Quando da reestréia de 2001, Uma Odisséia no Espaço (Stanley
Kubrick, 1968) em cópia restaurada nos cinemas brasileiros em agosto de
1997, Ruy Castro escreveu um belíssimo ensaio para o jornal Estado de S.Paulo, intitulado Fita é tão do seu tempo que podia chamar-se
1968, em que alertava o leitor para o caráter ultra temporal que o filme
carrega consigo. Ele conta que compareceu a três sessões na época de sua
estréia e só voltou a revê-lo em 1974, quando a Metro o relançou. Ao
revisitá-lo, seis anos depois, um “outro filme” se revelou para ele. “Não fui
eu quem mudou nem o filme. Foi a época. 2001
era um filme tão do seu tempo que, pensando bem, poderia chamar-se 1968.
Não porque o mundo que o filme retrata já existisse (nem de longe, embora o homem
fosse pisar na Lua apenas um ano depois), mas porque era uma visão tipicamente
1968 de como o futuro seria. E não apenas quanto aos gadgets eletrônicos que ele mostrava, mas quanto a todo o espírito da época, embutido em cada
fotograma do filme”.
Esse texto do Ruy Castro, sobretudo a expressão espírito da época,
me veio à cabeça algumas vezes enquanto eu via 2 Coelhos e o vetor dessa lembrança, que me atormentou durante boa
parte da projeção, foi a presença do ator Fernando Alves Pinto. Talvez o leitor
esteja se perguntando o que me levou a estabelecer essa conexão meio esdrúxula.
Já explico melhor.
O Fernando Alves Pinto debutou na
tela grande como protagonista de um dos filmes mais emblemáticos da Retomada do cinema nacional: Terra Estrangeira (1995), de Walter Salles e Daniela Thomas. Após a
extinção da Embrafilme pelo governo de Fernando Collor de Mello em 1989, a
produção cinematográfica brasileira beirou a irrelevância (do ponto de vista de
número de produções – de 1992 a 1994, apenas 13 longas conseguiram chegar ao
circuito) e só voltou a chamar a atenção a partir de 1995, fortalecida pelos
lançamentos de Terra Estrangeira e Carlota Joaquina – Princesa do Brasil
(1995), de Carla Camurati. Ambos os filmes se tornaram representativos desse
lamentável episódio porque estão impregnados do espírito da época em questão - e, naturalmente, porque são bons.
Nas palavras do crítico Pedro Butcher, “O
que Terra Estrangeira projetou nas
telas foi o reflexo de um sentimento generalizado da juventude da época. A
falta de perspectivas e a desilusão política geraram um forte movimento de
êxodo, que nas mãos de Walter Salles e Daniela Thomas se transformou em mescla
lírica de road movie e filme noir. Terra Estrangeira partiu do desejo explícito de falar dessa geração
que viveu na carne a crise do fim dos anos 80 e o começo dos 90. Sob o disfarce
dos filmes de gênero, abriga temas que serão recorrentes nesta nova fase do
cinema brasileiro (o que ficou conhecido como Cinema da Retomada), como a
maternidade perdida, a procura do pai, o desenraizamento e a sensação de
impotência e desilusão.”
Pois bem, eis que agora, 17 anos depois,
o ator Fernando Alves Pinto, que andava esquecido em produções pouco
expressivas, volta a interpretar um personagem em outro filme que carrega bem o espírito de sua época (o Brasil de
hoje, no caso): 2 Coelhos. O país e o
cinema brasileiro experimentam atualmente uma condição bem distinta daquela
vivida pelos “caras pintadas” durante o processo de impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello. Embora a
corrupção do meio político ainda caminhe a passos largos, a estabilidade
econômica conquistada à duras penas combinada à crise financeira que varre os
países do Primeiro Mundo, alterou a percepção que o Brasil desperta no âmbito
nacional e internacional para melhor. O Brasil é visto como a terra das
oportunidades; de repente passamos a ser necessários, indispensáveis. Parodiando
o linguajar cinematográfico, deixamos de ser coadjuvantes para nos tornarmos
protagonistas da história (a euforia condiz com as circunstâncias). O nosso cinema,
que durante muito tempo foi taxado de pobre e amador (sobretudo do ponto de
vista técnico), tem emplacado produções mais robustas e atraentes, ainda que
não necessariamente relevantes (sobretudo do ponto de vista crítico). O modelo
adotado como referência é o americano – o mais bem aceito, sinônimo de sucesso
de público.
Enquanto o Paco de Terra Estrangeira deixava o país pra
trás – pelas razões listadas pelo Pedro Butcher -, o Edgar de 2 Coelhos volta para o Brasil depois de
uma temporada em Miami. Embora os motivos de seu retorno não sejam propriamente
os mesmos que atraem uma legião de estrangeiros ao nosso Brasil de hoje, esse herói
dos nossos tempos retorna determinado a fazer justiça (ou melhor, vingança) e
combater a corrupção que assola o nosso país. Guardadas as devidas proporções,
Edgar não deixa de ser uma cria do Capitão Nascimento de Tropa de Elite - numa vertente menos pretensiosa (ele não pretende
acabar com a corrupção do país) e mais bem humorada. O típico herói americano
que faz justiça com as próprias mãos. Ele se vale da inércia do Estado corrupto
para agir conforme os seus (ou talvez, os nossos) princípios morais.
A influência norte-americana não
se nota apenas na composição dos personagens, ela se faz presente também na
linguagem e na estética adotadas para narrar o filme. Terra Estrangeira foi filmado em preto e branco, carregado de tons
cinza (melancólico), ritmo lento e contemplativo, bem representativo do momento
(quase fúnebre) retratado. Um filho legítimo do cinema de Wim Wenders, cuja
influência é reconhecida pelo próprio Walter Salles – mais reflexão e menos
divertimento. 2 Coelhos é bem
colorido, cool, repleto de recursos
gráficos, muito ágil, abusa do emprego da câmera lenta, com uma linguagem que o
aproxima do universo dos games e deixa transparecer uma liberdade extasiante. É
muito influenciado pelo cinema de gênero asiático e pelo estilo do inglês Guy
Ritchie (Jogos, Trapaças e Dois Canos
Fumegantes, Snatch – Porcos e Diamantes e Rock’n’Rolla – A Grande Roubada).
Ele foi concebido com a estética vigente das produções americanas que encabeçam
as listas de preferência do grande público – um filme basicamente para
entreter.
Enfim, goste-se ou não, 2 Coelhos é um produto bem
característico do nosso tempo – com tudo o que essa afirmação carrega de bom e
de ruim. O filme deve ser o primeiro de uma nova safra do cinema nacional a
explorar essas conquistas tecnológicas até então inimagináveis. Mesmo não sendo
exatamente a minha praia, o filme tem seus méritos e vale como diversão. Para
um estreante como Afonso Poyart, está de muito bom tamanho.
Também não achei ruim de todo. O roteiro é que falha.
ResponderExcluirO Falcão Maltês
Embora a Alessandra Negrini seja uma baita atriz (e belíssima, a propósito) os "affairs" dela na trama ficaram bem forçados.
ResponderExcluir