terça-feira, março 13, 2012

Caminho para o Nada (Monte Hellman, 2010)




Existe algo profundamente desolador a respeito de Caminho para o Nada, que contribui, em parte, para afastar o grande público do contato com o filme: uma total recusa em explorar o lado glamoroso dos bastidores de uma produção cinematográfica. Trata-se menos de um registro nostálgico e romântico e mais de um registro angustiante e penoso, basicamente uma versão anti-hoolywoodiana do “por trás das câmeras”. A narrativa não linear também coopera para dispersar a atenção dos menos afeitos ao raciocínio e a reflexão. Talvez a única coisa que o filme esforça-se para preservar seja aquilo que constitui a essência dessa arte: o Cinema é o lugar dos sonhos - acho que ninguém em sã consciência seria capaz de contestar essa afirmação, o verdadeiro postulado que rege a Sétima Arte.

É perfeitamente compreensível que a abordagem adotada por Monte Hellman para retratar esse universo não seja glamorosa. Ele mesmo nunca foi uma peça do mainstream, do star system que há tanto tempo impulsiona essa indústria. Hellman sempre habitou as arestas do sistema, sendo relegado ao segundo plano como um verdadeiro outsider cuja condição ele compartilha com os protagonistas de seus filmes. Nesse contexto, é fácil entender a dificuldade que seus projetos sempre enfrentaram a fim de serem aprovados, já havendo 21 anos desde que seu nome veio impresso pela última vez nos créditos de uma produção - o mais longo de todos os hiatos de filmagem que sua carreira já experimentou. Não é exagero dizer que, de certa forma, seu talento vem sendo boicotado pela indústria cinematográfica, já que sua abstinência nunca se deu de forma voluntária e sim impositiva – seus filmes nunca foram um sucesso comercial, permanecendo até hoje restrito aos circuitos de arte e cinefilia, ganhando assim o status de cult (Robert Altman se irritava quando se referiam a ele como um diretor cult, ele bradava “What is a cult? It just means not enough people to make a minority.”).

Em Caminho para o Nada, o diretor-protagonista Michell Haven (Tygh Runyan), alter ego de Hellman com as mesmas iniciais do seu nome, MH, trabalha em um novo projeto de cinema à procura da atriz ideal para interpretar o papel principal (Shannyn Sossamon). Assim que as filmagens começam, os dois começam um relacionamento. A trama é labiríntica e exige do espectador uma participação ativa para que o mesmo não se perca. Os momentos chaves dessa relação são entrecortados por trechos de três produções cinematográficas que refletem o nível de sanidade mental dos personagens: As Três Noites de Eva (Preston Sturges, 1941), no auge do relacionamento, quando as coisas ainda estão sob controle; O Espírito da Colmeia (Víctor Erice, 1973), na “crise de meia idade”, quando a incerteza paira sobre a relação e a fronteira entre a ficção e a realidade fisga o próprio protagonista, e O Sétimo Selo (Ingmar Bergman, 1957), na despedida de ambos. Como bem notou Sérgio Alpendre em sua crítica para a Revista Interlúdio, Preston Sturges e Víctor Erice tiveram curtos períodos de glória e produção cinematográfica inversamente proporcional a seus talentos, semelhante à trajetória da carreira (ainda inconclusa) de Monte Hellman.

Hellman desconstrói os bastidores de uma filmagem e expõe todos os meandros que caracterizam um processo de captação de imagens (das angústias da equipe técnica aos acessos de estrelismos dos envolvidos), pra devolver ao Cinema aquilo que lhe pertence: a capacidade de maravilhar, de nos envolver, de nos conduzir a “outro mundo”. Nessa jornada, embaralhamos a noção do real e imaginário e, por meio de um dos personagens, testemunhamos a consequência desse efeito delirante e ilusório que só o Cinema é capaz de nos proporcionar – ele é levado a cometer um crime ao confundir o caráter da atriz principal com o da personagem que ela desempenha. Tornamos-nos cúmplices do ato praticado por ele nessa sequência central da trama, ponto alto do filme.

Num grande momento de inspiração que beira a genialidade, Michell Haven “documenta” a cena do crime e aponta a câmera em direção a nós: seu registro capta o próprio Monte Hellman por trás das câmeras - o filme deixa de existir apenas no plano dos sonhos pra se materializar na “nossa realidade”. A polícia chega à cena do crime e “confunde” a câmera de Michell com a arma do crime. O mundo sonhado pelo diretor-protagonista/O filme captado pelas lentes de sua câmera invade a realidade sem pedir licença nem dar explicações. Num ato súbito, fruto da influência do seu filme-sonho, rompe-se a fronteira que delimita o real e a ficção. O diretor-protagonista, com a câmera-arma na mão, é preso como indutor do crime, responsável pela barbárie recém-cometida por um colaborador do seu filme-sonho.

Hellman reserva ao seu diretor-protagonista o mesmo desfecho que ele enxerga para si: a reclusão imposta. Enquanto Hellman enfrenta longos hiatos na carreira em virtude da esnobada de Hollywood – ele não consegue financiamento para os seus projetos -, Haven estará encarcerado por um crime de responsabilidade questionável. Uma espécie de exílio forçado que Hellman entende como sendo desmerecido.

Na penúltima cena, que dá continuidade a sequência de abertura, Michell Haven acaba de assistir ao corte final do seu filme. A mesma personagem que leva o DVD à sua cela, inicialmente, deixa o cárcere com a cópia em mãos – a tomada, feita do ponto de vista de Haven, enfatiza a caminhada dela rumo à porta de saída (à luz) enquanto as grades da cela aprisionam o criminoso. Mesmo confinado nas grades de uma prisão ou privado do direito de produzir, sua obra estará livre para circular e influenciar outros desavisados/interessados. Suas ideias, obsessões, talento e visão não têm como permanecerem enclausuradas – sua arte estará sempre disponível para ser acessada e discutida. Apesar da longa batalha ideológica que Monte Hellman vem travando com o status quo de Hollywood, ele consegue encontrar uma forma elegante de preservar a sua dignidade e independência jogando com as mesmas cartas do seu oponente.

2 comentários:

  1. Não sabia que o Monte Hellmann ainda estava na ativa... Bacana

    O Falcão Maltês

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  2. Pode conferir Nahud que você não irá se arrepender. Já é mais um dos melhores que eu vi este ano.

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