O final de ano vai se aproximando e as listas começam a
proliferar na internet. Cães Errantes
(2013), de Tsai Ming-liang, encontrou espaço em algumas delas, sobretudo
naquelas elaboradas por brasileiros. Antes de preparar a minha seleção eu
gostaria de reforçar a impressão que tive dele no ano passado (eu o vi na
Itinerância da Mostra em Ribeirão Preto), aprofundando-me no universo explorado
por seu realizador. Eu tenho gravado desde 2011 O Sabor da Melancia (2005), que figurou na grade de programação do
Telecine Cult por algum tempo. De lá pra cá eu ainda consegui baixar O Rio (1997) e O Buraco (1999), mas nenhum deles recebeu a minha devida atenção. O Sabor da Melancia foi o primeiro passo
para tentar reparar essa lacuna.
O extenso dossiê que a Revista Interlúdio dedicou ao diretor
coloca este filme como uma espécie de parêntesis em sua obra, causando
descontentamento naqueles que já o seguiam, ao mesmo tempo em que serviu de
porta de entrada para novos seguidores interessados em seu estilo. Embora a
ambientação deste longa-metragem seja mais solar e vigorosa - com um uso bem
mais expressivo de cores, valorizadas pelos números musicais excepcionais -,
engana-se quem pensa que a narrativa ruma para um acerto de contas
conciliatório nos moldes de uma comédia romântica (hollywoodiana talvez, mas
não somente). O apaziguamento do espírito e do desejo (carnal) vem com um
choque. Num "ímpeto irracional" do personagem do seu ator-fetiche Lee Kang-sheng, Tsai Ming-liang "alcança um efeito inimaginável, rearranjado os
mesmos elementos da sua obra de forma a obter mais do que o novo", conforme passagem do texto de Wellington Sari para a Revista Interlúdio.
A abertura do texto do Cléber Eduardo para a Revista Cinética
esclarece melhor as coisas, embora o seu conteúdo completo seja menos reverente:
Na primeira sequência de O Sabor da Melancia, duas mulheres cruzam em sentido contrário, em um corredor público, sem olhar uma para a outra. É como se não existissem. A imagem seguinte é a de um casal fazendo sexo com uma melancia entre eles. Mal se tocam diretamente, estão perto e separados. Na última sequência, o protagonista sem nome, o mesmo da cena de sexo com melancia, cumpre sua função como ator pornô. Transa com uma mulher morta (pornô = necrofilia), olhando para outra, à sua frente, em uma janela gradeada – levando-a a um orgasmo à distância, provocado só pela imagem. Sexo sem contato físico, com um corpo morto a intermediar o prazer. No momento clímax, ele larga a atriz morta e goza na boca da mulher na janela, moça com quem tem uma relação silenciosa ao longo do filme (retomada de uma obra anterior de Tsai Ming-liang, Que Horas São Ai?). Seu olhar não se dirige ao dela, pois, entre eles, há uma parede. Expressão de sofrimento: a dela é de dor profunda, rosto colado na genitália dele, lágrimas nos olhos, sêmen na boca.
O filme é praticamente mudo, salvo pelos números musicais que
rompem absolutamente com a cadência da narrativa e com o silêncio reinante,
injetando humor e alegria onde não existem. Todas as letras musicais são
melancólicas, contrastando com o ritmo alegre das melodias. O tom
desesperançoso logo se impõe, assim que a epifania musical de caráter
fortemente erótico termina. Aliás, é nesse contexto sexual, agravado pela
escassez de água e comunicabilidade, mas repleto de desejos carnais e
espirituais ocultos, que a melancia se encaixa como um vetor a preencher
o vácuo existencial dos personagens. Um ato de coragem e criatividade em
produzir um filme inteiro dependente de uma metáfora contestável, cujos
significados nos conduzem a outra esfera de compreensão a partir de uma
experiência cinematográfica absolutamente incomum.
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