A
ilha dos prazeres, aquela visitada por uma Helena Ignez alucinada em A Mulher de Todos, ilha quimérica de ideais libertários frequentada por todo tipo de besta
do terceiro mundo, retorna aqui como a ilha dos prazeres agora proibidos, Ilha
de prazeres secretos, reprimidos por uma estranha sociedade pautada por
desconfiança e medo constantes. Com o Brasil real em plena ditadura militar, a
ilha imaginada torna-se exílio de muitos, espaço onde ainda semeia-se liberdade
e harmonia, pedaço de terra perdido no mapa, secreto, impossível, invisível.
Mas o que poderia tornar-se um ingênuo espaço de fuga,
representação de um possível éden latino-americano, se revela um espaço de
tormento e pesadelos apesar de tudo – Carlão se esquiva do escapismo barato
para chocar-se sem medo com as contradições dos homens amorais e libertários
que ali pairam, como fantasmas, praticando seus atos incautos, descobrindo as
fronteiras da liberdade nos próprios pesadelos e sonhos, nas próprias idéias,
amores e crimes.
Trata-se de um filme legitimamente apaixonado pelo Brasil,
ainda que feito em um momento de desencanto, sofrimento e fácil entrega à
inação. Pois ao invés de se recolher à interiorização e codificação das ideias,
Carlão faz o oposto; revela um grande carinho pelo cinema brasileiro no diálogo
que constrói com o popular (sem perder a complexidade ou deixá-la eclipsar a
relação com o espectador) ao mesmo tempo em que revela também um enorme amor
pelo espaço interditado da comunhão da felicidade entre amigos e amantes, um
Brasil ideal, que não se encontra nem na fuga, nem na libertação relativa,
restrita a uma ilha, nem sequer no sonho impossível. A ilha - ela não existe -
se torna real apenas no momento do crime, momento em que a agente secreta
assassina os procurados da lei e destrói a quimera.
Nessa
amálgama, Carlão cria a mais subversiva e libertária forma de se relacionar com
o gênero. Faz uma pornochanchada sem nunca recuar da proposta ou esconder o
despudor com pseudo-elegância moralizante, mas a faz tendo na forma uma
resposta política vigorosa a seu tempo – coisas que ele radicalizaria em Império do Desejo, seu filme seguinte. Por trás do humor, melancolia. Por trás da
libertinagem, esperança. E nesse recorte que faz do Brasil, via sua
representação imagética mais despudorada, Reichenbach nunca deixa de dialogar e
unir numa reconfiguração estética – tal como fazia Sganzerla – os monstros
sagrados do cinema e literatura, filosofia e música, sem o peso e cerimônia
habituais, colocando essas imagens em contato imediato com o espectador, sem
filtro de pompa algum.
Estamos
nós diante do filme, Reichenbach desembarcando nas praias da pornochanchada,
levando junto o sertão-mar de Glauber e a ilha de Pierrot, Le Fou, mulheres nuas seduzem ao som da música erudita, do brega extrai-se a
beleza, do popular a erudição, e o cinema irrompe em risos numa bela sessão de
cinema; são as imagens descendo da tela, oferecendo-se generosamente ao
espectador, sedução escrachada, beleza rasgada, paixão à primeira vista. Cinema
brasileiro para o Brasil, ainda hoje vigoroso e cheio de sentidos, o zoom
explosivo nos aproximando de um país inventado ou talvez apenas por nós
esquecido, país este que me interessa ver refletido nas telas do cinema de hoje.
Nenhum comentário:
Postar um comentário