“Essa
coisa de grande público, isso é coisa de grana, é uma outra história, de
manipulação. Os meus filmes, pessoais, nascem não para objetivos externos,
estratégicos ou coisa parecida – não tem como, eles são simplesmente meus
caminhos de conhecimento, de descoberta, de revelação, um processo vivo. Isso
me lembra um pouco o Rossellini – “profissão: ser humano”. O Rogério (Sganzerla) tinha um espírito
assim, ele dizia “Eu cometo filmes”. No sentido de estar se aventurando
mesmo...”
Andrea Tonacci
Se existe um filme que me transformou,
que me ajudou a esclarecer o papel do cinema e o nosso papel como seres humanos, a nossa intervenção, influência, condição, existência, relação, esse
filme se chama Serras da Desordem.
Gabo-me de haver assistido a uma sessão de exceção, daquelas que ficam
guardadas na memória, seja pela companhia (minha esposa), o ambiente (Cine
Cauim de Ribeirão Preto), a circunstância (o próprio Tonacci fez um bate papo conosco após o encerramento
do filme), a expectativa, o pré-sessão, o pós-sessão, a discussão que se
seguiu, a minha pergunta, a resposta, etc. Era o meu primeiro contato com a
filmografia do Andrea Tonacci, de cara com um filme que havia colhido vários prêmios e elogios
por onde passara. Mesmo consultando as calorosas resenhas e críticas nos
extintos sites da Contracampo, Paisá e nos blogs ativos dos principais jornais
do país, nada foi capaz de me preparar para o impacto dessa experiência, dessa
rica fruição que reverbera no meu inconsciente até hoje.
Na época da minha sessão, no final de 2008, o Cinema Marginal passava por um momento de reconhecimento e (re)valorização, fomentado pelas retrospectivas proporcionadas por cineclubes e cinematecas, que permitiu a minha geração ter acesso a obras praticamente desconhecidas, reorganizadas e recuperadas pelos sobreviventes que as experimentaram no contexto social, político e cultural do seu nascedouro. Pouco tempo depois, a extinta Lume Filmes lançava a coleção Cinema Marginal, estreando comercialmente em DVD o inclassificável Bang, Bang (1971), do próprio Tonacci. O contato com a obra desse grande autor, em todas as esferas, sempre foi muito enriquecedor, construtivo e, por que não, pedagógico. Mesmo gozando de uma cinematografia curta, Andrea Tonacci vai fazer muita falta.
Na época da minha sessão, no final de 2008, o Cinema Marginal passava por um momento de reconhecimento e (re)valorização, fomentado pelas retrospectivas proporcionadas por cineclubes e cinematecas, que permitiu a minha geração ter acesso a obras praticamente desconhecidas, reorganizadas e recuperadas pelos sobreviventes que as experimentaram no contexto social, político e cultural do seu nascedouro. Pouco tempo depois, a extinta Lume Filmes lançava a coleção Cinema Marginal, estreando comercialmente em DVD o inclassificável Bang, Bang (1971), do próprio Tonacci. O contato com a obra desse grande autor, em todas as esferas, sempre foi muito enriquecedor, construtivo e, por que não, pedagógico. Mesmo gozando de uma cinematografia curta, Andrea Tonacci vai fazer muita falta.
O trecho abaixo foi extraído do livro Serras da Desordem, organizado por Daniel
Caetano, cujo capítulo derradeiro é uma extensa entrevista com o próprio
Tonacci à luz da estreia do seu filme. O curto trecho que abre essa postagem
foi extraído dessa entrevista.
Daniel
Caetano – Para começar, gostaria que você comentasse um pouco sobre o processo
que o levou a fazer o filme. Você havia feito alguns filmes com comunidades
indígenas, como Os Arara e Conversas no Maranhão, e o histórico de
aproximação cultural com os índios sempre levou a um questionamento da nossa
sociedade a partir do contato com outra sociedade...
Andrea Tonacci – O que me levou a fazer o
filme foi a busca de conhecimento, o desejo de um humanismo ainda possível, a
defesa do livre ser, meu, de qualquer um, dos índios... Bem, a gente fala hoje
dos índios porque eles sobreviveram, mas na verdade qualquer encontro como
este, entre culturas que nunca se viram, nunca se tocaram, tem um processo de
reconhecimento – ou desconhecimento – do outro, de mútua e imediata
interferência de um no outro. Esse me parece ser um movimento básico, quase
embrionário, espasmódico, celular, da humanidade, e não apenas uma
característica da nossa, vamos generalizar, da nossa expansão cultural
tecnológica em relação aos índios. Um índio pode ter a mesma coisa em relação a
outro índio, como também pode ter em relação a nós. Quando existe um contato
que não é pela marra, que não é pela força como normalmente tende a ser, esse
contato eventualmente também pode ser um desejo do outro, e não só nosso em
encontrá-lo. Não é o que ocorre com os índios isolados, a curiosidade deles é
uma coisa, a criação de uma dependência, o contato, é outra. Então eu acho que
essa relação que a gente estabeleceu com algumas tribos não é um caso
particular, e acho que é oportuno de ser observado porque é algo que temos
muito próximo aqui, de nós, em nós, esse ser outro que é o índio brasileiro, esse
outro que fica isolado em uma floresta a quatro mil quilômetros daqui, mas que
não nos é diferente no que concerne a devastação da floresta interior. O filme
é uma forma de ir até lá, reconhecer-se.
E
para isso ele pode ser assustador, porque o homem branco tem a pólvora, tem a
força...
Bem, este processo é bastante louco. Teve
uma vez, quando fiz Os Arara, num
período em que a gente ficou parado em um posto de vigilância do Funai no Pará,
ficou tudo muito calmo durante meses...Até que um belo dia, num fim de tarde,
os índios atacaram o posto. Teve gente flechada e o cacete. Foi uma ação do
tipo em que eles chegaram devagar e enfiaram as flechas por entre as tábuas dos
alojamentos, silenciosamente, nas frestas, para flechar a gente lá dentro. Mas
o que gerou isso, quando durante aqueles meses todos houve trocas de presentes?
Até então era aquela relação de visibilidade sem ver o outro, de uma tentativa
de aproximação sem agressividade... Que não era uma pacificação, na verdade era
uma tentativa de desarmar as tensões, já que pacificação parece ser uma coisa
na marra, e o que era feito era um esforço de desmontar a agressividade,
diminuir a pressão externa sobre os Arara, esse era o trabalho do Possuelo.
Então, o que aconteceu? Bem, depois de alguns dias chegou a informação de que,
a uns cinquenta quilômetros de lá, dentro do território dos índios, máquinas do
Incra, a serviço de uma prefeitura de não-sei-onde, pagas por um invasor
qualquer para retirar madeira, entraram em território indígena, derrubando tudo
no caminho, pra tirar madeira durante uns três ou quatro dias – bem rápido, pra
não dar tempo do Ibama fazer nada. Eles avançaram lá dentro e, no dia seguinte,
os índios nos atacaram. Aquele grupo não tinha conhecimento se o pessoal era o
mesmo da Funai ou não. Para eles, era tudo a mesma gente, brancos, vindos de
fora, entrando ali, a mesma turma. Então tem muitos casos, muitas coisas que
ocorrem nesse processo e mostram como a gente não sabe do Outro. Essa questão
do desconhecer o Outro sempre me foi atraente, não particularmente por ser
índio, mas porque o índio tem a possibilidade de ser esse ‘o mais outro
possível’. Mas esse Outro é o ser humano, é você, é cada um de nós diante de
alguém, é o mundão...