Eu procuro evitar
reproduzir grandes textos nesse espaço pra não tornar a leitura cansativa e
desagradável. Contudo, às vezes, eu não consigo resistir à tentação, sobretudo
quando a qualidade do texto é excepcional.
Além disso, os
links funcionam enquanto o conteúdo do texto está disponível na rede, quando
saem de circulação, não se prestam mais a esse serviço - vide o que aconteceu
com o site da Paisá.
Sem mais delongas,
reproduzo o ensaio de Fábio Andrade (Revista Cinética), entitulado
"O Processo da Verdade – Hellman, Kiarostami e alguns vícios da
contemporaneidade", a respeito de Caminho
para o Nada (Monte Hellman, 2010) e Cópia
Fiel (Abbas Kiarostami, 2010).
Boa leitura. Quem preferir pode acessar o link por aqui.
Por Fábio Andrade
Em O que é o contemporâneo?,
Giorgio Agamben - como lembrado recentemente por Cléber Eduardo em entrevista à
revista Filme Cultura - aponta a defasagem em relação ao seu momento histórico
como uma característica essencial para o homem verdadeiramente contemporâneo.
"Exatamente por conta desta condição, desta desconexão e anacronismo, ele
está mais capacitado a perceber e compreender seu próprio momento". Esse
pensamento parece melhor impresso em uma máxima de Schiller: "viva
com teu século, mas sem ser sua criatura". Mesmo que por diferentes vias,
tanto Schiller quanto Agamben apontam a importância de se compreender as
questões de seu próprio momento histórico, mas com a atenção para não se tornar
presa fácil de suas armadilhas. Existem, porém, obras que cravam os dentes na
carne de sua época e, sem buscar recorrer a esse distanciamento anacrônico e
crítico (como fazia Rohmer, por exemplo), usam a matéria-prima das armadilhas
contemporâneas como propulsão para abrir novos caminhos e libertar o pensamento
e a arte. São obras que, mais do que se colocar de maneira anacrônica, se
embebem (sem se embebedar) do presente para poder criticá-lo, negando o
isolamento démodé sempre tão próximo do autismo e da beatice
lunática dos veteranos de guerra; que preferem a correção de rumos ao esperneio
inútil de que o mundo mudou, mas não deveria ter mudado. É o caso de Road
to Nowhere, de Monte Hellman, e Cópia Fiel, de Abbas Kiarostami
- não à toa, dois filmes que nascem fadados a cumprir um penoso ritual de má
compreensão.
Road to Nowhere e
o processo como cinema
Antes mesmo de começar, Road to Nowhere joga toda sorte de iscas
às pressas conservadoras. Afinal, é o filme que marca a volta do diretor aos
longas após vinte anos de afastamento, ínterim que poderia motivar uma vida
inteira de ressentimentos. Mas ele é, também, um filme livre de qualquer
saudosismo; ao contrário, sua realização e seu universo ficcional estão
fortemente marcados por diversos símbolos atualíssimos: temos conversas sobre
Vipers e câmeras 5D - que têm presença marcante em cena e em sua realização - e
espaços habitados por laptops, iPhones, vídeos em streaming, DVDs, TV a
cabo, MySpace e Facebook. Mesmo os inserts de outros filmes - de
Víctor Erice, Preston Sturges e Ingmar Bergman - aparecem reanimados em TVs de
alta definição, com o pillar box do 16x9 que marca uma atitude
igualmente respeitosa e atualizadora da história. A aproximação que Hellman
fará deste universo está condensada logo na sequência de abertura: um DVD-r é
colocado em um computador e a câmera se aproxima lentamente da imagem que aparece
na tela do laptop, até que o filme visto pelos personagens tome toda a tela do
cinema e se torne, também, o nosso filme. É difícil imaginar
movimento mais eloquente: para se compreender uma imagem contemporânea, é
necessário mergulhar de cabeça nela, chafurdar-se em suas viscerais combinações
de 0 e 1, até que não exista recuo ou distinção possível. Só assim, após essa
afirmação de proximidade, é possível se apartar dela novamente para se
posicionar de forma crítica.
Essa espécie de vai-e-vem do olhar
é determinante em Road to Nowhere.
Mesmo em termos materiais, a virtualidade do vídeo será atravessada pela
necessidade de se achar algo de físico e de concreto em um mundo em que os
índices apontam para todos os lados, e qualquer decodificação parece fadada à
incerteza. A despeito da imprecisão supostamente imposta pelas
mediações, há um mundo. Monte Hellman usa a agilidade porosa do digital
para ressaltar os tempos e os estados mecânicos desse mundo, seja conservando
todos os segundos necessários para que um secador de cabelos seque o esmalte
fresco sobre as unhas da protagonista, ou o processo lento do braço mecânico
que localiza uma música em uma jukeboxde discos de vinil. Como Godard ou
David Lynch - não à toa, dois diretores a quem Road to Nowhere por vezes parece se endereçar de forma crítica
e frontal - Monte Hellman vive a sua época justamente para não se tornar sua
criatura.
Nesse sentido, é bastante
ilustrativo que o filme trabalhe com uma categoria que gerou toda sorte de
especulações críticas nos últimos anos: os chamados "filmes de
processo". Pois, assim como em Aquele
Querido Mês de Agosto, Moscou, História(s) do Cinema ou a obra
recente de Jia Zhang-ke, Monte Hellman cria camadas diferentes de diegese que
são articuladas em novas e novas quebras, incorporando a equipe ao filme, e o
trabalho dos atores às personagens. Neste jogo, porém, há mais pistas falsas do
que possibilidades de revelação. Pois o que parece ser afirmado a cada instante
é que não há quebra de diegese possível: quando se mostra uma equipe de cinema
em trabalho, ela deixa de ser uma equipe de cinema e se torna, imediatamente,
personagem. Em uma resposta direta aos célebres créditos iniciais de O
Desprezo, em que uma câmera é apontada frontalmente para "a platéia",
clamando por sua participação, Mitchell Haven (o alterego de Hellman, que
carrega inclusive as suas iniciais, interpretado por Tygh Runyan) aponta uma
câmera para a quarta parede, mas o que aparece não é a platéia, e sim a própria
equipe que realiza aquele contraplano. Afinal, o que pode ser de fato
investigado na obra que não a sua própria construção? Monte Hellman implode os
limites de obra aberta e fechada de Umberto Eco: uma vez que aceitamos o
convite para completar os espaços deixados pelo filme, somos trancados em uma
prisão da qual não há fuga possível. Toda tentativa de quebra de diegese nos
devolve, de forma impiedosa e incontornável, ao próprio filme.
Essa diferença é acentuada por o
processo dentro de Road to Nowhere não
ser o de Hellman e de sua equipe, mas o do filme dentro do filme - que também
se chama Road to Nowhere, e
conta com os mesmos atores, em uma construção em abismo que solicita o 8 ½ de Fellini. Mas sob essa
luz do alter-ego, o que nos garantia que o Miguel Gomes que aparece em Aquele Querido Mês de Agosto, o Coutinho
de Jogo de Cena, ou o Godard
de História(s) do Cinema estão
ali como diretores - pessoas reais - e não simplesmente como atores que
interpretam os próprios diretores? Ou melhor, como fazer essa distinção uma vez
que a articulação do material não a faz, criando uma diegese que pode assimilar
toda e qualquer quebra, em uma fagocitose infinita? Por que tão frequentemente
nos permitimos tomar essas aparições como um índice de verdade exterior ao
filme - algo que está intimamente ligado ao discurso dos "processos"
- enquanto assumimos a presença de Truffaut em Noite Americana, ou de Hitchcock e Shyamalan em seus filmes, como
um cameo ficcional?
Mesmo os maus filmes podem
revelar a fragilidade dos atalhos do pensamento. No final do primeiro episódio
de Storytelling, de Todd
Solondz, uma aluna de escrita criativa relata em sala de aula o estupro que
sofreu do próprio professor. Ao final do relato, ela o confronta e diz que o
que escreveu era a verdade. O professor e estuprador dá de ombros: uma vez que
a verdade é passada para o papel, ela se torna ficção. Road to Nowhere, um filme infinitamente
maior, enuncia um sentimento parecido, mas de forma mais ambígua e,
paradoxalmente, definitiva. Pois todo o jogo de cores, texturas e registros
que, em tese, deveria distinguir as diversas camadas, e que poderia ser tomados
como guia para uma possível decifração, não revela nada a não ser a impureza do
próprio filme, que incorpora todas elas sem respeitar as distinções que elas
tentam impor. Tudo se torna o filme, e é tornado filme à
medida em que é assimilado por ele. Não há explicação possível a partir da
catalogação e decodificação dessas camadas, pois elas são articuladas de forma
a produzir um todo orgânico que só pode ser pensado em sua integridade,
assumindo seu hibridismo e sua impenetrabilidade. Não há revelação sobre a obra
de arte a ser encontrada na veracidade do processo, pois o processo está sempre
fora do filme, e não há verdade que interesse ao filme fora de sua diegese. Em
uma época tão fascinada com as impurezas entre o mundo real e ficcional, ainda
tão refém da quebra de ingenuidade promovida pelo cinema moderno, Monte Hellman
marca diferença ao se assumir igual: a relação entre um espectador e uma obra
de arte parte de um pacto anterior que ambos, por pura necessidade, estão
fadados a sempre restaurar, não importa quantas quebras a impureza intrínseca
dessa relação venha a promover.
Nesse sentido, é essencial que o
personagem-problema de Road to
Nowhere, aquele que põe tudo a perder, seja justamente um investigador. É
ele, o patético guardião da verdade obcecado com os fatos, quem tenta
internamente decodificar a veracidade dos acontecimentos, e impor ao mundo
ficcional - ao jogo de papéis que determina todas as camadas do filme - uma verdade
que lhe é externa. Mas quando a arte é feita refém da realidade, ela é
impiedosa: os guardiões da verdade podem assassinar a musa, mas em seguida
serão sempre assassinados pelo artista. "You don't want the truth, do you?
You just want to make this into some piece of shit Hollywood movie", acusa
o investigador. "No", responde Mitchell Haven, "I want to
make my piece of shit Hollywood movie!"
Interessa, portanto, menos um
desmonte das instâncias em conflito e mais a busca de uma verdade da própria
obra, criada justamente por esse conflito. É aí que Road to
Nowhere se torna uma crítica bastante dura a Mulholland Drive, de
David Lynch, e ao tipo de quebra-cabeça que ele se propõe a ser: onde Lynch
enxertava estranheza pela deformação do mundo filmado concatenado de maneira
cartesiana e clássica - com gruas e raccord - Monte Hellman promove
efeito semelhante pela própria estrutura aplicada à encenação, sem recorrer a
truques fantasiosos. Isso pode se dar pela incorporação dos acasos da filmagem,
pela forma que Hellman articula trechos de outros filmes dentro de sua
narrativa (basta um corte preciso para transformar O Sétimo Selo em
uma comédia), ou pela maneira como o registro de diversas (todas?) cenas
permanece incerto e misterioso mesmo após o filme terminar. O que interessa é
menos a verdade do processo, e mais o processo da verdade, a integridade desse
produto auto-reflexivo e acidentado que nos é oferecido com a mesma integridade
de qualquer outro filme. Quebrado em mim, mas ainda assim uno. Não é à toa que
a última coisa que se lê após os créditos, e após todo o vai-e-vem absurdo e
rocambolesco de sua metalinguagem, seja um incontornavelmente ambíguo: this is
a true story.
Cópia Fiel e
o cinema como realidade
Cópia Fiel é outro filme que, a começar pelo seu título, se
oferece como alimento para toda sorte de falsas questões. Parte delas parece
ter ocupado, recentemente, o blog de Jean-Claude Bernadet com diversos posts -
alguns bastante interessantes - e comentários sobre o filme. Mesmo quando eles
apontam para a impossibilidade de se determinar certezas na diegese, a tônica
geral é do desvelamento, da busca por evidências de verdade na construção - ou
melhor, de evidências que adéquem a verdade do filme à verdade do mundo. O
casal se conhece desde o início? Quanto tempo, no mundo vivido pelas
personagens, dura o filme? Qual das relações encarnadas pelos arquétipos de
Juliette Binoche e William Shimell é anterior, e qual se desdobra dessa
primeira condição? Por diversas vezes, Bernadet chega à verdade como um
processo, como algo que é constantemente alterado pelo próprio filme.
É natural buscar por significados
nas determinações estruturais de uma obra de arte, já que é justamente por elas
- pelo emprego material das habilidades do artista - que seu espírito se
manifesta. Mas Cópia Fiel não
só nunca será esgotado pela análise dessas estruturas, como elas são motor para
novos desvios. Toda a precisão da construção de Kiarostami produz mais
imprecisões; nunca saberemos quando o casal se conhece, quando a relação se
transforma, pois as cenas são construídas de forma a justamente estilhaçar
esses definitivos. É possível dizer tanto uma coisa quanto o seu contrário, e o
efeito do filme reside justamente nessa bipolaridade. Como em Road to Nowhere, importa menos a relação
de veracidade da cena com uma lógica que lhe é externa, e mais a verdade
interior à própria encenação: não sabemos quando o casal se torna um casal, se
é que se torna um casal... mas quando eles interpretam um casal, há um
comprometimento finalista e irrestrito com esse jogo de papéis. Naquele
momento, eles são um casal. Nenhum espectador há de duvidar.
Não deixa de ser curioso que
justamente Kiarostami, cineasta frequentemente pensado por sua relação com o
documentário ou mesmo como um neo-neo realista, seja hoje quem melhor expõe os
limites de uma relação estritamente realista com as obras de arte. Cópia Fiel é construído de forma a
iluminar suas próprias limitações materiais (e é importante perceber que tanto
Kiarostami quanto Hellman vão buscar um meio ainda mais restrito para
trabalhar: o vídeo), abolindo a perspectiva e a profundidade de campo em nome
de uma construção que só pode ser 2D. Toda perspectiva é a mímese de uma
apreensão do mundo externo (e aí reside uma das maiores ironias do título do
filme) onde existe, de fato, profundidade; o cinema, ao contrário, é
necessariamente raso, plano, mesmo quando projeta imagens que, em sua
constituição mundana, no espaço apropriado como cena, tenham características
que iludem essa limitação. A perspectiva na composição pictórica sempre foi um
truque. Cópia Fiel promove
um raríssimo divórcio entre essa construção e as imposições visuais do mundo:
não há perspectiva ou profundidade de campo possível quando o material de
trabalho é, na verdade, uma superfície chapada, uma tela branca na parede de
uma sala. O material do cinema não é o mundo que é exposto nele, mas a própria
tela.
Kiarostami usa o vídeo para
tornar essas camadas ainda mais sobrepostas, ainda mais indistintas. Isso
acontece desde os reflexos da cidade no vidro de um carro - tornando o rosto
dos passageiros e a cidade refletida um mesmo e único borrão - até às relações
de profundidade dentro de uma cena, de um espaço. Em determinado plano (foto),
Kiarostami coloca uma noiva olhando um rito que aconteceria, de fato, às suas
costas. Na composição, porém, o segundo plano é chapado lateralmente ao
primeiro, de forma que a ação de fundo divida o mesmo plano de representação da
atriz que está à sua frente. Dentro da composição, as camadas de profundidade
se chapam em lateralidade: é perfeitamente possível que a personagem olhe e
interaja com o que, no mundo físico, estaria às suas costas.
Com isso, Kiarostami neutraliza
qualquer busca de verossimilhança, de correspondência no mundo real, na armação
do filme. Se a princípio isso pode parecer irônico em uma refilmagem livre
de Viagem à Itália - filme
de Roberto Rosselini, diretor tomado por André Bazin como encarnação viva da
vocação fotográfica do cinema em representar os tempos e espaços do mundo em sua
integralidade de relações, e por um trabalho exemplar da profundidade de campo
- Kiarostami faz, a seu modo, uma atualização do
neo-realismo rosseliniano; a única diferença, é que o realismo possível
hoje está não mais na fidelidade ao mundo representado, mas na realidade da
própria representação. É justamente por isso que a composição pictórica,
em Cópia Fiel, é necessariamente
improfunda, sem ponto de fuga (com exceção significativa, e conscientíssima,
para o último plano do filme): o mundo mudou, a compreensão da imagem hoje é
outra e, mais do que denunciar uma falsidade de construção, apontar as
limitações técnicas e simbólicas do aparato é um gesto de fé na força da
própria imagem. Revela-se o truque não para desmontá-lo, como em Made in USA, mas para reafirmar o seu
poder transformador quando assumido como construção. Cópia Fiel está mais próximo do cinema de Rouch do que de qualquer
outro da Nouvelle Vague.
Cópia Fiel parece ainda se
apropriar da imaterialidade do vídeo para criar uma impressão de metamorfose,
como se o filme fosse uma relação de forças imateriais que podem obrigá-lo a
tomar novas formas, assumir novas estruturas, jogar por outras regras. Se a
diegese permite que um casal de estranhos esteja, de repente, casado há anos,
tudo é possível. Basta uma conversa em uma cantina para que dois estranhos se
tornem um casal em crise; basta uma sugestão estrangeira (que, não à toa, vem
de uma italiana - trazendo consigo toda a força histórica que o cinema
italiano tem no mundo, e especialmente no cinema iraniano) não ser desmentida
para ela se tornar verdade, e o filme se reestruturar todo por conta desse mal
entendido. Pois ali, dentro daquele pacto entre atores e espectadores, aquele
mal entendido é mais verdadeiro do que qualquer verdade. Pouco importa que o
quadro cinematográfico seja centrípedo (embora exista um tratamento de som que
inclua frequentemente mais do que o que está em tela), pois o mundo ficcional
já é naturalmente fugidio. Por mais que o quadro determine uma certa regra, e
os requisitos do cinema de gênero projetem sobre a trama e as personagens uma
série de expectativas, elas sempre encontram margem para se esgueirar e não
deixar que nossas expectativas e demandas as reprimam. Como Road to Nowhere, Cópia Fiel é um filme que presenteia
suas personagens com incessantes possibilidades de fuga. Mas essa fuga só pode
ser para dentro do filme. E nessa afirmação de mistério e beleza, os
dois filmes deixam de ser grandes para se tornarem infinitos.