sábado, agosto 14, 2010

A Origem (Chirstopher Nolan, 2010)



Difícil permanecer indiferente ao impacto causado pela sessão de A Origem (2010), de Christopher Nolan. Com poucos minutos de projeção somos introduzidos a complexa dinâmica de interações que rege o “mundo dos sonhos”: suas multicamadas, sua lógica própria, seu indecifrável enigma. Logo na primeira cena tudo que interessa aos personagens e ao espectador já está em jogo: o sonho, o real, o tormento, a esposa, os filhos. À medida que o filme avança esses elementos se embaralham, se confundem, se sobrepõem. Quem espera que eles se organizem, se expliquem ou se justifiquem deve se frustrar; a intenção não é esclarecer e sim plantar a semente da dúvida. O que atormenta os personagens passa a atormentar o espectador: quando começa o sonho e termina a realidade, ou, quando termina o sonho e começa a realidade?

Sabe-se que o diretor levou dez anos pra transformar essa história em objeto fílmico, e honestamente, considerando todos os detalhes de produção – escrever a história, estabelecer a sua lógica, a interação entre os personagens, convencer os executivos a bancar o projeto, o processo de filmagem, a edição minuciosa de som e imagem - e o resultado que se vê na tela, era de se esperar que o tempo fosse maior, tamanha a riqueza de detalhes e a quantidade de interpretações que o filme sugere. Mesmo quem não está muito habituado a perceber ou notar o caráter manipulador de um diretor sobre um filme, aqui ele se escancara e expõe todas as suas entranhas.

A história é sobre Dom Cobb (Leonardo di Caprio), sujeito que, profissionalmente, se utiliza da tecnologia e drogas para se infiltrar nos sonhos de outras pessoas e, pessoalmente, se encontra em crise por causa da culpa pela morte da sua mulher (Marion Cotillard). Por ser considerado o suspeito de tê-la matado, ele foge dos EUA largando os dois filhos sem que possa vê-los antes de provar a sua inocência.

A fim de realizar um trabalho que permita seu regresso aos EUA e a seus filhos, ele aceita a proposta de um milionário japonês (Ken Watanabe) que promete livrar a sua cara, contanto que ele “convença” o herdeiro do seu principal concorrente (Cillian Murphy) a partilhar seu império. Acostumado a penetrar nos sonhos alheios para roubar segredos e ideias, dessa vez a tarefa será inversa: inserir uma ideia na mente de outra pessoa. Como melhor explica o filme, esse trabalho é mais complicado do que o habitual e requer um time capacitado para realizá-lo; todos desempenham um papel relevante na história e cada qual tem a sua carga de responsabilidade nesse plano engenhoso.

Conforme sugere essa breve descrição é possível perceber que boa parte da projeção se passa dentro do “mundo dos sonhos”. É louvável e digno de nota o esforço do diretor para tornar crível esse mundo que nos assombra: aqui a tecnologia merece um capítulo a parte e seu emprego deveria servir de base para todos esses exemplos recentes de filmes em 3D que se utilizam desse recurso de maneira inócua. A cena em que todo o esplendor desse “mundo” se mostra em toda a sua magnitude se dá quando a personagem de Ellen Page, Ariadne, intitulada “arquiteta dos sonhos”, caminha pelas ruas de Paris ao lado de Leonardo di Caprio e transforma a paisagem urbana conforme suas projeções mentais. Ela vira a Cidade Luz, literalmente, de cabeça para baixo.

Mesmo se tratando do mundo sonhado, o filme não se apresenta como um registro onírico, que é próprio dos sonhos, ele se assemelha mais a uma realidade manipulada, fruto da imaginação do diretor Christopher Nolan. Isso enfraquece o efeito que o filme desperta sobre nós. Tudo se mostra tão bem calculado, arquitetado, que a noção de sonho, ao menos da forma como o conhecemos, se dissipa. Acreditamos “estar nos sonhos” porque os personagens o dizem, não porque “o reconhecemos”.

Essa materialização dos sonhos, ou representação da mente, se encontra bem presente na produção contemporânea, especialmente nos filmes roteirizados por Charlie Kaufman: Quero ser John Malkovich (1999), de Spike Jonze, Brilho eterno de uma mente sem lembranças (2004), de Michel Gondry e Sinédoque, Nova York (2008), do próprio Kaufman. A mente configura seu material fílmico por excelência; não basta filmar uma pessoa atormentada, é preciso dar forma a esse tormento. O caos instaurado e materializado na mente do personagem de Jim Carrey em Brilho Eterno é muito semelhante ao de Don Cobb em A Origem. Outro exemplo bem acabado é Matrix (1999), dos Irmãos Wachowski.

O cinema sempre flertou com a ideia de sonho e sempre houve grandes diretores que ficaram reconhecidos por explorar esse universo com desenvoltura: Luis Buñuel, Jean Cocteau, Alfred Hitchcock, Federico Fellini, Alan Resnais e David Lynch. Em boa parte de seus filmes a impressão de se estar em um sonho é recorrente: imagens desconexas, impactantes e incongruentes. Não existe uma razão aparente que justifique o agrupamento das cenas na ordem sugerida, daí que esses filmes resultem semelhantes a “experiência sonhada”.

Talvez o filme de Christopher Nolan não resulte em uma “experiência sonhada” autêntica; como já disse, existem exemplos mais bem acabados; no entanto, como gênero policial, pode-se dizer que o filme o subverte. É tudo tão original que se torna difícil classificar o filme. Se não fosse pelo excesso de explicações para justificar o paradeiro dos personagens – talvez necessário para se criar a ilusão de uma obra perfeita, bem amarrada – o filme ganharia mais fôlego pra trabalhar a emoção do espectador. Esse controle obsessivo pelo produto acabado anestesia qualquer manifestação emotiva.

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