quinta-feira, fevereiro 06, 2014

Eduardo Coutinho (1933 - 2014)


Abaixo, dois pequenos trechos da série de publicações intitulada Encontros, A Arte da Entrevista, cuja edição voltada para o cineasta Eduardo Coutinho foi organizada por Felipe Bragança (Editora Azougue Editorial). Essa é uma coleção de qualidade superlativa, indispensável para qualquer interessado nos entrevistados que conferem seus nomes aos livros. Conforme nota que encerra as publicações: “Em cada volume da Coleção Encontros trazemos um olhar abrangente sobre o entrevistado, com uma seleção criteriosa de depoimentos de diversos momentos e contextos de sua trajetória”. O cinema conta, ainda, com edições de Rogério Sganzerla e Ismail Xavier.

As duas passagens foram extraídas do capítulo em que Valéria Macedo entrevista Eduardo Coutinho para a revista Sexta-feira, em abril de 1998. As perguntas foram suprimidas.

 “...Não existe um cinema de documentário que seja o real. Não estou preocupado se o cara que eu entrevisto está dizendo a verdade – ele conta a sua experiência, que é a memória que tem hoje de toda a sua vida, com inserções do que ele leu, do que ele viu, do que ele ouviu; e que é uma verdade, ao mesmo tempo que é o imaginário. Não estou preocupado com a realidade pedestre das coisas, por isso a palavra dele me interessa.

Se eu tiver de escolher entre dois projetos – um sobre um tema medíocre filmado no sertão do Nordeste e um sobre um tema quente filmado na cidade de São Paulo – eu escolho o do Nordeste. A linguagem oral é essencial no imaginário presente, no lugar em que a cultura industrial não penetrou tanto. Ao contrário do que se pensa, o cara que é analfabeto ou pouco alfabetizado e que vive num espaço em que a cultura oral é predominante, ele tem uma necessidade mais absoluta de se expressar bem do que o cara que vive numa cultura industrial. As pessoas da cidade de São Paulo falam mal, enquanto que no sertão a expressão é riquíssima, não só no que dizem, não só porque é eloquente, mas porque no fundo é mais precisa que a linguagem urbana. Eu me lembro de expressões do Nordeste, até da Zona da Mata, que falam coisas como: “É na dura sorte”. Essa expressão é de uma beleza extraordinária, e assim são. Essa eloquência você não vai encontrar na cidade”.

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“Eu não sou especialmente simpático com as pessoas. Quando falo com um nordestino, aparentemente não tenho nada que ver com ele. E essa diferença eu não procuro falsamente diminuir. É claro que eu uso uma linguagem coloquial, mas não tento fingir que sou igual. Eu não sou igual duplamente: porque estou atrás da câmera e porque não sou igual socialmente. Ao não fingir, você começa a limpar a área. É a partir dessa diferença assumida que certa igualdade pode se estabelecer. Então, apesar de não ter nenhum elemento prévio para criar uma relação positiva na entrevista, eu consigo criar uma certa intimidade que a maioria dos diretores não consegue.

A primeira regra é que ninguém me contará uma coisa na câmera que já tenha me contado fora. Então, de um lado, o cara está me dizendo aquilo pela primeira vez, não é um pão amanhecido. Ele pode ter dito a um assistente, mas não a mim. Para mim, o momento da filmagem é sempre o momento da relação, isso é essencial. O transe do cinema ocorre nesse momento, nem antes, nem depois. Eu não quero fazer uma sociologia da favela; por isso, é importante que, no momento da filmagem, eu não saiba o que esse cara vai dizer. Nessa hora, minha tensão é maior que a dele. De repente, o cara pode ser um chato, ou então você pensa que não vai render nada e o cara dispara e é maravilhoso. Esse tipo de coisa possui uma tensão extraordinária, tudo está em aberto.

Segunda coisa, geralmente há um set da entrevista, assim como o set da psicanálise: muitas luzes sobre uma pessoa sentada a três ou quatro metros distante do diretor, porque a câmera não pode mostrá-lo. E ninguém fala normalmente a essa distância. Então, se criou esse clima, dificilmente a conversa será boa. O que cria a tensão é chegar na casa da pessoa com a câmera ligada. Isso obriga toda a equipe a inventar: a câmera, o cara do som, porque eu tenho que estar completamente ligado na pessoa que está falando. Em muitos casos, portanto, o câmera é que tem que decidir o enquadramento”.

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