No penúltimo post deste (projeto de) blog, publiquei um pequeno trecho da
coleção de entrevistas que Michel Ciment conduziu com Stanley Kubrick ao longo
de suas últimas produções, datada a partir do lançamento de Laranja Mecânica (1971) – editada em um belo
livro, Conversas com Kubrick, da
CosacNaif. Na ocasião desta
publicação, eu havia acabado de ver O
Iluminado (1980) no ciclo de Clássicos que o Cinemark vem promovendo desde
o início do ano passado, numa revisão dos filmes do diretor iniciada na Mostra
de São Paulo de 2013. A minha primeira experiência com ele não havia sido das
melhores, num surrado VHS da década de 1990, que me pareceu ultraestilizado e
supervalorizado. A sessão em uma sala de cinema serviu para pôr os devidos pingos
nos is e me fazer reconhecer a sua grandeza.
Quando postei a entrevista com Kubrick eu ainda não havia visto o Sniper Americano (2014) de Clint
Eastwood. O sucesso de público do filme, o maior da carreira do diretor, além
das inúmeras indicações ao Oscar, levou a revista Veja a entrevistá-lo. Reproduzo-a neste post quase integralmente, só deixando de fora as três últimas
questões. A comparação entre as duas entrevistas é interessantíssima,
levantando pontos de confluência e de discordância.
A lucidez de ambos para
esclarecer os desafios do ofício é notável, absolutamente cientes dos limites
do alcance de suas influências sobre o material explorado em seus filmes. A polêmica
causada no lançamento de Laranja Mecânica
não parece ter sido muito diferente da controvérsia gerada em torno de Sniper Americano. Os dois foram acusados
de “defenderem” a violência, confundidos com as ações perpetradas por seus
personagens. O pragmatismo de Clint Eastwood contrasta com a racionalidade
exacerbada de Stanley Kubrick.
Revista Veja: A seu ver, surgiu da controvérsia em torno de Sniper Americano algo de iluminador ou
instigante, ou ela seria mera polarização de opiniões?
Clint Eastwood: Minha impressão é que algumas das pessoas que têm
alimentado essa controvérsia estão mais interessadas em obter reconhecimento e
manter seu nome em evidência do que em debater. O filme tem, é claro, uma
mensagem sobre urgências do combate, mas eu diria que sua mensagem contra
guerra tem peso idêntico; não são poucos os soldados que sentem estar no lugar
errado, e mesmo Kyle tem de se esforçar mais e mais para se convencer de que o
que está fazendo é o certo. Eu não fui a favor da guerra. Mas, a partir do
momento em que os soldados são enviados à batalha, meu desejo é que possam
cumprir sua missão e voltar vivos para casa.
Essa questão, a dos efeitos da violência cometida com convicção do
justo e certo, é constante em seu trabalho.
É difícil discutir intenções:
enquanto você está rodando um filme, uma multiplicidade de opiniões a respeito
dele cruza sua cabeça, toma forma e então muda – de tal modo que, no fim, se
alguém vier lhe perguntar quem são as pessoas que vão querer vê-lo, a única
resposta possível é “não tenho a menor ideia”. Um filme só existe de fato nos
olhos de quem o vê. A lição que aprendi a aceitar é que tenho de dar o meu
melhor; mas, quando o resultado do meu trabalho chega aos cinemas, só o público
decide se quer vê-lo ou prefere escolher outra coisa.
Dói quando o público decide que não é o seu filme que ele quer ver? J. Edgar, por exemplo, foi praticamente
ignorado.
Talvez o público mais jovem não
conheça J.Edgar Hoover, e talvez o público que tem idade para se lembrar dele
não frequente mais o cinema. O mesmo talvez possa ser dito de Invictus, sobre Nelson Mandela. É sempre
uma pequena decepção, mas remoer desapontamentos não leva a nada. É partir para
outra. Inversamente, se cinco meses atrás me tivessem dito que Sniper Americano seria o maior sucesso
comercial da minha carreira, eu teria ficado surpreso. Vai ver é o pessoal que
não foi ver J.Edgar que está
comprando os ingressos.
Oitenta e quatro anos é uma idade respeitável, mas ela não parece ter
diminuído sua disposição: faz apenas meio ano que o senhor lançou Jersey Boys.
Sinto-me ótimo e estou com boa
saúde. Sem querer me comparar com sir Edmund Hillary, a justificativa que tenho
para o número de filmes que faço é a mesma que ele deu para conquistar o
Everest: eles estão lá à espera, ora. Mas admito que, depois desse 2014 puxado,
a pior coisa que poderia me acontecer seria dar de cara com outro bom roteiro.
Não consigo parar de olhar projetos, mas acho que uns meses de folga me fariam
bem.
Um filme com tanta ação a coordenar, como Sniper Americano, exige energia extra, não?
Faz mais de 60 anos que trabalho
como ator e 45 como diretor, então essa é uma habilidade que aprendi a dominar:
a de priorizar – decidir o que está sob meu controle direto e o que depende de
outros, e então ir caminhando pelo filme como uma equipe. Porque um filme é um
trabalho de equipe: cerque-se dos melhores profissionais, e eles farão você
parecer melhor do que é.
Preparação e análise em excesso podem ser inimigos de um cineasta?
Sim. É preciso ter algum frescor,
alguma abertura nas concepções e atitudes, quando se entra em um set. Às vezes,
imprevistos podem ser benéficos e melhorar uma cena; não é bom reagir com desaprovação
a situações inesperadas que por acaso surjam. Alguns atores entram em cena em
ponto de bala e vão esfriando; outros chegam frios e vão esquentando. É preciso
aceitar as pessoas pelo que elas são e tirar o melhor partido do que elas têm a
oferecer. Tudo é um julgamento. E tem-se também de aceitar que às vezes fazemos
bons julgamentos, e outras vezes, maus.
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