terça-feira, abril 30, 2013

Céu Amarelo (William A. Wellman, 1948)





Formidável esse Ceú Amarelo passando atualmente no Telecine Cult. Mesmo nas produções que lhe fizeram a fama, como em Inimigo Público (1931) e Consciências Mortas (1943), William A. Wellman nunca foi tão capaz de me chamar a atenção quanto nesse filme. Não me recordo de ter visto um western que fizesse menção direta à sequela psicológica legada aos jovens combatentes que sobreviveram à Guerra da Secessão. Normalmente esse assunto tabu se insere melhor em filmes declaradamente de guerra, que já esgotaram o mote em bons e maus exemplares. De uma forma ou de outra, todos os longas de guerra trabalham essa ideia de maneira mais ou menos enfática, ou explícita talvez. Neles, a associação direta que se faz do ato é com a insânia e a barbárie. No faroeste, o enfrentamento é justificável na maioria das vezes, quase que enobrecido, prenunciando a chegada da civilização e da ordem. Luta-se por um bem maior, fundamentando qualquer ímpeto de combate.

É curiosa a forma como Wellman e seu roteirista Lamar Trotti se valem desse recurso, recorrendo a esse apelo dramático, quando a história parece não ter mais para onde caminhar. Um verdadeiro coelho tirado da cartola na hora certa. Um grupo de assaltantes de bancos, liderados por “Stretch” (Gregory Peck), atravessa o deserto de areia para refugiar-se numa cidade fantasma, foragidos da justiça. Em seu entorno, descobrem uma casa habitada por um avô (James Barton) e sua neta (Anne Baxter). Não leva muito tempo para que desconfiem que os dois “escondem”, sob a aparente tranquilidade, uma mina de ouro. Está armado o circo: o embate entre os infratores e a estabilidade familiar será inevitável, conforme dita as convenções do gênero. Antes, o bando e os dois reclusos passarão a interagir entre si despertando em cada um dos personagens desejos e sentimentos ocultos. A tensão dramática desse afrontamento é conduzida com maestria, filtrada pelas lentes sombrias de Joe MacDonald – a fotografia é um show à parte.

De brinde, a presença do enigmático Richard Widmark em seu primeiro western.

quinta-feira, abril 25, 2013

Luz nas Trevas e A Busca



Luz nas Trevas

Mais uma vez, não fosse o SESC e seu festival de melhores filmes só o Canal Brasil para resgatar Luz nas TrevasA Volta do Bandido da Luz Vermelha do limbo. Por sorte, o filme foi selecionado para integrar o calendário do evento em Ribeirão Preto, exibindo longas-metragens selecionados do circuito comercial de 2012.

É curioso observar como dois cineastas que fizeram fama nos anos 60, Rogério Sganzerla e José Mojica Marins, a partir de duas figuras icônicas que passaram a integrar o imaginário nacional, Bandido da Luz Vermelha e Zé do Caixão, respectivamente, adotaram praticamente a mesma via para ressuscitar seus personagens um pouco mais de 30 anos depois deles despontarem nas telas. O bandido voltou pelas mãos da esposa do falecido Rogério Sganzerla, Helena Ignez, dividindo a direção com Ícaro Martins Jr. em Luz das Trevas (2010), e Zé do Caixão reencarnou na pele do próprio Mojica Marins, sob a sua supervisão em Encarnação do Demônio (2008). A bela fotografia de José Roberto Eliezer reforça as semelhanças entre os filmes. Embora a produção de Luz nas Trevas seja posterior ao falecimento de Sganzerla, o roteiro é de sua autoria.

As primeiras imagens dos dois filmes dedicam-se a estabelecer o paradeiro de seus (anti) heróis: ambos estão encarcerados em presídios de segurança máxima, afastados das transformações pelas quais o país foi submetido (ou submeteu-se?) nas últimas quatro décadas. O Brasil já é outro, mas ainda é o mesmo. A partir do mesmo rol enxuto de personagens, centrado nas figuras cartunescas de autoridades, como a polícia e os políticos, os cineastas pintam o Brasil com as cores da violência e da corrupção, sob um verniz deliberadamente debochado. Como bem pontuou José Geraldo Couto em seu texto de 28/09/10, Luz nas Trevas do cinema, “o que era paródico no primeiro Bandido ganha um grau a mais de ironia e derrisão”. Antes havia a ditadura pra chancelar essas práticas, agora...

Ainda que o bandido, surpreendentemente interpretado por Ney Matogrosso, permaneça quase todo o filme atrás das grades, Sganzerla tira da cartola um filho bastardo, o assaltante Tudo ou Nada, que se esforça para seguir os passos de outrora do pai. Em liberdade, ele se alia a edição mais nova da antiga anti-heroína Janete Jane, interpretada pela filha de Helena Ignez e Rogério, Djin Sganzerla, e explora essa condição até as últimas consequências. A tragédia caminha de mãos dadas com a dupla de transgressores, fortemente influenciada pelo par Jean-Paul Belmondo e Anna Karina de O Demônio das Onze Horas (Jean-Luc Godard, 1965) – o original já trazia essa referência.

Como já se passara com O Bandido da Luz Vermelha, é a forma que confere à Luz nas Trevas o caráter libertário, jovial, fluente, pulsante, vívido que o caracteriza, capaz de seduzir os espectadores iniciados com a mesma contundência que o mais tarimbado dos cinéfilos. De José Geraldo Couto vem outra bela passagem, ao registrar a forte presença de Sganzerla em cada plano de Luz nas Trevas, “em especial nas perseguições, filmadas com a câmera acoplada à lateral do automóvel em ligeiro contra-plongé, em cada linha de diálogo, em cada nota da trilha sonora (brilhantemente organizada por sua outra filha, Sinai Sganzerla, com trechos de Jimi Hendrix, Jorge Benjor, Gil, ópera, samba, bolero). Está presente sobretudo no uso da luz não para revelar uma imagem dada, mas para criá-la; no uso do som como contraponto transformador da luz; no uso da montagem como dispositivo multiplicador de sentidos.”



A Busca

Depois de tanto estardalhaço que se fez na comparação do cinema brasileiro com o argentino, prevalecendo nas avaliações a qualidade do segundo sobre o primeiro, parece que finalmente foi produzido um exemplar nacional com a cara de produto argentino. Antes que eu seja mal interpretado, deixe-me esclarecer um ponto: eu sempre achei essa “rixa” totalmente improdutiva, mais apropriada para lidar com as divergências futebolísticas do que artísticas, com efeitos mais deletérios do que propriamente vantajosos para os problemas enfrentados pela produção nacional. E, por mais que os hermanos tenham emplacado uma sequência de filmes merecedora de atenção (sobretudo no início da década de 2000), os bons fluidos já não reverberam com a mesma intensidade.

Não é difícil desqualificar o filme, que se ancora em seu talismã, Wagner Moura, o nosso Ricardo Darín, pra fazer algumas cenas funcionarem na marra. Entre trancos e barrancos, elas acabam funcionando. Desconfio que se eu não estivesse vivenciando o processo de paternidade neste momento, minha tolerância para os “defeitos” do filme teria sido infinitamente menor.

A crítica do Filipe Furtado para a Revista Cinética dá conta do recado.

domingo, abril 21, 2013

O Incrível Homem que Encolheu (Jack Arnold, 1957)









Por Chris Fujiwara

Exposto a uma nuvem misteriosa, provavelmente radioativa, enquanto estava em um cruzeiro, Scott Carey (Grant Williams) se surpreende encolhendo aos poucos. A simplicidade visual do diretor Jack Arnold combina perfeitamente com o caráter absurdo e ambíguo da premissa da história de Richard Matheson. A primeira metade de O Incrível Homem que Encolheu – representando a condição do herói como um problema alternadamente médico, doméstico e socioeconômico – não faria feio ao lado de Delírio de Loucura (1956), de Nicholas Ray, e de Palavras ao Vento (1956), de Douglas Sirk, com seu retrato irônico e aterrorizante da vida da classe média americana virada do avesso. Contudo, é na sua segunda metade – Scott, então menor do que o salto de um sapato, é abandonado em seu porão e precisa enfrentar várias ameaças naturais – que o filme realmente deslancha, tornando-se uma aventura de ficção científica emocionante e poética. O desfecho inspirador – “Para Deus, não existe zero” – é um raro exemplo de cinema popular lidando de forma explícita com a metafísica.

Grande parte da força do filme vem da sua agudeza psicológica e do uso vívido e preciso dos objetos – sua arquitetura de escadas, caixotes, caixas de fósforos e latas de tinta. Para Matheson e Arnold, Scott Carey é um típico homem da era atômica: sua aventura é uma lição sobre a hostilidade do espaço urbano e da propensão indestrutível da humanidade de tomar a si mesma como medida de todas as coisas.

quinta-feira, abril 11, 2013

Não Amarás (Krzysztof Kieslowski, 1988)




“Há seis mil anos, esses mandamentos têm sido inquestionavelmente corretos. Porém, nós os desobedecemos todos os dias. As pessoas sentem que a vida tem algo de errado. Há uma espécie de atmosfera que faz com que as pessoas busquem outros valores. Elas querem contemplar as questões básicas da vida e, provavelmente, é essa a verdadeira razão para contar essas histórias.”
Krzysztof Kieslowski

Durante muito tempo, os dez capítulos de O Decálogo (1988), de Kieslowski, ficaram circunscritos apenas aos felizardos que compareceram à 13ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 1989. A distribuidora Versátil Home Video, que nem existia na época do VHS, levou mais de vinte anos pra colocar no mercado a série produzida para a TV polaca livremente inspirada nos Dez Mandamentos – numa bela edição de luxo. Nesse ínterim, só os dois capítulos alongados que originaram os únicos longas metragens do pacote estavam disponíveis: Não Matarás e Não Amarás.

Eu vi o Não Matarás antes do Telecine 5 virar Telecine Cult, há pelo menos cinco anos atrás. Talvez seja chover no molhado dizer que fiquei embasbacado com o filme: será que existe outra forma de se relacionar ou encarar uma obra dessa envergadura? É o manifesto definitivo contra a pena de morte, sem qualquer ranço de ideologismo ou demagogismo, dotado apenas de um humanismo suficientemente sóbrio. Uma parábola moderna. Ninguém sai ileso dessa experiência. Pode ser que o discurso não leve ninguém a “trocar de lado”, mas é certo que ele abala o alicerce que sustenta o entusiasmo dos seus defensores.

A versão do Não Matarás a que assisti foi a do longa metragem – 56 minutos do capítulo televisivo convertidos em 84, quase meia hora a mais. Já o Não Amarás, só conferi a versão televisiva. O filme está tão redondo na metragem mais curta que temo perder o encanto da proposta na sua variante mais alongada. Pensando bem, o mesmo se passa com o Não Matarás, com as versões trocando de posições. Enquanto escrevo essas linhas começo a me dar conta de que essa divagação talvez seja improdutiva, de forma que qualquer uma delas carrega o devido reconhecimento artístico (convergindo, essencialmente, para o mesmo produto). Independente de qual seja, se houvesse uma ressalva a ser apontada, o mercado já teria dado conta disso.

Num projeto com esse grau de ambição, segmentado em capítulos, é esperado que algumas histórias funcionem melhor do que outras – a comparação é praticamente inevitável. Mas é a típica situação, bastante incomum, em que as mais altas expectativas conseguem ser devidamente preenchidas: o pior dos capítulos é no mínimo ótimo. Alguns, como Não Matarás e Não Amarás, até mereceram uma versão mais alongada para as salas de cinema (abordada nos parágrafos anteriores), para que um contingente maior de pessoas tivessem acesso à magnitude do projeto – ao menos, serviram como porta de entrada para a conferência dos demais episódios.

Enfim, todos os capítulos são dignos de nota, e cada qual contou com um diretor de fotografia diferente (a rigor são nove, já que Piotr Sobocinski fotografou dois episódios, o terceiro “Guardarás domingos e festas de guardas” e o nono “Não desejarás a mulher do próximo”). Conforme texto do colunista Joshua Klein, “O polonês Krzysztof Kieslowski era um dos raros diretores capazes de misturar política, comédia, religião, tragédia e metafísica em seus trabalhos sem parecer nem pretensioso nem tolo... Muito das primeiras obras de Kieslowski falavam de forma indireta sobre as realidades políticas da Polônia da época, mas, com O Decálogo, o diretor tentou algo mais amplo e mais universal. A coleção trata dos conceitos de destino, sorte e fé por meio da interseção de diferentes vidas – filhos, pais, parentes e estranhos -, tentando iluminar os fios invisíveis que nos ligam uns aos outros, mas também os sentimentos e crenças que nos conectam a um poder maior.”   

Não Amarás

Um jovem tímido e inocente espia, pela janela, sua vizinha, por quem se apaixona. Com essas exatas palavras o encarte do DVD de O Decálogo apresenta a sinopse de Não Amarás. De fato, essa é a primeira parte do episódio. O desenlace dessa trama, que envolve uma engenhosa reviravolta, inverte a ótica de observação colocando a vizinha no lugar do jovem.

Os dois protagonistas são indivíduos que habitam mundos distintos, não intercambiáveis: o jovem, Tomek (Olaf Lubaszenko), é criado pela avó numa redoma sacra, imaculada, cuja opressão (religiosa, cristã) reprime seus desejos mais escusos; a vizinha, Magda (Grazyna Szapolowska), em pleno domínio de suas liberdades (sexuais, sobretudo), exerce-as sob os olhares cobiçadores de Tomek. Depois de uma sequência de tentativas frustradas de chamar a atenção de Magda, com algumas delas beirando o sadismo, Tomek se vê numa rua sem saída, forçado a declarar seu amor por ela. Numa dessas infrutíferas investidas, ele se candidata para entregar o leite matutino na porta da casa de Magda, na expectativa de se aproximar dela (ou, adentrar seu mundo).

Aí entra o gênio de Kieslowski. Numa escolha falsamente despretensiosa, que esconde um controle milimetricamente calculado, o leite, conduzido pelo inocente Tomek, assume às vezes de um vetor, um catalisador, que leva a pureza ao universo obsceno habitado por Magda (não é por coincidência que ambos se caracterizam pela coloração branca). A partir do derramamento do seu conteúdo sobre a mesa da cozinha (a primeira imagem que eu elegi para ilustrar o post), ao tocá-lo, ela se aproxima, ao menos intencionalmente, do que seria o mundo imaculado de Tomek.

Quando o jogo inverte de posição, e Magda assume as rédeas da situação, ela o conduz ao seu leito (coberto por uma colcha vermelho vivo, cor de sangue), que é a fiel representação do seu mundo, para lhe introduzir aos prazeres do sexo. Tomek, acuado, intimidado pelo ritual nada cerimonioso que precede o coito, “foge” da casa de Magda de volta para a residência de sua avó, onde ele encontrará uma forma de “se livrar” das impurezas que circulavam em seu organismo (a segunda imagem selecionada ilustra esse momento). Seu sangue, que colore o mundo de Magda, assume a conotação negativa que o vermelho inadvertidamente carrega consigo: indecência, grosseria, malícia e crueldade. Seu espírito rejeita esses impropérios e obriga seu corpo a os expelir.

Dois mundos em rota de colisão e uma relação fadada ao fracasso. Duas imagens que condensam uma miríade de significados. Coincidência ou não, o vermelho e o branco são as cores da bandeira polonesa.

quinta-feira, abril 04, 2013

Roger Ebert (1942 - 2013)



“We live in a box of space and time. Movies are windows in its walls. They allow us to enter other minds – not simply in the sense of identifying with the characters, although that is an important part of it, but by seeing the world as another person sees it. François Truffaut said that for a director it was an inspiring sight to walk to the front of a movie theatre, turn around, and look back at the faces of the audience, turned up to the light from the screen. If the film is any good, those faces reflect an out-of-the-body experience: The audience for a brief time is somewhere else, concerned with lives that are not its own. Of all the arts, movies are the most powerful aid to empathy, and good ones make us into better people.” 
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“What happens when you see a lot of good movies is that directorial voices and styles begin to emerge. You see that some movies are made by individuals, and others by committees. Some movies are simply about the personalities they capture (the Marx Brothers and Astaire and Rogers). Others are about the mastery of genre, from Star Wars, which attempt to transcend swashbuckling, to Detour, which attempts to hide in the shadows of noir. Most good movies are about the style, tone, and vision of their makers. A director will strike a chord in your imagination, and you will be compelled to seek out the other works. Directors become like friends. Buñuel is delighted by the shamelessness of human nature. Scorsese is charged by the lurid possibilities of Catholic guilt. Kurosawa celebrates individuals in a country that suspects them. Wilder is astonished by the things some people will do to be happy. Keaton is about the struggle of man´s spirit against the physical facts of the world. Hitchcock creates images that have the quality of guilty dreams. Sooner or later every lover of the film arrives at Ozu, and understands that the movies are not about moving, but about whether to move.”
ROGER EBERT