“Há seis mil anos, esses mandamentos têm sido inquestionavelmente corretos. Porém, nós os desobedecemos todos os dias. As pessoas sentem que a vida tem algo de errado. Há uma espécie de atmosfera que faz com que as pessoas busquem outros valores. Elas querem contemplar as questões básicas da vida e, provavelmente, é essa a verdadeira razão para contar essas histórias.”
Krzysztof Kieslowski
Durante muito tempo, os dez capítulos
de O Decálogo (1988), de Kieslowski, ficaram
circunscritos apenas aos felizardos que compareceram à 13ª edição da Mostra Internacional de Cinema de
São Paulo, em 1989. A distribuidora Versátil Home Video, que nem existia na
época do VHS, levou mais de vinte anos pra colocar no mercado a série produzida
para a TV polaca livremente inspirada nos Dez Mandamentos – numa bela edição de
luxo. Nesse ínterim, só os dois capítulos alongados que originaram os únicos longas
metragens do pacote estavam disponíveis: Não
Matarás e Não Amarás.
Eu vi o Não Matarás antes do Telecine 5 virar Telecine Cult, há pelo menos
cinco anos atrás. Talvez seja chover no
molhado dizer que fiquei embasbacado com o filme: será que existe outra
forma de se relacionar ou encarar uma obra dessa envergadura? É o manifesto
definitivo contra a pena de morte, sem qualquer ranço de ideologismo ou
demagogismo, dotado apenas de um humanismo suficientemente sóbrio. Uma parábola
moderna. Ninguém sai ileso dessa experiência. Pode ser que o discurso não leve ninguém
a “trocar de lado”, mas é certo que ele abala o alicerce que sustenta o
entusiasmo dos seus defensores.
A versão do Não Matarás a que assisti foi a do longa metragem – 56 minutos do
capítulo televisivo convertidos em 84, quase meia hora a mais. Já o Não Amarás, só conferi a versão
televisiva. O filme está tão redondo na metragem mais curta que temo perder o
encanto da proposta na sua variante mais alongada. Pensando bem, o mesmo se
passa com o Não Matarás, com as
versões trocando de posições. Enquanto escrevo essas linhas começo a me dar
conta de que essa divagação talvez seja improdutiva, de forma que qualquer uma
delas carrega o devido reconhecimento artístico (convergindo, essencialmente,
para o mesmo produto). Independente de qual seja, se houvesse uma ressalva a
ser apontada, o mercado já teria dado conta disso.
Num projeto com esse grau de
ambição, segmentado em capítulos, é esperado que algumas histórias funcionem
melhor do que outras – a comparação é praticamente inevitável. Mas é a típica
situação, bastante incomum, em que as mais altas expectativas conseguem ser
devidamente preenchidas: o pior dos capítulos é no mínimo ótimo. Alguns, como Não Matarás e Não Amarás, até mereceram uma versão mais alongada para as salas de
cinema (abordada nos parágrafos anteriores), para que um contingente maior de
pessoas tivessem acesso à magnitude do projeto – ao menos, serviram como porta
de entrada para a conferência dos demais episódios.
Enfim, todos os capítulos são
dignos de nota, e cada qual contou com um diretor de fotografia diferente (a
rigor são nove, já que Piotr Sobocinski fotografou dois episódios, o terceiro “Guardarás
domingos e festas de guardas” e o nono “Não desejarás a mulher do próximo”). Conforme
texto do colunista Joshua Klein, “O polonês Krzysztof Kieslowski era um dos
raros diretores capazes de misturar política, comédia, religião, tragédia e
metafísica em seus trabalhos sem parecer nem pretensioso nem tolo... Muito das
primeiras obras de Kieslowski falavam de forma indireta sobre as realidades
políticas da Polônia da época, mas, com O
Decálogo, o diretor tentou algo mais amplo e mais universal. A coleção
trata dos conceitos de destino, sorte e fé por meio da interseção de diferentes
vidas – filhos, pais, parentes e estranhos -, tentando iluminar os fios
invisíveis que nos ligam uns aos outros, mas também os sentimentos e crenças
que nos conectam a um poder maior.”
Não Amarás
Um jovem tímido e inocente espia,
pela janela, sua vizinha, por quem se apaixona. Com essas exatas palavras o
encarte do DVD de O Decálogo
apresenta a sinopse de Não Amarás. De
fato, essa é a primeira parte do episódio. O desenlace dessa trama, que envolve
uma engenhosa reviravolta, inverte a ótica de observação colocando a vizinha no
lugar do jovem.
Os dois protagonistas são
indivíduos que habitam mundos distintos, não intercambiáveis: o jovem, Tomek
(Olaf Lubaszenko), é criado pela avó numa redoma sacra, imaculada, cuja
opressão (religiosa, cristã) reprime seus desejos mais escusos; a vizinha,
Magda (Grazyna Szapolowska), em pleno domínio de suas liberdades (sexuais,
sobretudo), exerce-as sob os olhares cobiçadores de Tomek. Depois de uma sequência
de tentativas frustradas de chamar a atenção de Magda, com algumas delas
beirando o sadismo, Tomek se vê numa rua sem saída, forçado a declarar seu amor
por ela. Numa dessas infrutíferas investidas, ele se candidata para entregar o
leite matutino na porta da casa de Magda, na expectativa de se aproximar dela
(ou, adentrar seu mundo).
Aí entra o gênio de Kieslowski. Numa escolha falsamente despretensiosa,
que esconde um controle milimetricamente calculado, o leite, conduzido pelo
inocente Tomek, assume às vezes de um vetor, um catalisador, que leva a pureza
ao universo obsceno habitado por
Magda (não é por coincidência que ambos se caracterizam pela coloração branca).
A partir do derramamento do seu conteúdo sobre a mesa da cozinha (a primeira
imagem que eu elegi para ilustrar o post),
ao tocá-lo, ela se aproxima, ao menos intencionalmente, do que seria o mundo
imaculado de Tomek.
Quando o jogo inverte de posição,
e Magda assume as rédeas da situação, ela o conduz ao seu leito (coberto por
uma colcha vermelho vivo, cor de sangue), que é a fiel representação do seu
mundo, para lhe introduzir aos prazeres do sexo. Tomek, acuado, intimidado pelo
ritual nada cerimonioso que precede o
coito, “foge” da casa de Magda de volta para a residência de sua avó, onde ele encontrará
uma forma de “se livrar” das impurezas que circulavam em seu organismo (a
segunda imagem selecionada ilustra esse momento). Seu sangue, que colore o mundo
de Magda, assume a conotação negativa que o vermelho inadvertidamente carrega
consigo: indecência, grosseria, malícia e crueldade. Seu espírito rejeita esses
impropérios e obriga seu corpo a os expelir.
Dois mundos em rota de colisão e
uma relação fadada ao fracasso. Duas imagens que condensam uma miríade de
significados. Coincidência ou não, o vermelho e o branco são as cores da
bandeira polonesa.
Roberto, vi a versão para cinema antes da televisiva, e te digo que fiquei bastante tocado e impressionado na primeira vez, bem mais do que vendo o Decálogo. Enfim, existem algumas diferenças realmente, mas o final da versão de cinema me toca profundamente. Vejo como uma bela defesa do ato de amor, mesmo quando o achamos já perdido. Mas enfim, esse é um dos grandes filmes da minha vida, de verdade. Kieslowski é gênio.
ResponderExcluirRafael, obrigado pelo compartilhamento das informações. Não vou conseguir escapar da versão mais alongada. Abraço.
ExcluirBaixar o Filme - Não Amarás - [A Short Film About Love] - Um dos melhores filmes sobre amor platônico, chocante e intrigante vale a pena conferir - http://mcaf.ee/16sd7
ResponderExcluirIncrivelmente bem escrito teu relatorio.No fundo como vc o sentiu.Da nos a nitida impressao que estamos visualizando nao so as cenas como as cores.Parabens!
ResponderExcluirObrigado pelas palavras Paula. Seja sempre bem-vinda!
Excluir