasião.

Eu já estou alongando demais a minha reverência a Nelson Pereira dos Santos e quase estou me esquecendo de abordar o filme que intitula esse post. Na verdade, minhas palavras seriam insignificantes se comparadas às de Suzana Toscano, bloguer portuguesa do portal 4R – Quarta República (quartarepublica.blogspot.com.br). Encontrei seu texto navegando na net, logo após a minha sessão de o Deserto dos Tártaros, e já o li um par de vezes tamanho o meu entusiasmo com a leitura que ela fez do filme. Ainda que a especialidade do portal não seja exatamente o cinema, e sim a economia, a sua abordagem do livro de Dino Buzzati, e por conseqüência da película de Valerio Zurlini, só enriquece a experiência da fruição. A aproximação que ela faz do livro/filme com os eventos que culminaram na crise financeira de 2008 é soberba. No final das contas, só vou nutrindo evidências de que parecemos um cachorro correndo atrás do próprio rabo.

Reproduzo o texto abaixo mas deixo o link da publicação para ser acessado, já que os comentários deixados no corpo da postagem só elevam o nível da discussão. Boa leitura!

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Por Suzana Toscano (24 de agosto de 2011)

Tenho andado muito absorvida com a leitura de “Linhas de Fractura”, do economista Raghuram Rajan (Ed. Babel). Nesse livro, de uma leitura muito fácil, o autor faz um historial dos acontecimentos que considera mais relevantes nas últimas décadas ao nível do sistema financeiro e interpreta os sinais que foram sendo transmitidos e sistematicamente ignorados, até se chegar onde hoje estamos. Visto em retrospectiva, todas as peças do complicadíssimo puzzle parecem ganhar um sentido de fatalidade que legitima a pergunta que hoje tantos fazem “como foi possível”?

Quis o acaso que encontrasse à venda o filme baseado no livro “O Deserto dos Tártaros”, de Dino Buzzati, uma obra prima editada em 1950 e magistralmente passada ao cinema por Valerio Zurlini. A leitura deste livro, ou ver o filme, ganham um significado muito impressivo na sequência da leitura do livro que acima refiro. Dino Buzzati conta a história de um jovem tenente do então império austro húngaro, a quem é atribuído como primeiro posto o longínquo forte de Bastiano, no limite do deserto dos Tártaros.

O jovem oficial percorre a imensidão inóspita até chegar à muralha austera erguida sobre as pedras e virada para o nada, um forte construído na sequência de uma invasão acontecida há séculos mas depois da qual nada, absolutamente nada, fazia prever que voltasse a acontecer. Lá dentro, o regimento e os vários oficiais, todos provenientes da nobreza, cumpriam religiosamente os cerimoniais do exército e comportavam-se, formalmente, como se tudo o que fizessem fosse da maior importância, apesar de poucos acreditarem na utilidade da sua missão. Dia após dia, mês após mês, ano após ano, os rituais cumpriam-se com toda a pompa e o regulamento – absurdo, se olhado o vazio da realidade – impunha-se com o rigor de quem não admitia correr o risco de cometer qualquer erro que pusesse em perigo a missão oficial que ali os conservava.

Todos, desde o general que, em Roma, consumia os seus charutos, até aos oficiais mais antigos que consumiam a sua dignidade na aparência enfatuada dos galões, fingiam cumprir uma missão patriótica guardando o bastião do inimigo que todos supunham ser imaginário. No entanto, insidiosamente, foram ganhando consistência algumas suspeitas de que o inimigo, afinal, existia, e que se preparava, lentamente, longinquamente, para atacar. Alguns sinais emergiram das brumas persistentes no horizonte do bastião, o receio foi alastrado mas, absurdamente, este facto causou o maior desconforto nas cadeias de comando. Todas as tentativas de alertar foram abafadas. Há um episódio fantástico em que o inimigo é claramente visto através de uns binóculos potentes, tornando-se pois impossível, a partir daí, ignorá-lo. A reacção dos que ditavam a estratégia militar foi ordenar que o binóculo fosse confiscado, proibindo qualquer instrumento que pudesse mostrar a evidência. Além disso, para reforçar a ideia de que não havia perigo nenhum, desguarneceram o forte, afastando os oficiais mais esclarecidos e capazes de assumir o comando, deixando lá apenas os oficiais de mais baixa patente e alguns soldados.

Tal como nos mostra R.Rajan em “Linhas de Fractura”, no Deserto dos Tártaros da nossa realidade todas as instituições que tinham como razão de ser regular os mercados, estar atentos aos abusos e impedir os desvarios que conduziram o mundo ocidental a este descalabro, mantiveram os seus rituais, invocaram regulamentos para encobrir a sua incapacidade de agir e esvaziaram-se de sentido útil, fechando os olhos ao perigo e desvalorizando os que, com binóculos primeiro, e com evidência depois, viam que o perigo avançava.

Convido-vos a ler os dois livros, ou a ver o filme. Para muitos que já sofreram os primeiros embates, as conseqüências foram as mesmas. Sonhos, ilusões, vidas inteiras dedicadas a uma causa que supunham válida e em defesa de um bem comum, tudo desperdiçado. No ocidente, nosso bastião, luta-se agora, desordenadamente, contra o inimigo que de repente se concretizou, na esperança de que não tenha sido tarde demais e haja ainda tempo de reunir esforços e encontrar comandantes que impeçam o descalabro.

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