A correria da vida real anda
cobrando um preço alto aqui em casa, o que tem dificultado as minhas postagens já
bastante rarefeitas. A abertura de um novo negócio limou o resquício de tempo
que ainda restava, comprometendo a trôpega escrita. Para não deixar a peteca
cair, ando reproduzindo alguns textos de terceiros.
O www.estranhoencontro.blogspot.com.br
da Andrea Ormond é o melhor espaço independente existente na net voltado para a
exploração do cinema nacional. Minhas consultas ao seu blog são sempre
enriquecedoras, já que sua abordagem esmiúça cada produção em relação ao
contexto em que foram produzidas, trazendo à tona aspectos relevantes que só um
olhar atento é capaz de revelar. Não foram poucas as ocasiões em que um filme
só se revelou para mim a partir da leitura de um de seus textos. Bastam alguns
acessos para perceber o quão enciclopédico é o seu conhecimento a respeito do
nossa produção. Depois que o descobri, já há alguns bons anos, ele se tornou
obrigatório para mim.
Por Andrea Ormond,
Em 1970, época de realização deste “A
Casa Assassinada”, Paulo César Saraceni, Mário
Carneiro e Antonio Carlos Jobim eram uma trinca bem azeitada, sete
anos após a aventura inicial em “Porto das Caixas” (1963).
Diretor-roteirista (Saraceni), montador-fotógrafo (Carneiro) e
compositor (Jobim) voltavam agora os olhos para “Crônica
da Casa Assassinada”, obra do mesmo argumentista de “Porto
das Caixas”, Lúcio Cardoso – falecido em 1968 –, numa
reiteração que não tem nada de casual.
É clichê qualificá-lo como “cavalheiro do tipo fino sofisticado”, mas o slogan está bem próximo da
verdade. Cardoso era o irmão/pai/amigo,
responsável pela formação intelectual
de vários jovens, criando um vínculo atemporal, à
semelhança dos tutores ingleses e seus
pupils.
Como não estávamos em Oxford,
mas sim na Guanabara, a
audiência de Lúcio incluía gente como Saraceni e Luiz Carlos Lacerda. Este
último, coincidentemente, também em 1970 rodava “Mãos
Vazias” – penúltimo filme de Leila Diniz
–, baseado em romance homônimo
de Cardoso.
Tendo as referências acima fica mais fácil adentramos os portais do
tempo que levam à “Casa Assassinada”. Desde a leitura inicial do
livro, em 1959, Saraceni se interessou em adaptá-lo ao
cinema.
O projeto teve idas e vindas
– com direito, inclusive, a
recomendação da amiga Edla Van Steen para que Saraceni convidasse Luchino
Visconti –, terminando felizmente no início da década de 70 com um Saraceni e um ambiente fílmico brasileiro maduros, capazes
de compreender a obra e não simplificá-la barbaramente.
Digo isto porque a família Menezes, que habita a “casa
assassinada”, mansão decadente no sul de Minas
– as locações foram em Valença, interior
do estado do Rio – é uma reunião de tipos espectrais, folclóricos, sombrios.
Os Menezes vivem numa dupla-face entre o desequilíbrio existencial – que
inclui religiosidade e hipocrisia das velhas famílias mineiras – e
o lado onírico, que desemboca na multiplicidade de
narradores, alegorias e cortes temporais. No romance, levam o leitor a construir o
quebra-cabeças e a conhecer os delírios de personagens em um estilo literário “intimista”, que
muitos associam à escrita de Clarice Lispector.
Por isto, crucificar a demência dos Menezes, tachando-os
como horrorosos, não seria o ideal. Melhor fez Saraceni, ao colocá-los
convivendo como deuses de si mesmos, cada qual num conflito particular.
Nina (Norma Bengell) é casada com Valdo Menezes (Rubens
Araujo), irmão de Demétrio (Nelson Dantas), o louco-chefe, por
sua vez casado com Ana (Tetê Medina), a abutre-mor que olha Nina à
distância, cobiça-a pela voluptuosidade que inveja e, claro, quer
destruir.
Alberto (Augusto Lorenzo), roceiro apaixonado por Nina, tem
um caso com a patroa mas suicida-se depois de vários desencontros. Passados
alguns anos, existe um incesto fundamental entre Nina e André (também
Augusto Lorenzo, suposto
filho da moça e do capataz).
Por outro lado, literalmente trancado em um dos cômodos da
casa, tal qual uma das pragas do Egito, está a maravilhosa figura
ursina de Timóteo (Carlos Kroeber, em interpretação estupenda, no
rol das maiores de nosso cinema).
Homossexual exagerado, triunfal, a boca pintada, os
traços realçados pela maquiagem, pelas roupas e jóias do guarda-roupas da
falecida mãe, Timóteo se funde em Nina e ela nele, como
se ambos se prometessem a salvação que nunca se concretizaria, diante
do ambiente atormentado em que vivem.
“Deus é um canteiro de
violetas, cuja estação não passa nunca”, Timóteo vocifera em uma metáfora
belíssima sobre o prazer e o amor (simbolizados nas violetas, que
Alberto colocava diariamente na janela do quarto de Nina) em
contraposição a um Deus perverso, punitivo, censor das relações humanas
tomadas como “exóticas” e pecaminosas.
A frase ecoa no velório de Nina,
depois de Timóteo beijar o rosto do
cadáver e estapeá-lo uma vez, revoltado. Reparem que ele havia
chegado ao local carregado por mucamos negros, em um dos momentos em que o
surrealismo dá a tônica da trama. No meio da fauna típica dos velórios, do
tom farsesco em que os risos, cafezinhos e falsas palavras de conforto
pululam aqui e ali, é aquela figura over, ampla
e bisonha de Timóteo a única provida de humanismo e dignidade.
Figurinos brilhantes de Ferdy Carneiro – colaborador freqüente de
Saraceni e Mário Carneiro –; fotografia e montagem de Mário Carneiro
trabalhando na contenção entre cores frias e exuberantes, trazendo
o quê viscontianotambém imprimido pela direção de Saraceni.
Essa massa de imagens (figurino e fotografia), por
sinal, alcança vigor muito maior que o do roteiro, que trabalha com a
ingratíssima tarefa de adaptar para o cinema uma obra perfeita e talhada em
outro universo, o literário, vasto por si só.
A poética do livro é difícil de ser verbalizada naturalmente pelos
atores. As frases longas nem sempre soam casadas com os conflitos visuais. Mesmo
assim, há acertos como o do uso do arquétipo de padre interditor, ao
qual Ana literalmente se agarra e acaricia, para dar vazão à culpa e aos
seus delírios histéricos.
Jogado por décadas em algum porão à espera de ser trazido de volta,
"A Casa Assassinada" por pouco não ficou na obscuridade. Muitos o
davam como perdido, mas a partir dos anos 90 passou a ser figurinha fácil no
Canal Brasil.
Dois momentos permanecem como fantasmas que rodeiam o longa: o rosto de
Lúcio Cardoso e a citação do capítulo
11, versículos 29 e 30 do
livro de São João na Bíblia – em que Jesus ressuscita Lázaro porque fiel à
Palavra. Aparecem antes dos créditos, mas servem de aperitivo e elementos
inicializadores, como se encerrassem o enigma que atormenta
as paredes descascadas na mansão da fictícia Vila Velha.
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