Existe algo profundamente desolador
a respeito de Caminho para o Nada,
que contribui, em parte, para afastar o grande público do contato com o filme: uma
total recusa em explorar o lado glamoroso dos bastidores de uma produção
cinematográfica. Trata-se menos de um registro nostálgico e romântico e mais de
um registro angustiante e penoso, basicamente uma versão anti-hoolywoodiana do
“por trás das câmeras”. A narrativa não linear também coopera para dispersar a
atenção dos menos afeitos ao raciocínio e a reflexão. Talvez a única coisa que
o filme esforça-se para preservar seja aquilo que constitui a essência dessa
arte: o Cinema é o lugar dos sonhos - acho que ninguém em sã consciência seria
capaz de contestar essa afirmação, o verdadeiro postulado que rege a Sétima
Arte.
É perfeitamente compreensível que
a abordagem adotada por Monte Hellman para retratar esse universo não seja glamorosa.
Ele mesmo nunca foi uma peça do mainstream,
do star system que há tanto tempo impulsiona
essa indústria. Hellman sempre habitou as arestas do sistema, sendo relegado ao
segundo plano como um verdadeiro outsider
cuja condição ele compartilha com os protagonistas de seus filmes. Nesse
contexto, é fácil entender a dificuldade que seus projetos sempre enfrentaram a
fim de serem aprovados, já havendo 21 anos desde que seu nome veio impresso
pela última vez nos créditos de uma produção - o mais longo de todos os hiatos de
filmagem que sua carreira já experimentou. Não é exagero dizer que, de certa
forma, seu talento vem sendo boicotado pela indústria cinematográfica, já que
sua abstinência nunca se deu de forma voluntária e sim impositiva – seus filmes
nunca foram um sucesso comercial, permanecendo até hoje restrito aos circuitos
de arte e cinefilia, ganhando assim o status de cult (Robert Altman se irritava quando se referiam a ele como um
diretor cult, ele bradava “What is a
cult? It just means not enough people to make a minority.”).
Em Caminho para o Nada, o diretor-protagonista Michell Haven (Tygh
Runyan), alter ego de Hellman com as
mesmas iniciais do seu nome, MH, trabalha em um novo projeto de cinema à
procura da atriz ideal para interpretar o papel principal (Shannyn Sossamon).
Assim que as filmagens começam, os dois começam um relacionamento. A trama é
labiríntica e exige do espectador uma participação ativa para que o mesmo não
se perca. Os momentos chaves dessa relação são entrecortados por trechos de
três produções cinematográficas que refletem o nível de sanidade mental dos
personagens: As Três Noites de Eva
(Preston Sturges, 1941), no auge do relacionamento, quando as coisas ainda
estão sob controle; O Espírito da Colmeia
(Víctor Erice, 1973), na “crise de meia idade”, quando a incerteza paira
sobre a relação e a fronteira entre a ficção e a realidade fisga o próprio
protagonista, e O Sétimo Selo (Ingmar
Bergman, 1957), na despedida de ambos. Como bem notou Sérgio Alpendre em
sua crítica para a Revista Interlúdio, Preston Sturges e Víctor Erice tiveram
curtos períodos de glória e produção cinematográfica inversamente proporcional
a seus talentos, semelhante à trajetória da carreira (ainda inconclusa) de Monte
Hellman.
Hellman desconstrói os bastidores
de uma filmagem e expõe todos os meandros que caracterizam um processo de
captação de imagens (das angústias da equipe técnica aos acessos de estrelismos
dos envolvidos), pra devolver ao Cinema aquilo que lhe pertence: a capacidade
de maravilhar, de nos envolver, de nos conduzir a “outro mundo”. Nessa jornada,
embaralhamos a noção do real e imaginário e, por meio de um dos personagens,
testemunhamos a consequência desse efeito delirante e ilusório que só o Cinema
é capaz de nos proporcionar – ele é levado
a cometer um crime ao confundir o caráter da atriz principal com o da
personagem que ela desempenha. Tornamos-nos cúmplices do ato praticado por ele
nessa sequência central da trama, ponto alto do filme.
Num grande momento de inspiração
que beira a genialidade, Michell Haven “documenta” a cena do crime e aponta a
câmera em direção a nós: seu registro capta o próprio Monte Hellman por trás
das câmeras - o filme deixa de existir apenas no plano dos sonhos pra se
materializar na “nossa realidade”. A polícia chega à cena do crime e “confunde”
a câmera de Michell com a arma do crime. O mundo sonhado pelo diretor-protagonista/O filme captado pelas lentes
de sua câmera invade a realidade sem pedir licença nem dar explicações. Num
ato súbito, fruto da influência do seu filme-sonho,
rompe-se a fronteira que delimita o real e a ficção. O diretor-protagonista,
com a câmera-arma na mão, é preso
como indutor do crime, responsável pela barbárie recém-cometida por um
colaborador do seu filme-sonho.
Hellman reserva ao seu diretor-protagonista
o mesmo desfecho que ele enxerga para si: a reclusão imposta. Enquanto Hellman
enfrenta longos hiatos na carreira em virtude da esnobada de Hollywood – ele
não consegue financiamento para os seus projetos -, Haven estará encarcerado
por um crime de responsabilidade questionável. Uma espécie de exílio forçado
que Hellman entende como sendo desmerecido.
Na penúltima cena, que dá
continuidade a sequência de abertura, Michell Haven acaba de assistir ao corte
final do seu filme. A mesma personagem que leva o DVD à sua cela, inicialmente,
deixa o cárcere com a cópia em mãos – a tomada, feita do ponto de vista de
Haven, enfatiza a caminhada dela rumo à porta de saída (à luz) enquanto as
grades da cela aprisionam o criminoso.
Mesmo confinado nas grades de uma prisão ou privado do direito de produzir, sua
obra estará livre para circular e influenciar outros desavisados/interessados.
Suas ideias, obsessões, talento e visão não têm como permanecerem enclausuradas
– sua arte estará sempre disponível para ser acessada e discutida. Apesar da longa
batalha ideológica que Monte Hellman vem travando com o status quo de Hollywood, ele consegue encontrar uma forma elegante
de preservar a sua dignidade e independência jogando com as mesmas cartas do
seu oponente.
Não sabia que o Monte Hellmann ainda estava na ativa... Bacana
ResponderExcluirO Falcão Maltês
Pode conferir Nahud que você não irá se arrepender. Já é mais um dos melhores que eu vi este ano.
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