sábado, março 31, 2012

Pina (Wim Wenders, 2011)







Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. (...) Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa.
Caio Fernando Abreu

É um privilégio para os ribeirão-pretanos receber o documentário Pina (2011), de Wim Wenders, na versão original, em 3D, respeitando o formato idealizado por seu diretor, roteirista e produtor. É o típico lançamento que costuma se restringir aos grandes centros, São Paulo e Rio de Janeiro, com número limitado de cópias à disposição. Conta a favor da produção o fato de ter sido indicada ao Oscar 2012 de Melhor Documentário, ainda que esta seja uma categoria menos valorizada na temporada de premiações.

A propósito, classificar Pina como um documentário, embora seja até compreensível tal denominação mesmo não sendo a mais apropriada, significa reduzir a dimensão da experiência de assisti-lo a uma mera convenção de gênero, o que seria no mínimo injusto. O filme é quase uma epifania, a rigor uma pequena epifania como diria Caio Fernando Abreu, "miudinha, quase pífias revelações de Deus feito jóias encravadas no dia-a-dia". Especialmente nas tomadas ao ar livre - no balé dos corpos diante da Natureza ou em harmonia com os edifícios, construções, automóveis, indústrias, etc -, a dança deixa de ser uma mera manifestação artística para integrar todos os aspectos da nossa existência. A dança passa a ser a própria razão de existir. "Dancem, dancem. Senão estamos perdidos", profetiza Pina Bausch ao final da projeção.

O pequeno trecho de abertura do post, extraído de um texto de Caio Fernando Abreu para O Estado de S. Paulo em 1986, reflete bem a relação que eu estabeleci com o filme: eu me senti protegido do Homem e suas atitudes deletérias enquanto estava sob a influência dos belos, leves e cândidos gestos e movimentos de Pina Bausch. Por quase duas horas foi possível acreditar que a salvação viria da dança. O espaço cênico - seja ele o interior de um metrô, as engrenagens de uma estação ferroviária, um cruzamento urbano movimentado ou o chão de fábrica de uma usina - só ganha vida quando o corpo cintilante do bailante passa a integrá-lo. "A Natureza morta" resplandece sob o efeito da magia corporal.

A equipe de Pina é a prova cabal de que a sua arte não enxergava fronteiras, limites ou barreiras de línguas, costumes e tradições; o âmbito do seu trabalho era universal. O corpo não tem nacionalidade. A base da comunicação era a linguagem corporal e cada qual contribuía com a sua parcela de talento. As entrevistas não contaram com um idioma predominante, todos preservaram as influências de suas raízes para prestar a sua homenagem a grande coreógrafa. Pelos relatos de alguns dos integrantes fica claro que a comunicação verbal não era preponderante; "o corpo também fala".

Além dos corpos e dos cenários existe a música, que dita o ritmo, a frequência, o tom e a carga emocional dos números de dança. Wenders combinou os três elementos à perfeição e fez um dos melhores empregos da tecnologia 3D até o momento – senão o melhor. O desfecho com todos os seus colaboradores caminhando devidamente trajados ao som de um jazz “a la Woody Allen” em um horizonte inóspito é antológico - a arte é capaz de chegar ao lugares mais improváveis. Lembrou-me o final de O Sétimo Selo (Ingmar Bergman, 1957), quando a Morte, extasiada, conduz suas presas para o fim em um cenário semelhante. Ironicamente (ou talvez, sabiamente), o único poupado dos seus malignos encantos é o personagem do ator - o artista do grupo.



domingo, março 25, 2012

O Estado das Coisas (Wim Wenders, 1982)


Quando eu filmei Alice nas Cidades (1973), alguns anos antes, nos anos 70, isso [filmar nos Estados Unidos] parecia um privilégio. Quando fui para lá em 1977, muito jovem, vivenciei grandes experiências, viajei muito, fotografei cidades. Fui para lá com a ideia ingênua de que os filmes que me eram oferecidos, como Hammett (1982), me tornariam um americano, seriam ótimos. Depois de um ano ou dois, não filmando nenhum roteiro acabado e não chegando a lugar nenhum, usando um roteirista depois do outro, percebi que nunca encontraria uma saída. Não tinha nada.

Podia olhar a história que tinha sido oferecida para mim e que eu tinha aceitado dirigir [Hammett, produzida por Francis Ford Coppola] e poderia fazer o possível para entender as ideias do produtor. Mas não poderia ser bem sucedido. Demorei algum tempo para perceber isso. Foi doloroso também porque achava que poderia me tornar americano. Casei com Ronee Blakley, que aparece em Nick’s Film – Lightning Over Water (1980). Vi que não só não conseguiria fazer um filme americano, mas também não me tornaria um americano. Continuava sendo um europeu, e permaneceria um alemão. Não havia nada a fazer.

Foi uma descoberta difícil, e o filme que fiz [Hammett] era vital para Francis [Ford Coppola]. Ele insistia em suas ideias, enquanto eu insistia nas minhas. Essa briga aconteceu até o último corte do filme. Permanecemos amigos, nos respeitamos... No final do filme Ronee e eu já estávamos separados. Percebi que não poderia voltar para casa, para a Alemanha. O filme que queria finalizar, ainda não tinha conseguido fazer.

O Estado das Coisas (1982) – filmado na época – permitiu que eu sobrevivesse como artista. Não tinha a ver com um conflito de identidade, mas com minhas ideias sobre o que era fazer um filme. Eu não podia voltar para casa porque sentia que não tinha nada em minhas mãos para voltar. (...).
Wim Wenders, Na Estrada – O Cinema de Walter Salles

Esse estado de suspensão, angústia e letargia relatado por Wim Wenders na entrevista a Marcos Strecker, autor do livro Na Estrada - O Cinema de Walter Salles, é a base de O Estado das Coisas - a história dos bastidores de uma produção de ficção científica B que se vê abandonada por seu produtor, forçando o diretor a sair em sua busca (o pretexto para um road movie). Wenders converteu a sua própria experiência traumática em Cinema. O terço final do filme, situado em Los Angeles, evidencia o olhar estrangeiro de Wenders para a cultura americana – McDonald’s, Tiny Naylor’s, o trailer (automóvel), a Calçada da Fama (um close no nome de Fritz Lang, o diretor alemão que deu às costas ao nazismo e iniciou uma carreira bem sucedida nos EUA) e a Los Angeles noturna. A fotografia de Henri Alekan realça esse efeito, especialmente nas tomadas de dentro do trailer enquadrando as ruas de LA no segundo plano. Todo o imaginário coletivo proporcionado pelo cinema norte americano é captado pelas lentes de Henri Alekan/Wim Wenders, sobretudo a LA dos film noir. É um olhar deslumbrado, de reverência, ao mesmo tempo decepcionado e desiludido. O assassinato (simbólico) do produtor no desfecho é sublime, irônico que tenha sido encomendado pelos gangsteres que lhe financiavam – a relação escusa de Hollywood. O Caminho para o Nada (2010), de Monte Hellman, adota um discurso semelhante numa linha narrativa mais fantasiosa, ilusória.

(...) Para mim, o cinema americano, como um todo, foi uma enorme influência. De uma forma muito diferente, mesmo alguém como Fritz Lang, que infelizmente não cheguei a conhecer, é para mim o melhor diretor dos Estados Unidos. Aprendi tanto com o cinema americano... – com Samuel Fuller, John Ford, mais do que com qualquer outra pessoa que tenha conhecido. Para mim, ir para lá filmar significava que ia para o lugar onde todo o cinema que adorava tinha sido feito. E isso no sistema dos grandes estúdios [de Hollywood], onde trabalharam os caras que eu admirava. Nomes como Nicholas Ray e Samuel Fuller sempre foram de alguma forma rebeldes, renegados. Ainda assim, quando fui para lá sentia que ia para o verdadeiro coração do cinema. Não sabia que estava indo para o “coração das trevas” [dupla referência ao filme Apocalypse Now, de Coppola, e ao livro de Joseph Conrad que o inspirou].
Wim Wenders, Na Estrada – O Cinema de Walter Salles

segunda-feira, março 19, 2012

O Processo da Verdade


Eu procuro evitar reproduzir grandes textos nesse espaço pra não tornar a leitura cansativa e desagradável. Contudo, às vezes, eu não consigo resistir à tentação, sobretudo quando a qualidade do texto é excepcional.

Além disso, os links funcionam enquanto o conteúdo do texto está disponível na rede, quando saem de circulação, não se prestam mais a esse serviço - vide o que aconteceu com o site da Paisá.

Sem mais delongas, reproduzo o ensaio de Fábio Andrade (Revista Cinética), entitulado "O Processo da Verdade – Hellman, Kiarostami e alguns vícios da contemporaneidade", a respeito de Caminho para o Nada (Monte Hellman, 2010) e Cópia Fiel (Abbas Kiarostami, 2010).

Boa leitura. Quem preferir pode acessar o link por aqui.

Por Fábio Andrade
Em O que é o contemporâneo?, Giorgio Agamben - como lembrado recentemente por Cléber Eduardo em entrevista à revista Filme Cultura - aponta a defasagem em relação ao seu momento histórico como uma característica essencial para o homem verdadeiramente contemporâneo. "Exatamente por conta desta condição, desta desconexão e anacronismo, ele está mais capacitado a perceber e compreender seu próprio momento". Esse pensamento parece melhor impresso em uma máxima de Schiller: "viva com teu século, mas sem ser sua criatura". Mesmo que por diferentes vias, tanto Schiller quanto Agamben apontam a importância de se compreender as questões de seu próprio momento histórico, mas com a atenção para não se tornar presa fácil de suas armadilhas. Existem, porém, obras que cravam os dentes na carne de sua época e, sem buscar recorrer a esse distanciamento anacrônico e crítico (como fazia Rohmer, por exemplo), usam a matéria-prima das armadilhas contemporâneas como propulsão para abrir novos caminhos e libertar o pensamento e a arte. São obras que, mais do que se colocar de maneira anacrônica, se embebem (sem se embebedar) do presente para poder criticá-lo, negando o isolamento démodé sempre tão próximo do autismo e da beatice lunática dos veteranos de guerra; que preferem a correção de rumos ao esperneio inútil de que o mundo mudou, mas não deveria ter mudado. É o caso de Road to Nowhere, de Monte Hellman, e Cópia Fiel, de Abbas Kiarostami - não à toa, dois filmes que nascem fadados a cumprir um penoso ritual de má compreensão.

Road to Nowhere e o processo como cinema


Antes mesmo de começar, Road to Nowhere joga toda sorte de iscas às pressas conservadoras. Afinal, é o filme que marca a volta do diretor aos longas após vinte anos de afastamento, ínterim que poderia motivar uma vida inteira de ressentimentos. Mas ele é, também, um filme livre de qualquer saudosismo; ao contrário, sua realização e seu universo ficcional estão fortemente marcados por diversos símbolos atualíssimos: temos conversas sobre Vipers e câmeras 5D - que têm presença marcante em cena e em sua realização - e espaços habitados por laptops, iPhones, vídeos em streaming, DVDs, TV a cabo, MySpace e Facebook. Mesmo os inserts de outros filmes - de Víctor Erice, Preston Sturges e Ingmar Bergman - aparecem reanimados em TVs de alta definição, com o pillar box do 16x9 que marca uma atitude igualmente respeitosa e atualizadora da história. A aproximação que Hellman fará deste universo está condensada logo na sequência de abertura: um DVD-r é colocado em um computador e a câmera se aproxima lentamente da imagem que aparece na tela do laptop, até que o filme visto pelos personagens tome toda a tela do cinema e se torne, também, o nosso filme. É difícil imaginar movimento mais eloquente: para se compreender uma imagem contemporânea, é necessário mergulhar de cabeça nela, chafurdar-se em suas viscerais combinações de 0 e 1, até que não exista recuo ou distinção possível. Só assim, após essa afirmação de proximidade, é possível se apartar dela novamente para se posicionar de forma crítica.

Essa espécie de vai-e-vem do olhar é determinante em Road to Nowhere. Mesmo em termos materiais, a virtualidade do vídeo será atravessada pela necessidade de se achar algo de físico e de concreto em um mundo em que os índices apontam para todos os lados, e qualquer decodificação parece fadada à incerteza. A despeito da imprecisão supostamente imposta pelas mediações, há um mundo. Monte Hellman usa a agilidade porosa do digital para ressaltar os tempos e os estados mecânicos desse mundo, seja conservando todos os segundos necessários para que um secador de cabelos seque o esmalte fresco sobre as unhas da protagonista, ou o processo lento do braço mecânico que localiza uma música em uma jukeboxde discos de vinil. Como Godard ou David Lynch - não à toa, dois diretores a quem Road to Nowhere por vezes parece se endereçar de forma crítica e frontal - Monte Hellman vive a sua época justamente para não se tornar sua criatura.

Nesse sentido, é bastante ilustrativo que o filme trabalhe com uma categoria que gerou toda sorte de especulações críticas nos últimos anos: os chamados "filmes de processo". Pois, assim como em Aquele Querido Mês de AgostoMoscouHistória(s) do Cinema ou a obra recente de Jia Zhang-ke, Monte Hellman cria camadas diferentes de diegese que são articuladas em novas e novas quebras, incorporando a equipe ao filme, e o trabalho dos atores às personagens. Neste jogo, porém, há mais pistas falsas do que possibilidades de revelação. Pois o que parece ser afirmado a cada instante é que não há quebra de diegese possível: quando se mostra uma equipe de cinema em trabalho, ela deixa de ser uma equipe de cinema e se torna, imediatamente, personagem. Em uma resposta direta aos célebres créditos iniciais de O Desprezo, em que uma câmera é apontada frontalmente para "a platéia", clamando por sua participação, Mitchell Haven (o alterego de Hellman, que carrega inclusive as suas iniciais, interpretado por Tygh Runyan) aponta uma câmera para a quarta parede, mas o que aparece não é a platéia, e sim a própria equipe que realiza aquele contraplano. Afinal, o que pode ser de fato investigado na obra que não a sua própria construção? Monte Hellman implode os limites de obra aberta e fechada de Umberto Eco: uma vez que aceitamos o convite para completar os espaços deixados pelo filme, somos trancados em uma prisão da qual não há fuga possível. Toda tentativa de quebra de diegese nos devolve, de forma impiedosa e incontornável, ao próprio filme.

Essa diferença é acentuada por o processo dentro de Road to Nowhere não ser o de Hellman e de sua equipe, mas o do filme dentro do filme - que também se chama Road to Nowhere, e conta com os mesmos atores, em uma construção em abismo que solicita o 8 ½ de Fellini. Mas sob essa luz do alter-ego, o que nos garantia que o Miguel Gomes que aparece em Aquele Querido Mês de Agosto, o Coutinho de Jogo de Cena, ou o Godard de História(s) do Cinema estão ali como diretores - pessoas reais - e não simplesmente como atores que interpretam os próprios diretores? Ou melhor, como fazer essa distinção uma vez que a articulação do material não a faz, criando uma diegese que pode assimilar toda e qualquer quebra, em uma fagocitose infinita? Por que tão frequentemente nos permitimos tomar essas aparições como um índice de verdade exterior ao filme - algo que está intimamente ligado ao discurso dos "processos" - enquanto assumimos a presença de Truffaut em Noite Americana, ou de Hitchcock e Shyamalan em seus filmes, como um cameo ficcional?

Mesmo os maus filmes podem revelar a fragilidade dos atalhos do pensamento. No final do primeiro episódio de Storytelling, de Todd Solondz, uma aluna de escrita criativa relata em sala de aula o estupro que sofreu do próprio professor. Ao final do relato, ela o confronta e diz que o que escreveu era a verdade. O professor e estuprador dá de ombros: uma vez que a verdade é passada para o papel, ela se torna ficção. Road to Nowhere, um filme infinitamente maior, enuncia um sentimento parecido, mas de forma mais ambígua e, paradoxalmente, definitiva. Pois todo o jogo de cores, texturas e registros que, em tese, deveria distinguir as diversas camadas, e que poderia ser tomados como guia para uma possível decifração, não revela nada a não ser a impureza do próprio filme, que incorpora todas elas sem respeitar as distinções que elas tentam impor. Tudo se torna o filme, e é tornado filme à medida em que é assimilado por ele. Não há explicação possível a partir da catalogação e decodificação dessas camadas, pois elas são articuladas de forma a produzir um todo orgânico que só pode ser pensado em sua integridade, assumindo seu hibridismo e sua impenetrabilidade. Não há revelação sobre a obra de arte a ser encontrada na veracidade do processo, pois o processo está sempre fora do filme, e não há verdade que interesse ao filme fora de sua diegese. Em uma época tão fascinada com as impurezas entre o mundo real e ficcional, ainda tão refém da quebra de ingenuidade promovida pelo cinema moderno, Monte Hellman marca diferença ao se assumir igual: a relação entre um espectador e uma obra de arte parte de um pacto anterior que ambos, por pura necessidade, estão fadados a sempre restaurar, não importa quantas quebras a impureza intrínseca dessa relação venha a promover.

Nesse sentido, é essencial que o personagem-problema de Road to Nowhere, aquele que põe tudo a perder, seja justamente um investigador. É ele, o patético guardião da verdade obcecado com os fatos, quem tenta internamente decodificar a veracidade dos acontecimentos, e impor ao mundo ficcional - ao jogo de papéis que determina todas as camadas do filme - uma verdade que lhe é externa. Mas quando a arte é feita refém da realidade, ela é impiedosa: os guardiões da verdade podem assassinar a musa, mas em seguida serão sempre assassinados pelo artista. "You don't want the truth, do you? You just want to make this into some piece of shit Hollywood movie", acusa o investigador. "No", responde Mitchell Haven, "I want to make my piece of shit Hollywood movie!"

Interessa, portanto, menos um desmonte das instâncias em conflito e mais a busca de uma verdade da própria obra, criada justamente por esse conflito. É aí que Road to Nowhere se torna uma crítica bastante dura a Mulholland Drive, de David Lynch, e ao tipo de quebra-cabeça que ele se propõe a ser: onde Lynch enxertava estranheza pela deformação do mundo filmado concatenado de maneira cartesiana e clássica - com gruas e raccord - Monte Hellman promove efeito semelhante pela própria estrutura aplicada à encenação, sem recorrer a truques fantasiosos. Isso pode se dar pela incorporação dos acasos da filmagem, pela forma que Hellman articula trechos de outros filmes dentro de sua narrativa (basta um corte preciso para transformar O Sétimo Selo em uma comédia), ou pela maneira como o registro de diversas (todas?) cenas permanece incerto e misterioso mesmo após o filme terminar. O que interessa é menos a verdade do processo, e mais o processo da verdade, a integridade desse produto auto-reflexivo e acidentado que nos é oferecido com a mesma integridade de qualquer outro filme. Quebrado em mim, mas ainda assim uno. Não é à toa que a última coisa que se lê após os créditos, e após todo o vai-e-vem absurdo e rocambolesco de sua metalinguagem, seja um incontornavelmente ambíguo: this is a true story.

Cópia Fiel e o cinema como realidade


Cópia Fiel é outro filme que, a começar pelo seu título, se oferece como alimento para toda sorte de falsas questões. Parte delas parece ter ocupado, recentemente, o blog de Jean-Claude Bernadet com diversos posts - alguns bastante interessantes - e comentários sobre o filme. Mesmo quando eles apontam para a impossibilidade de se determinar certezas na diegese, a tônica geral é do desvelamento, da busca por evidências de verdade na construção - ou melhor, de evidências que adéquem a verdade do filme à verdade do mundo. O casal se conhece desde o início? Quanto tempo, no mundo vivido pelas personagens, dura o filme? Qual das relações encarnadas pelos arquétipos de Juliette Binoche e William Shimell é anterior, e qual se desdobra dessa primeira condição? Por diversas vezes, Bernadet chega à verdade como um processo, como algo que é constantemente alterado pelo próprio filme.

É natural buscar por significados nas determinações estruturais de uma obra de arte, já que é justamente por elas - pelo emprego material das habilidades do artista - que seu espírito se manifesta. Mas Cópia Fiel não só nunca será esgotado pela análise dessas estruturas, como elas são motor para novos desvios. Toda a precisão da construção de Kiarostami produz mais imprecisões; nunca saberemos quando o casal se conhece, quando a relação se transforma, pois as cenas são construídas de forma a justamente estilhaçar esses definitivos. É possível dizer tanto uma coisa quanto o seu contrário, e o efeito do filme reside justamente nessa bipolaridade. Como em Road to Nowhere, importa menos a relação de veracidade da cena com uma lógica que lhe é externa, e mais a verdade interior à própria encenação: não sabemos quando o casal se torna um casal, se é que se torna um casal... mas quando eles interpretam um casal, há um comprometimento finalista e irrestrito com esse jogo de papéis. Naquele momento, eles são um casal. Nenhum espectador há de duvidar.

Não deixa de ser curioso que justamente Kiarostami, cineasta frequentemente pensado por sua relação com o documentário ou mesmo como um neo-neo realista, seja hoje quem melhor expõe os limites de uma relação estritamente realista com as obras de arte. Cópia Fiel é construído de forma a iluminar suas próprias limitações materiais (e é importante perceber que tanto Kiarostami quanto Hellman vão buscar um meio ainda mais restrito para trabalhar: o vídeo), abolindo a perspectiva e a profundidade de campo em nome de uma construção que só pode ser 2D. Toda perspectiva é a mímese de uma apreensão do mundo externo (e aí reside uma das maiores ironias do título do filme) onde existe, de fato, profundidade; o cinema, ao contrário, é necessariamente raso, plano, mesmo quando projeta imagens que, em sua constituição mundana, no espaço apropriado como cena, tenham características que iludem essa limitação. A perspectiva na composição pictórica sempre foi um truque. Cópia Fiel promove um raríssimo divórcio entre essa construção e as imposições visuais do mundo: não há perspectiva ou profundidade de campo possível quando o material de trabalho é, na verdade, uma superfície chapada, uma tela branca na parede de uma sala. O material do cinema não é o mundo que é exposto nele, mas a própria tela.

Kiarostami usa o vídeo para tornar essas camadas ainda mais sobrepostas, ainda mais indistintas. Isso acontece desde os reflexos da cidade no vidro de um carro - tornando o rosto dos passageiros e a cidade refletida um mesmo e único borrão - até às relações de profundidade dentro de uma cena, de um espaço. Em determinado plano (foto), Kiarostami coloca uma noiva olhando um rito que aconteceria, de fato, às suas costas. Na composição, porém, o segundo plano é chapado lateralmente ao primeiro, de forma que a ação de fundo divida o mesmo plano de representação da atriz que está à sua frente. Dentro da composição, as camadas de profundidade se chapam em lateralidade: é perfeitamente possível que a personagem olhe e interaja com o que, no mundo físico, estaria às suas costas.

Com isso, Kiarostami neutraliza qualquer busca de verossimilhança, de correspondência no mundo real, na armação do filme. Se a princípio isso pode parecer irônico em uma refilmagem livre de Viagem à Itália - filme de Roberto Rosselini, diretor tomado por André Bazin como encarnação viva da vocação fotográfica do cinema em representar os tempos e espaços do mundo em sua integralidade de relações, e por um trabalho exemplar da profundidade de campo - Kiarostami faz, a seu modo, uma atualização do neo-realismo rosseliniano; a única diferença, é que o realismo possível hoje está não mais na fidelidade ao mundo representado, mas na realidade da própria representação. É justamente por isso que a composição pictórica, em Cópia Fiel, é necessariamente improfunda, sem ponto de fuga (com exceção significativa, e conscientíssima, para o último plano do filme): o mundo mudou, a compreensão da imagem hoje é outra e, mais do que denunciar uma falsidade de construção, apontar as limitações técnicas e simbólicas do aparato é um gesto de fé na força da própria imagem. Revela-se o truque não para desmontá-lo, como em Made in USA, mas para reafirmar o seu poder transformador quando assumido como construção. Cópia Fiel está mais próximo do cinema de Rouch do que de qualquer outro da Nouvelle Vague.

Cópia Fiel parece ainda se apropriar da imaterialidade do vídeo para criar uma impressão de metamorfose, como se o filme fosse uma relação de forças imateriais que podem obrigá-lo a tomar novas formas, assumir novas estruturas, jogar por outras regras. Se a diegese permite que um casal de estranhos esteja, de repente, casado há anos, tudo é possível. Basta uma conversa em uma cantina para que dois estranhos se tornem um casal em crise; basta uma sugestão estrangeira (que, não à toa, vem de uma italiana - trazendo consigo toda a força histórica que o cinema italiano tem no mundo, e especialmente no cinema iraniano) não ser desmentida para ela se tornar verdade, e o filme se reestruturar todo por conta desse mal entendido. Pois ali, dentro daquele pacto entre atores e espectadores, aquele mal entendido é mais verdadeiro do que qualquer verdade. Pouco importa que o quadro cinematográfico seja centrípedo (embora exista um tratamento de som que inclua frequentemente mais do que o que está em tela), pois o mundo ficcional já é naturalmente fugidio. Por mais que o quadro determine uma certa regra, e os requisitos do cinema de gênero projetem sobre a trama e as personagens uma série de expectativas, elas sempre encontram margem para se esgueirar e não deixar que nossas expectativas e demandas as reprimam. Como Road to NowhereCópia Fiel é um filme que presenteia suas personagens com incessantes possibilidades de fuga. Mas essa fuga só pode ser para dentro do filme. E nessa afirmação de mistério e beleza, os dois filmes deixam de ser grandes para se tornarem infinitos.

terça-feira, março 13, 2012

Caminho para o Nada (Monte Hellman, 2010)




Existe algo profundamente desolador a respeito de Caminho para o Nada, que contribui, em parte, para afastar o grande público do contato com o filme: uma total recusa em explorar o lado glamoroso dos bastidores de uma produção cinematográfica. Trata-se menos de um registro nostálgico e romântico e mais de um registro angustiante e penoso, basicamente uma versão anti-hoolywoodiana do “por trás das câmeras”. A narrativa não linear também coopera para dispersar a atenção dos menos afeitos ao raciocínio e a reflexão. Talvez a única coisa que o filme esforça-se para preservar seja aquilo que constitui a essência dessa arte: o Cinema é o lugar dos sonhos - acho que ninguém em sã consciência seria capaz de contestar essa afirmação, o verdadeiro postulado que rege a Sétima Arte.

É perfeitamente compreensível que a abordagem adotada por Monte Hellman para retratar esse universo não seja glamorosa. Ele mesmo nunca foi uma peça do mainstream, do star system que há tanto tempo impulsiona essa indústria. Hellman sempre habitou as arestas do sistema, sendo relegado ao segundo plano como um verdadeiro outsider cuja condição ele compartilha com os protagonistas de seus filmes. Nesse contexto, é fácil entender a dificuldade que seus projetos sempre enfrentaram a fim de serem aprovados, já havendo 21 anos desde que seu nome veio impresso pela última vez nos créditos de uma produção - o mais longo de todos os hiatos de filmagem que sua carreira já experimentou. Não é exagero dizer que, de certa forma, seu talento vem sendo boicotado pela indústria cinematográfica, já que sua abstinência nunca se deu de forma voluntária e sim impositiva – seus filmes nunca foram um sucesso comercial, permanecendo até hoje restrito aos circuitos de arte e cinefilia, ganhando assim o status de cult (Robert Altman se irritava quando se referiam a ele como um diretor cult, ele bradava “What is a cult? It just means not enough people to make a minority.”).

Em Caminho para o Nada, o diretor-protagonista Michell Haven (Tygh Runyan), alter ego de Hellman com as mesmas iniciais do seu nome, MH, trabalha em um novo projeto de cinema à procura da atriz ideal para interpretar o papel principal (Shannyn Sossamon). Assim que as filmagens começam, os dois começam um relacionamento. A trama é labiríntica e exige do espectador uma participação ativa para que o mesmo não se perca. Os momentos chaves dessa relação são entrecortados por trechos de três produções cinematográficas que refletem o nível de sanidade mental dos personagens: As Três Noites de Eva (Preston Sturges, 1941), no auge do relacionamento, quando as coisas ainda estão sob controle; O Espírito da Colmeia (Víctor Erice, 1973), na “crise de meia idade”, quando a incerteza paira sobre a relação e a fronteira entre a ficção e a realidade fisga o próprio protagonista, e O Sétimo Selo (Ingmar Bergman, 1957), na despedida de ambos. Como bem notou Sérgio Alpendre em sua crítica para a Revista Interlúdio, Preston Sturges e Víctor Erice tiveram curtos períodos de glória e produção cinematográfica inversamente proporcional a seus talentos, semelhante à trajetória da carreira (ainda inconclusa) de Monte Hellman.

Hellman desconstrói os bastidores de uma filmagem e expõe todos os meandros que caracterizam um processo de captação de imagens (das angústias da equipe técnica aos acessos de estrelismos dos envolvidos), pra devolver ao Cinema aquilo que lhe pertence: a capacidade de maravilhar, de nos envolver, de nos conduzir a “outro mundo”. Nessa jornada, embaralhamos a noção do real e imaginário e, por meio de um dos personagens, testemunhamos a consequência desse efeito delirante e ilusório que só o Cinema é capaz de nos proporcionar – ele é levado a cometer um crime ao confundir o caráter da atriz principal com o da personagem que ela desempenha. Tornamos-nos cúmplices do ato praticado por ele nessa sequência central da trama, ponto alto do filme.

Num grande momento de inspiração que beira a genialidade, Michell Haven “documenta” a cena do crime e aponta a câmera em direção a nós: seu registro capta o próprio Monte Hellman por trás das câmeras - o filme deixa de existir apenas no plano dos sonhos pra se materializar na “nossa realidade”. A polícia chega à cena do crime e “confunde” a câmera de Michell com a arma do crime. O mundo sonhado pelo diretor-protagonista/O filme captado pelas lentes de sua câmera invade a realidade sem pedir licença nem dar explicações. Num ato súbito, fruto da influência do seu filme-sonho, rompe-se a fronteira que delimita o real e a ficção. O diretor-protagonista, com a câmera-arma na mão, é preso como indutor do crime, responsável pela barbárie recém-cometida por um colaborador do seu filme-sonho.

Hellman reserva ao seu diretor-protagonista o mesmo desfecho que ele enxerga para si: a reclusão imposta. Enquanto Hellman enfrenta longos hiatos na carreira em virtude da esnobada de Hollywood – ele não consegue financiamento para os seus projetos -, Haven estará encarcerado por um crime de responsabilidade questionável. Uma espécie de exílio forçado que Hellman entende como sendo desmerecido.

Na penúltima cena, que dá continuidade a sequência de abertura, Michell Haven acaba de assistir ao corte final do seu filme. A mesma personagem que leva o DVD à sua cela, inicialmente, deixa o cárcere com a cópia em mãos – a tomada, feita do ponto de vista de Haven, enfatiza a caminhada dela rumo à porta de saída (à luz) enquanto as grades da cela aprisionam o criminoso. Mesmo confinado nas grades de uma prisão ou privado do direito de produzir, sua obra estará livre para circular e influenciar outros desavisados/interessados. Suas ideias, obsessões, talento e visão não têm como permanecerem enclausuradas – sua arte estará sempre disponível para ser acessada e discutida. Apesar da longa batalha ideológica que Monte Hellman vem travando com o status quo de Hollywood, ele consegue encontrar uma forma elegante de preservar a sua dignidade e independência jogando com as mesmas cartas do seu oponente.

sexta-feira, março 09, 2012

O Porto (Aki Kaurismäki, 2011)










Eu recheei este post de imagens do filme porque, de fato, elas me chamaram muito a atenção – lembrou-me bastante o technicolor das produções americanas da década de 50, com cores vivas, vibrantes e iluminação muito característica, beirando o cartoonesco. Quando eu vi o trailer do longa antes da sessão de A Separação (Asghar Farhadi, 2011) eu duvidei que o visual adotado resultasse apropriado ao material em questão. Felizmente, eu estava enganado – como de hábito.

O trabalho de composição de Aki Kaurismäki é primoroso e só funciona a contento porque os atores foram muito bem escalados e dirigidos. Todos os personagens, inclusive aqueles que dispõem de pouco tempo em cena, são relevantes. Não só pela importância que o roteiro atribui a cada um deles no desenrolar da trama, mas principalmente devido às cuidadosas interpretações em completa sintonia com o tom farsesco que permeia o filme. Este, aliás, está muito bem dosado e equilibrado, de forma que a gravidade da situação abordada – dos excluídos, no caso os imigrantes franceses, sobretudo – nunca assume a chancela de denúncia ou acusação, bem como a parcela de comicidade que cabe nessa equação suaviza a jornada dos envolvidos – a leveza das caracterizações contribui muito para isso -, culminando num desejado efeito irônico de caráter sutil, porém efetivo.

O filme extrai sua força dessa roupagem burlesca, paródica, que cai como uma luva para o universo dos menos favorecidos. A teia que une os personagens contra a opressão das autoridades é muito sólida: a fim de preservar a própria dignidade eles recorrem à boa e velha solidariedade. Todos se tornam cúmplices nesse jogo pela sobrevivência. Quem sai lesado é o governo de Nicolas Sarkozy, que leva um tapa de luva de pelica daqueles bem encaixados.

Mesmo sendo cedo, já é um dos melhores lançamentos do ano.