quinta-feira, abril 11, 2013

Não Amarás (Krzysztof Kieslowski, 1988)




“Há seis mil anos, esses mandamentos têm sido inquestionavelmente corretos. Porém, nós os desobedecemos todos os dias. As pessoas sentem que a vida tem algo de errado. Há uma espécie de atmosfera que faz com que as pessoas busquem outros valores. Elas querem contemplar as questões básicas da vida e, provavelmente, é essa a verdadeira razão para contar essas histórias.”
Krzysztof Kieslowski

Durante muito tempo, os dez capítulos de O Decálogo (1988), de Kieslowski, ficaram circunscritos apenas aos felizardos que compareceram à 13ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 1989. A distribuidora Versátil Home Video, que nem existia na época do VHS, levou mais de vinte anos pra colocar no mercado a série produzida para a TV polaca livremente inspirada nos Dez Mandamentos – numa bela edição de luxo. Nesse ínterim, só os dois capítulos alongados que originaram os únicos longas metragens do pacote estavam disponíveis: Não Matarás e Não Amarás.

Eu vi o Não Matarás antes do Telecine 5 virar Telecine Cult, há pelo menos cinco anos atrás. Talvez seja chover no molhado dizer que fiquei embasbacado com o filme: será que existe outra forma de se relacionar ou encarar uma obra dessa envergadura? É o manifesto definitivo contra a pena de morte, sem qualquer ranço de ideologismo ou demagogismo, dotado apenas de um humanismo suficientemente sóbrio. Uma parábola moderna. Ninguém sai ileso dessa experiência. Pode ser que o discurso não leve ninguém a “trocar de lado”, mas é certo que ele abala o alicerce que sustenta o entusiasmo dos seus defensores.

A versão do Não Matarás a que assisti foi a do longa metragem – 56 minutos do capítulo televisivo convertidos em 84, quase meia hora a mais. Já o Não Amarás, só conferi a versão televisiva. O filme está tão redondo na metragem mais curta que temo perder o encanto da proposta na sua variante mais alongada. Pensando bem, o mesmo se passa com o Não Matarás, com as versões trocando de posições. Enquanto escrevo essas linhas começo a me dar conta de que essa divagação talvez seja improdutiva, de forma que qualquer uma delas carrega o devido reconhecimento artístico (convergindo, essencialmente, para o mesmo produto). Independente de qual seja, se houvesse uma ressalva a ser apontada, o mercado já teria dado conta disso.

Num projeto com esse grau de ambição, segmentado em capítulos, é esperado que algumas histórias funcionem melhor do que outras – a comparação é praticamente inevitável. Mas é a típica situação, bastante incomum, em que as mais altas expectativas conseguem ser devidamente preenchidas: o pior dos capítulos é no mínimo ótimo. Alguns, como Não Matarás e Não Amarás, até mereceram uma versão mais alongada para as salas de cinema (abordada nos parágrafos anteriores), para que um contingente maior de pessoas tivessem acesso à magnitude do projeto – ao menos, serviram como porta de entrada para a conferência dos demais episódios.

Enfim, todos os capítulos são dignos de nota, e cada qual contou com um diretor de fotografia diferente (a rigor são nove, já que Piotr Sobocinski fotografou dois episódios, o terceiro “Guardarás domingos e festas de guardas” e o nono “Não desejarás a mulher do próximo”). Conforme texto do colunista Joshua Klein, “O polonês Krzysztof Kieslowski era um dos raros diretores capazes de misturar política, comédia, religião, tragédia e metafísica em seus trabalhos sem parecer nem pretensioso nem tolo... Muito das primeiras obras de Kieslowski falavam de forma indireta sobre as realidades políticas da Polônia da época, mas, com O Decálogo, o diretor tentou algo mais amplo e mais universal. A coleção trata dos conceitos de destino, sorte e fé por meio da interseção de diferentes vidas – filhos, pais, parentes e estranhos -, tentando iluminar os fios invisíveis que nos ligam uns aos outros, mas também os sentimentos e crenças que nos conectam a um poder maior.”   

Não Amarás

Um jovem tímido e inocente espia, pela janela, sua vizinha, por quem se apaixona. Com essas exatas palavras o encarte do DVD de O Decálogo apresenta a sinopse de Não Amarás. De fato, essa é a primeira parte do episódio. O desenlace dessa trama, que envolve uma engenhosa reviravolta, inverte a ótica de observação colocando a vizinha no lugar do jovem.

Os dois protagonistas são indivíduos que habitam mundos distintos, não intercambiáveis: o jovem, Tomek (Olaf Lubaszenko), é criado pela avó numa redoma sacra, imaculada, cuja opressão (religiosa, cristã) reprime seus desejos mais escusos; a vizinha, Magda (Grazyna Szapolowska), em pleno domínio de suas liberdades (sexuais, sobretudo), exerce-as sob os olhares cobiçadores de Tomek. Depois de uma sequência de tentativas frustradas de chamar a atenção de Magda, com algumas delas beirando o sadismo, Tomek se vê numa rua sem saída, forçado a declarar seu amor por ela. Numa dessas infrutíferas investidas, ele se candidata para entregar o leite matutino na porta da casa de Magda, na expectativa de se aproximar dela (ou, adentrar seu mundo).

Aí entra o gênio de Kieslowski. Numa escolha falsamente despretensiosa, que esconde um controle milimetricamente calculado, o leite, conduzido pelo inocente Tomek, assume às vezes de um vetor, um catalisador, que leva a pureza ao universo obsceno habitado por Magda (não é por coincidência que ambos se caracterizam pela coloração branca). A partir do derramamento do seu conteúdo sobre a mesa da cozinha (a primeira imagem que eu elegi para ilustrar o post), ao tocá-lo, ela se aproxima, ao menos intencionalmente, do que seria o mundo imaculado de Tomek.

Quando o jogo inverte de posição, e Magda assume as rédeas da situação, ela o conduz ao seu leito (coberto por uma colcha vermelho vivo, cor de sangue), que é a fiel representação do seu mundo, para lhe introduzir aos prazeres do sexo. Tomek, acuado, intimidado pelo ritual nada cerimonioso que precede o coito, “foge” da casa de Magda de volta para a residência de sua avó, onde ele encontrará uma forma de “se livrar” das impurezas que circulavam em seu organismo (a segunda imagem selecionada ilustra esse momento). Seu sangue, que colore o mundo de Magda, assume a conotação negativa que o vermelho inadvertidamente carrega consigo: indecência, grosseria, malícia e crueldade. Seu espírito rejeita esses impropérios e obriga seu corpo a os expelir.

Dois mundos em rota de colisão e uma relação fadada ao fracasso. Duas imagens que condensam uma miríade de significados. Coincidência ou não, o vermelho e o branco são as cores da bandeira polonesa.

5 comentários:

  1. Roberto, vi a versão para cinema antes da televisiva, e te digo que fiquei bastante tocado e impressionado na primeira vez, bem mais do que vendo o Decálogo. Enfim, existem algumas diferenças realmente, mas o final da versão de cinema me toca profundamente. Vejo como uma bela defesa do ato de amor, mesmo quando o achamos já perdido. Mas enfim, esse é um dos grandes filmes da minha vida, de verdade. Kieslowski é gênio.

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    1. Rafael, obrigado pelo compartilhamento das informações. Não vou conseguir escapar da versão mais alongada. Abraço.

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  3. Incrivelmente bem escrito teu relatorio.No fundo como vc o sentiu.Da nos a nitida impressao que estamos visualizando nao so as cenas como as cores.Parabens!

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