Já se vão quase 18 anos desde que
assisti a Os Pássaros pela primeira
vez em uma cópia surrada de VHS. Em visita a São Paulo na última semana para um
ciclo de palestras, aproveitei a ocasião para redescobrir o filme em uma sessão
mais apropriada: cópia restaurada no cinema.
Quando do primeiro contato,
recordo-me de haver lido uma resenha relativamente longa do filme fazendo uma
aproximação muito interessante, ainda que de difícil compreensão pra mim na
ocasião, entre a natureza sexual da protagonista (Tippi Hedren) e o ataque
inexplicável dos pássaros à baía de Bodega Bay. Naquela altura do campeonato,
não consegui ver nada além de um filme de terror bem orquestrado (por ventura,
até supervalorizado). As implicações sexuais da trama (implícitas), recorrentes
na obra de Hitchcock, me passaram batido, apesar da sensualidade quase vulgar
de Tippi Hedren (explícita), decorrente da mente maliciosa do diretor.
Desta vez, minhas antenas estavam
sintonizadas no teor erótico da produção, conduzido nas entrelinhas por
Hitchcock, como de hábito, o que dificulta um olhar cinematográfico menos
treinado a reconhecê-lo. Embora essa carga de sexualidade se manifeste por meio
da atração existente entre Melanie Daniels (Tippi Hedren) e Mitch Brenner (Rod
Taylor), a abordagem dela a que me refiro remete muito mais a psicanálise freudiana,
representada na libido, que nada mais é do que “a energia fundamental do ser
vivo que se manifesta pela sexualidade" (dicionário priberam).
É bem mais conhecida, bem como
aceita, a interpretação de que o ataque dos pássaros a Bodega Bay seja atribuído
a uma obra de Deus, que se reserva no direito de manter sob sigilo as razões
que o levaram a tanto, seja para essa intervenção pontual ou outras que nos
acometeram naturalmente no curso de uma vida. O recurso empregado que
fundamenta essa interpretação é a angulação da câmera ao estabelecer o ponto de
vista de uma ave, visto de cima para baixo, perfeitamente confundível com o que
seria o ponto de vista de Deus. Além do mais, quem conhece a obra de Hitchcock
e o subtexto religioso que a influencia, pronunciadamente católico, reconhece
essa leitura do filme como perfeitamente aceitável.
O livro After Image de Richard A.
Blake aprofunda essa análise do filme dentro desse contexto do catolicismo:
The birds are, of course, the central figures in the film and the most difficult to categorize. Although it is tempting to allegorize them too explicitly, it seems most consistent with Hitchcock´s earlier works to regard them simply as the embodiment of mindless, irrational Nature, the agent of chaos in the universe. In Catholic terms, their material presence is a “sacrament” of spiritual uncertainty in a very ambiguous world. During long stretches in the film their role is benign; they are simply there, as part of the landscape, but their most startling characteristic is their unpredictability. What prompts their unprovoked attacks? Why do their victims include innocent children? Why do they stop and wait? Although they hold the potential for extraordinary destruction, they are not necessarily evil by nature; they simply are, and as brute reality beyond human control and understanding they are extremely threatening. Explanations of their behavior are consistently hollow and unsatisfactory.
Enfim, deixo a abordagem sacra do filme, exaustivamente explorada ao longo dos anos, para especular o lado profano da proposta. O livro 1001 filmes para ver antes de morrer, na colaboração de Joshua Klein, sugere uma "alegoria sexual misógina, onde o único macho é Taylor, que está cercado de diversas mulheres a disputar sua atenção". Entretanto, sem se curvar por completo a essa interpretação, ele continua dizendo que "o tema do filme permanece dúbio, na melhor das hipóteses, com Hitchcock privilegiando o horror e os efeitos assustadores".
A tensão sexual se estabelece
logo nas primeiras cenas (o assobio que introduz o filme e a longa conversa
dentro do pet shop), de forma que as intenções de Melanie Daniels são
prontamente reveladas ao espectador. O curioso é que ela encara o assobio e o
diálogo mal intencionado travado com Mitch Brenner (com segundas intenções)
como se estivesse o tempo todo com a situação sob controle. Em ambas as
circunstâncias ela é traída pelo excesso de autoconfiança, decorrente, na minha
interpretação, da condição social que ela ocupa (alta sociedade, filha de empresário
bem sucedido que tudo pode) e, sobretudo, da beleza descomunal de sua
intérprete, Tippi Hedren. Nenhuma dessas fortalezas exigiu o seu esforço para
serem construídas; elas lhe foram simplesmente agraciadas.
Essa combinação é muito bem
explorada por Hitchcock, ao criar uma tensão interessante entre a imagem
(pudicícia, nobre) e o seu conteúdo (despudorado, baixo), resultando em uma
vulgaridade apreciável/provocadora: Melanie desfila o tempo todo impecavelmente
vestida, maquiada e "ornamentada", "vendendo" a impressão
de "comportada", ao passo que suas atitudes e comportamentos
(explicitadas em poucos minutos) denotam um turbilhão de sensualidade
enclausurado dentro dessa "casca de civilidade". Essa energia
"presa", de natureza selvagem, luta desde o início para ser
libertada.
Aqui, cabe um paralelo com uma
personagem de um livro de Stephen King, Carrie,
adaptada para o cinema por um fiel discípulo de Hitchcock, Brian de Palma, em
1976. As energias que emanam de Melanie e Carrie são da mesma natureza, inexplicáveis
e irracionais, fruto da sexualidade incompreendida, embora se materializem
cinematograficamente de formas distintas: na primeira, uma invasão de pássaros
(alegórica); na segunda, poderes telecinéticos destrutivos (precisamente). Essa
"energia sexual" se manifesta quando suas vítimas se veem
contrariadas, sob um verniz temível. Uma vez que o gatilho é acionado, nem
mesmo quem a concebe é capaz de contê-la - a sexualidade feminina como uma
verdadeira força da Natureza.
Em Bodega Bay, Melanie faz um
exercício de investigação para descobrir a residência de Mitch Brenner -
atrevida, já que sua visita não é aguardada, ela se candidata a lhe entregar
pessoalmente o casal de periquitos que os levou ao desentendimento verbal no
pet shop de São Francisco. Esse atrevimento causa uma má impressão nos
habitantes da pequena Bodega Bay, que não tardam a enxergá-la como uma ameaça -
o mal estar pode ser ocasionado pela oposição entre a cidade e o campo, ou a
sofisticação e a simplicidade, e pela vulgaridade explícita de Melanie (um
verdadeiro furacão de sensualidade). Quando os pássaros começam a atacar os
habitantes em Bodega Bay, não são poucos a responsabilizá-la pelo ocorrido.
Mother in diner: Why are you doing this? Why are they doing this? They said when you got here the whole thing started. Who are you? Where did you come from? I think you're the cause of all this. I think you're evil. EVIL!
Essa energia maligna que
"ocasiona o ataque" só cessa de lançar-se sobre a pacata Bodega Bay
quando ela se volta contra a própria Melanie. Os pássaros, que a materializam,
só aquietam seu instinto assassino depois de se voltarem contra a sua
"própria causa". Visto dessa forma, o ataque dos pássaros a Melanie
não poderia ser interpretado como uma relação sadomasoquista? Essa
"energia sexual", selvagem, irracional, inexplicável e incompreendida
alcança seu auge no momento em que Melanie recebe um sofrimento físico,
inconscientemente desejoso, filmado de forma agonizante, e seguido de uma calmaria
desconfiável.
Vi a cena desta vez pensando na
personagem Joe (Charlotte Gainsbourg) de Ninfomaníaca
(2013), de Lars Von Trier, cujo tratamento dado à questão não encontraria
espaço em 1963. Von Trier é explícito, inclinado a uma polêmica que lhe sirva
de promoção comercial para seus próprios filmes. Seu cinema busca o impacto, o
choque. Hitchcock é mais elegante, explora a psicanálise nas entrelinhas, sem que
para isso tenha de abrir mão do caráter distrativo inerente ao seu ofício. A
censura de outrora exigia dos cineastas encontrar formas mais criativas de
manipular o material a fim de evitar que os mesmos fossem reprovados.
Compará-los sem considerar o contexto das circunstâncias em que foram criados é
injusto, o que não impede alguém de eleger suas preferências. Curioso como
minha mente tenha recorrido a um tratamento mais explícito da questão, para só
então estabelecer a cognição necessária à interpretação sugerida nesse
raciocínio.
Os periquitos, ou lovebirds (pássaros do amor, em tradução
livre), são os únicos pássaros que não se rebelam contra os residentes de
Bodega Bay. Entram mudos e saem calados da cidade. O desejo sexual explorado
pelo subtexto do filme não permite que o amor se pronuncie.
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