segunda-feira, março 19, 2012

O Processo da Verdade


Eu procuro evitar reproduzir grandes textos nesse espaço pra não tornar a leitura cansativa e desagradável. Contudo, às vezes, eu não consigo resistir à tentação, sobretudo quando a qualidade do texto é excepcional.

Além disso, os links funcionam enquanto o conteúdo do texto está disponível na rede, quando saem de circulação, não se prestam mais a esse serviço - vide o que aconteceu com o site da Paisá.

Sem mais delongas, reproduzo o ensaio de Fábio Andrade (Revista Cinética), entitulado "O Processo da Verdade – Hellman, Kiarostami e alguns vícios da contemporaneidade", a respeito de Caminho para o Nada (Monte Hellman, 2010) e Cópia Fiel (Abbas Kiarostami, 2010).

Boa leitura. Quem preferir pode acessar o link por aqui.

Por Fábio Andrade
Em O que é o contemporâneo?, Giorgio Agamben - como lembrado recentemente por Cléber Eduardo em entrevista à revista Filme Cultura - aponta a defasagem em relação ao seu momento histórico como uma característica essencial para o homem verdadeiramente contemporâneo. "Exatamente por conta desta condição, desta desconexão e anacronismo, ele está mais capacitado a perceber e compreender seu próprio momento". Esse pensamento parece melhor impresso em uma máxima de Schiller: "viva com teu século, mas sem ser sua criatura". Mesmo que por diferentes vias, tanto Schiller quanto Agamben apontam a importância de se compreender as questões de seu próprio momento histórico, mas com a atenção para não se tornar presa fácil de suas armadilhas. Existem, porém, obras que cravam os dentes na carne de sua época e, sem buscar recorrer a esse distanciamento anacrônico e crítico (como fazia Rohmer, por exemplo), usam a matéria-prima das armadilhas contemporâneas como propulsão para abrir novos caminhos e libertar o pensamento e a arte. São obras que, mais do que se colocar de maneira anacrônica, se embebem (sem se embebedar) do presente para poder criticá-lo, negando o isolamento démodé sempre tão próximo do autismo e da beatice lunática dos veteranos de guerra; que preferem a correção de rumos ao esperneio inútil de que o mundo mudou, mas não deveria ter mudado. É o caso de Road to Nowhere, de Monte Hellman, e Cópia Fiel, de Abbas Kiarostami - não à toa, dois filmes que nascem fadados a cumprir um penoso ritual de má compreensão.

Road to Nowhere e o processo como cinema


Antes mesmo de começar, Road to Nowhere joga toda sorte de iscas às pressas conservadoras. Afinal, é o filme que marca a volta do diretor aos longas após vinte anos de afastamento, ínterim que poderia motivar uma vida inteira de ressentimentos. Mas ele é, também, um filme livre de qualquer saudosismo; ao contrário, sua realização e seu universo ficcional estão fortemente marcados por diversos símbolos atualíssimos: temos conversas sobre Vipers e câmeras 5D - que têm presença marcante em cena e em sua realização - e espaços habitados por laptops, iPhones, vídeos em streaming, DVDs, TV a cabo, MySpace e Facebook. Mesmo os inserts de outros filmes - de Víctor Erice, Preston Sturges e Ingmar Bergman - aparecem reanimados em TVs de alta definição, com o pillar box do 16x9 que marca uma atitude igualmente respeitosa e atualizadora da história. A aproximação que Hellman fará deste universo está condensada logo na sequência de abertura: um DVD-r é colocado em um computador e a câmera se aproxima lentamente da imagem que aparece na tela do laptop, até que o filme visto pelos personagens tome toda a tela do cinema e se torne, também, o nosso filme. É difícil imaginar movimento mais eloquente: para se compreender uma imagem contemporânea, é necessário mergulhar de cabeça nela, chafurdar-se em suas viscerais combinações de 0 e 1, até que não exista recuo ou distinção possível. Só assim, após essa afirmação de proximidade, é possível se apartar dela novamente para se posicionar de forma crítica.

Essa espécie de vai-e-vem do olhar é determinante em Road to Nowhere. Mesmo em termos materiais, a virtualidade do vídeo será atravessada pela necessidade de se achar algo de físico e de concreto em um mundo em que os índices apontam para todos os lados, e qualquer decodificação parece fadada à incerteza. A despeito da imprecisão supostamente imposta pelas mediações, há um mundo. Monte Hellman usa a agilidade porosa do digital para ressaltar os tempos e os estados mecânicos desse mundo, seja conservando todos os segundos necessários para que um secador de cabelos seque o esmalte fresco sobre as unhas da protagonista, ou o processo lento do braço mecânico que localiza uma música em uma jukeboxde discos de vinil. Como Godard ou David Lynch - não à toa, dois diretores a quem Road to Nowhere por vezes parece se endereçar de forma crítica e frontal - Monte Hellman vive a sua época justamente para não se tornar sua criatura.

Nesse sentido, é bastante ilustrativo que o filme trabalhe com uma categoria que gerou toda sorte de especulações críticas nos últimos anos: os chamados "filmes de processo". Pois, assim como em Aquele Querido Mês de AgostoMoscouHistória(s) do Cinema ou a obra recente de Jia Zhang-ke, Monte Hellman cria camadas diferentes de diegese que são articuladas em novas e novas quebras, incorporando a equipe ao filme, e o trabalho dos atores às personagens. Neste jogo, porém, há mais pistas falsas do que possibilidades de revelação. Pois o que parece ser afirmado a cada instante é que não há quebra de diegese possível: quando se mostra uma equipe de cinema em trabalho, ela deixa de ser uma equipe de cinema e se torna, imediatamente, personagem. Em uma resposta direta aos célebres créditos iniciais de O Desprezo, em que uma câmera é apontada frontalmente para "a platéia", clamando por sua participação, Mitchell Haven (o alterego de Hellman, que carrega inclusive as suas iniciais, interpretado por Tygh Runyan) aponta uma câmera para a quarta parede, mas o que aparece não é a platéia, e sim a própria equipe que realiza aquele contraplano. Afinal, o que pode ser de fato investigado na obra que não a sua própria construção? Monte Hellman implode os limites de obra aberta e fechada de Umberto Eco: uma vez que aceitamos o convite para completar os espaços deixados pelo filme, somos trancados em uma prisão da qual não há fuga possível. Toda tentativa de quebra de diegese nos devolve, de forma impiedosa e incontornável, ao próprio filme.

Essa diferença é acentuada por o processo dentro de Road to Nowhere não ser o de Hellman e de sua equipe, mas o do filme dentro do filme - que também se chama Road to Nowhere, e conta com os mesmos atores, em uma construção em abismo que solicita o 8 ½ de Fellini. Mas sob essa luz do alter-ego, o que nos garantia que o Miguel Gomes que aparece em Aquele Querido Mês de Agosto, o Coutinho de Jogo de Cena, ou o Godard de História(s) do Cinema estão ali como diretores - pessoas reais - e não simplesmente como atores que interpretam os próprios diretores? Ou melhor, como fazer essa distinção uma vez que a articulação do material não a faz, criando uma diegese que pode assimilar toda e qualquer quebra, em uma fagocitose infinita? Por que tão frequentemente nos permitimos tomar essas aparições como um índice de verdade exterior ao filme - algo que está intimamente ligado ao discurso dos "processos" - enquanto assumimos a presença de Truffaut em Noite Americana, ou de Hitchcock e Shyamalan em seus filmes, como um cameo ficcional?

Mesmo os maus filmes podem revelar a fragilidade dos atalhos do pensamento. No final do primeiro episódio de Storytelling, de Todd Solondz, uma aluna de escrita criativa relata em sala de aula o estupro que sofreu do próprio professor. Ao final do relato, ela o confronta e diz que o que escreveu era a verdade. O professor e estuprador dá de ombros: uma vez que a verdade é passada para o papel, ela se torna ficção. Road to Nowhere, um filme infinitamente maior, enuncia um sentimento parecido, mas de forma mais ambígua e, paradoxalmente, definitiva. Pois todo o jogo de cores, texturas e registros que, em tese, deveria distinguir as diversas camadas, e que poderia ser tomados como guia para uma possível decifração, não revela nada a não ser a impureza do próprio filme, que incorpora todas elas sem respeitar as distinções que elas tentam impor. Tudo se torna o filme, e é tornado filme à medida em que é assimilado por ele. Não há explicação possível a partir da catalogação e decodificação dessas camadas, pois elas são articuladas de forma a produzir um todo orgânico que só pode ser pensado em sua integridade, assumindo seu hibridismo e sua impenetrabilidade. Não há revelação sobre a obra de arte a ser encontrada na veracidade do processo, pois o processo está sempre fora do filme, e não há verdade que interesse ao filme fora de sua diegese. Em uma época tão fascinada com as impurezas entre o mundo real e ficcional, ainda tão refém da quebra de ingenuidade promovida pelo cinema moderno, Monte Hellman marca diferença ao se assumir igual: a relação entre um espectador e uma obra de arte parte de um pacto anterior que ambos, por pura necessidade, estão fadados a sempre restaurar, não importa quantas quebras a impureza intrínseca dessa relação venha a promover.

Nesse sentido, é essencial que o personagem-problema de Road to Nowhere, aquele que põe tudo a perder, seja justamente um investigador. É ele, o patético guardião da verdade obcecado com os fatos, quem tenta internamente decodificar a veracidade dos acontecimentos, e impor ao mundo ficcional - ao jogo de papéis que determina todas as camadas do filme - uma verdade que lhe é externa. Mas quando a arte é feita refém da realidade, ela é impiedosa: os guardiões da verdade podem assassinar a musa, mas em seguida serão sempre assassinados pelo artista. "You don't want the truth, do you? You just want to make this into some piece of shit Hollywood movie", acusa o investigador. "No", responde Mitchell Haven, "I want to make my piece of shit Hollywood movie!"

Interessa, portanto, menos um desmonte das instâncias em conflito e mais a busca de uma verdade da própria obra, criada justamente por esse conflito. É aí que Road to Nowhere se torna uma crítica bastante dura a Mulholland Drive, de David Lynch, e ao tipo de quebra-cabeça que ele se propõe a ser: onde Lynch enxertava estranheza pela deformação do mundo filmado concatenado de maneira cartesiana e clássica - com gruas e raccord - Monte Hellman promove efeito semelhante pela própria estrutura aplicada à encenação, sem recorrer a truques fantasiosos. Isso pode se dar pela incorporação dos acasos da filmagem, pela forma que Hellman articula trechos de outros filmes dentro de sua narrativa (basta um corte preciso para transformar O Sétimo Selo em uma comédia), ou pela maneira como o registro de diversas (todas?) cenas permanece incerto e misterioso mesmo após o filme terminar. O que interessa é menos a verdade do processo, e mais o processo da verdade, a integridade desse produto auto-reflexivo e acidentado que nos é oferecido com a mesma integridade de qualquer outro filme. Quebrado em mim, mas ainda assim uno. Não é à toa que a última coisa que se lê após os créditos, e após todo o vai-e-vem absurdo e rocambolesco de sua metalinguagem, seja um incontornavelmente ambíguo: this is a true story.

Cópia Fiel e o cinema como realidade


Cópia Fiel é outro filme que, a começar pelo seu título, se oferece como alimento para toda sorte de falsas questões. Parte delas parece ter ocupado, recentemente, o blog de Jean-Claude Bernadet com diversos posts - alguns bastante interessantes - e comentários sobre o filme. Mesmo quando eles apontam para a impossibilidade de se determinar certezas na diegese, a tônica geral é do desvelamento, da busca por evidências de verdade na construção - ou melhor, de evidências que adéquem a verdade do filme à verdade do mundo. O casal se conhece desde o início? Quanto tempo, no mundo vivido pelas personagens, dura o filme? Qual das relações encarnadas pelos arquétipos de Juliette Binoche e William Shimell é anterior, e qual se desdobra dessa primeira condição? Por diversas vezes, Bernadet chega à verdade como um processo, como algo que é constantemente alterado pelo próprio filme.

É natural buscar por significados nas determinações estruturais de uma obra de arte, já que é justamente por elas - pelo emprego material das habilidades do artista - que seu espírito se manifesta. Mas Cópia Fiel não só nunca será esgotado pela análise dessas estruturas, como elas são motor para novos desvios. Toda a precisão da construção de Kiarostami produz mais imprecisões; nunca saberemos quando o casal se conhece, quando a relação se transforma, pois as cenas são construídas de forma a justamente estilhaçar esses definitivos. É possível dizer tanto uma coisa quanto o seu contrário, e o efeito do filme reside justamente nessa bipolaridade. Como em Road to Nowhere, importa menos a relação de veracidade da cena com uma lógica que lhe é externa, e mais a verdade interior à própria encenação: não sabemos quando o casal se torna um casal, se é que se torna um casal... mas quando eles interpretam um casal, há um comprometimento finalista e irrestrito com esse jogo de papéis. Naquele momento, eles são um casal. Nenhum espectador há de duvidar.

Não deixa de ser curioso que justamente Kiarostami, cineasta frequentemente pensado por sua relação com o documentário ou mesmo como um neo-neo realista, seja hoje quem melhor expõe os limites de uma relação estritamente realista com as obras de arte. Cópia Fiel é construído de forma a iluminar suas próprias limitações materiais (e é importante perceber que tanto Kiarostami quanto Hellman vão buscar um meio ainda mais restrito para trabalhar: o vídeo), abolindo a perspectiva e a profundidade de campo em nome de uma construção que só pode ser 2D. Toda perspectiva é a mímese de uma apreensão do mundo externo (e aí reside uma das maiores ironias do título do filme) onde existe, de fato, profundidade; o cinema, ao contrário, é necessariamente raso, plano, mesmo quando projeta imagens que, em sua constituição mundana, no espaço apropriado como cena, tenham características que iludem essa limitação. A perspectiva na composição pictórica sempre foi um truque. Cópia Fiel promove um raríssimo divórcio entre essa construção e as imposições visuais do mundo: não há perspectiva ou profundidade de campo possível quando o material de trabalho é, na verdade, uma superfície chapada, uma tela branca na parede de uma sala. O material do cinema não é o mundo que é exposto nele, mas a própria tela.

Kiarostami usa o vídeo para tornar essas camadas ainda mais sobrepostas, ainda mais indistintas. Isso acontece desde os reflexos da cidade no vidro de um carro - tornando o rosto dos passageiros e a cidade refletida um mesmo e único borrão - até às relações de profundidade dentro de uma cena, de um espaço. Em determinado plano (foto), Kiarostami coloca uma noiva olhando um rito que aconteceria, de fato, às suas costas. Na composição, porém, o segundo plano é chapado lateralmente ao primeiro, de forma que a ação de fundo divida o mesmo plano de representação da atriz que está à sua frente. Dentro da composição, as camadas de profundidade se chapam em lateralidade: é perfeitamente possível que a personagem olhe e interaja com o que, no mundo físico, estaria às suas costas.

Com isso, Kiarostami neutraliza qualquer busca de verossimilhança, de correspondência no mundo real, na armação do filme. Se a princípio isso pode parecer irônico em uma refilmagem livre de Viagem à Itália - filme de Roberto Rosselini, diretor tomado por André Bazin como encarnação viva da vocação fotográfica do cinema em representar os tempos e espaços do mundo em sua integralidade de relações, e por um trabalho exemplar da profundidade de campo - Kiarostami faz, a seu modo, uma atualização do neo-realismo rosseliniano; a única diferença, é que o realismo possível hoje está não mais na fidelidade ao mundo representado, mas na realidade da própria representação. É justamente por isso que a composição pictórica, em Cópia Fiel, é necessariamente improfunda, sem ponto de fuga (com exceção significativa, e conscientíssima, para o último plano do filme): o mundo mudou, a compreensão da imagem hoje é outra e, mais do que denunciar uma falsidade de construção, apontar as limitações técnicas e simbólicas do aparato é um gesto de fé na força da própria imagem. Revela-se o truque não para desmontá-lo, como em Made in USA, mas para reafirmar o seu poder transformador quando assumido como construção. Cópia Fiel está mais próximo do cinema de Rouch do que de qualquer outro da Nouvelle Vague.

Cópia Fiel parece ainda se apropriar da imaterialidade do vídeo para criar uma impressão de metamorfose, como se o filme fosse uma relação de forças imateriais que podem obrigá-lo a tomar novas formas, assumir novas estruturas, jogar por outras regras. Se a diegese permite que um casal de estranhos esteja, de repente, casado há anos, tudo é possível. Basta uma conversa em uma cantina para que dois estranhos se tornem um casal em crise; basta uma sugestão estrangeira (que, não à toa, vem de uma italiana - trazendo consigo toda a força histórica que o cinema italiano tem no mundo, e especialmente no cinema iraniano) não ser desmentida para ela se tornar verdade, e o filme se reestruturar todo por conta desse mal entendido. Pois ali, dentro daquele pacto entre atores e espectadores, aquele mal entendido é mais verdadeiro do que qualquer verdade. Pouco importa que o quadro cinematográfico seja centrípedo (embora exista um tratamento de som que inclua frequentemente mais do que o que está em tela), pois o mundo ficcional já é naturalmente fugidio. Por mais que o quadro determine uma certa regra, e os requisitos do cinema de gênero projetem sobre a trama e as personagens uma série de expectativas, elas sempre encontram margem para se esgueirar e não deixar que nossas expectativas e demandas as reprimam. Como Road to NowhereCópia Fiel é um filme que presenteia suas personagens com incessantes possibilidades de fuga. Mas essa fuga só pode ser para dentro do filme. E nessa afirmação de mistério e beleza, os dois filmes deixam de ser grandes para se tornarem infinitos.

2 comentários:

  1. Belo texto. Ainda não vi o filme de Hellman, mas gosto muto de CÓPIA FIEL.

    O Falcão Maltês

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    1. Dos últimos filmes que vi, acho que CAMINHO PARA O NADA se sobressai.

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