sábado, março 31, 2012

Pina (Wim Wenders, 2011)







Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. (...) Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa.
Caio Fernando Abreu

É um privilégio para os ribeirão-pretanos receber o documentário Pina (2011), de Wim Wenders, na versão original, em 3D, respeitando o formato idealizado por seu diretor, roteirista e produtor. É o típico lançamento que costuma se restringir aos grandes centros, São Paulo e Rio de Janeiro, com número limitado de cópias à disposição. Conta a favor da produção o fato de ter sido indicada ao Oscar 2012 de Melhor Documentário, ainda que esta seja uma categoria menos valorizada na temporada de premiações.

A propósito, classificar Pina como um documentário, embora seja até compreensível tal denominação mesmo não sendo a mais apropriada, significa reduzir a dimensão da experiência de assisti-lo a uma mera convenção de gênero, o que seria no mínimo injusto. O filme é quase uma epifania, a rigor uma pequena epifania como diria Caio Fernando Abreu, "miudinha, quase pífias revelações de Deus feito jóias encravadas no dia-a-dia". Especialmente nas tomadas ao ar livre - no balé dos corpos diante da Natureza ou em harmonia com os edifícios, construções, automóveis, indústrias, etc -, a dança deixa de ser uma mera manifestação artística para integrar todos os aspectos da nossa existência. A dança passa a ser a própria razão de existir. "Dancem, dancem. Senão estamos perdidos", profetiza Pina Bausch ao final da projeção.

O pequeno trecho de abertura do post, extraído de um texto de Caio Fernando Abreu para O Estado de S. Paulo em 1986, reflete bem a relação que eu estabeleci com o filme: eu me senti protegido do Homem e suas atitudes deletérias enquanto estava sob a influência dos belos, leves e cândidos gestos e movimentos de Pina Bausch. Por quase duas horas foi possível acreditar que a salvação viria da dança. O espaço cênico - seja ele o interior de um metrô, as engrenagens de uma estação ferroviária, um cruzamento urbano movimentado ou o chão de fábrica de uma usina - só ganha vida quando o corpo cintilante do bailante passa a integrá-lo. "A Natureza morta" resplandece sob o efeito da magia corporal.

A equipe de Pina é a prova cabal de que a sua arte não enxergava fronteiras, limites ou barreiras de línguas, costumes e tradições; o âmbito do seu trabalho era universal. O corpo não tem nacionalidade. A base da comunicação era a linguagem corporal e cada qual contribuía com a sua parcela de talento. As entrevistas não contaram com um idioma predominante, todos preservaram as influências de suas raízes para prestar a sua homenagem a grande coreógrafa. Pelos relatos de alguns dos integrantes fica claro que a comunicação verbal não era preponderante; "o corpo também fala".

Além dos corpos e dos cenários existe a música, que dita o ritmo, a frequência, o tom e a carga emocional dos números de dança. Wenders combinou os três elementos à perfeição e fez um dos melhores empregos da tecnologia 3D até o momento – senão o melhor. O desfecho com todos os seus colaboradores caminhando devidamente trajados ao som de um jazz “a la Woody Allen” em um horizonte inóspito é antológico - a arte é capaz de chegar ao lugares mais improváveis. Lembrou-me o final de O Sétimo Selo (Ingmar Bergman, 1957), quando a Morte, extasiada, conduz suas presas para o fim em um cenário semelhante. Ironicamente (ou talvez, sabiamente), o único poupado dos seus malignos encantos é o personagem do ator - o artista do grupo.



2 comentários:

  1. Finalmente Wenders deu a volta por cima. Um belo documentário.

    O Falcão Maltês

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  2. É um filmaço. É uma pena Wenders ainda não ter acertado a mão na ficção, sua última digna lembrança também foi outro documentário, "Buena Vista Social Club (1999)".

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