Felizmente a Mostra Permanente de Cinema Brasileiro do
Cine Cauim em Ribeirão Preto está de volta. Depois de um longo hiato de alguns
bons meses, uma parte dos lançamentos nacionais restrito ao circuito
alternativo começa a aportar no melhor cinema da cidade. Melhor de tudo é a
presença dos diretores e/ou atores das produções no bate papo que rola após a
exibição do filme, viável somente pela parceria firmada com o SESC.
No mês de agosto eu perdi a data
de Estamos Juntos (2011), de Toni
Venturi, e muito provavelmente devo perder a data de Natimorto (2010), de Paulo Machline, no mês de outubro. Embora eu
já tivesse visto Estamos Juntos, nada
como uma sessão de perguntas e respostas com o mentor do projeto. O Natimorto parece que está fugindo de
mim: perdi sessões em São Paulo (optei na ocasião por assistir a Bolywood Dream, de Beatriz Seigner) e a
exibição no Cinemark de Ribeirão Preto.
Em setembro consegui comparecer
no dia em que Bróder (2010), de
Jeferson De, foi apresentado. No filme, três amigos de infância que respondem
por Macu (Caio Blat), Jaiminho (Jonathan Haagensen) e Pibe (Silvio Guidane) se
reúnem na casa de Dona Sônia (Cássia Kiss), mãe de Macu, pra celebrar o
aniversário deste. Embora todos sejam filhos do Capão Redondo (distrito
pertencente à subprefeitura do Campo Limpo, na cidade de São Paulo), apenas Macu
ainda reside na região como morador - cresceu fora do eixo familiar e às
margens do crime. Nas inúmeras conversas de esguelha que ele mantém com um
sujeito estranho à comunidade, não tarda para que compreendamos que algo errado está sendo planejado – o entusiasmo de Jeferson pela obra de Shakespeare não
nega fogo, a tragédia se fará presente.
Jaiminho é um futebolista bem
sucedido – vestindo a camisa de um time espanhol - em passagem pelo Brasil para
comemorar o aniversário de Macu. Pibe é o único dos três que leva uma vida
ordinária: casado, com um emprego fixo e pai de uma criança. Desse encontro não
tão improvável entre três amigos de infância, Jeferson De dramatiza o que ele
considera os três únicos destinos reservados aos brasileiros hoje em dia: o
comum (meu, seu, o dele, de um número expressivo de pessoas e de Pibe), a criminalidade
(Macu) ou a fama (Jaiminho). O projeto ficou engavetado durante uns dez anos e
assumiu diferentes versões ao longo do tempo. A direção de Jeferson é tão
segura que nem se nota que estamos diante da estréia do diretor em longas
metragens. Ao contrário do que foi amplamente divulgado na mídia quando do
lançamento do filme, Jeferson não cresceu na periferia de São Paulo, nasceu e
passou a infância em Taubaté, interior do estado. Seu contato com o Capão
Redondo veio mais tarde, quando cursava cinema na USP.
Jeferson não queria abordar o
racismo de maneira direta; a ideia era fazer um filme que não soasse
panfletário, em que a questão do negro fosse explorada de forma menos
sensacionalista e mais honesta, o mais fiel possível a realidade. Seu ponto de
partida foi abordar algo que sempre lhe chamou a atenção: o conceito de
negritude. Na conversa com o público presente no Cauim ele fez a seguinte pergunta:
“O que é a negritude?”, após um silêncio constrangedor ele mesmo respondeu, “Negritude
todo mundo sabe o que é: a capoeira, a feijoada, o blues, o samba, etc. E a
branquitude?”, silêncio de novo... “Ninguém sabe.” O personagem de Macu,
branco, incorpora essa ideia, ele representa esse desejo do branco de “se
tornar negro”, de se fundir a esse conjunto de valores culturais do mundo negro
e se apropriar deles.
A propósito dessa ideia, ela me
remete a uma cena (que resgato da memória) do ótimo Faça a Coisa
Certa (1989), de Spike Lee, cuja influência no cinema de Jeferson De se faz
notar claramente. Nela, um jovem negro residente do Brooklyn em Nova York
questiona o filho do proprietário de uma pequena pizzaria do bairro (John
Turturro), branco, a respeito dos retratos pregados na parede do
estabelecimento de seu pai (Danny Aielo): Michael Jordan, Sidney Poitier,
Martin Luther King, Magic Johnson, etc. Ele não consegue entender como um
empresário branco bem sucedido, de mente supostamente sã, é capaz de eleger
como ídolos somente cidadãos de descendência negra. Ele fica inconformado por
não haver quadros de personalidades brancas em um território predominantemente
branco. No cinema de Spike Lee o racismo é uma via de mão dupla e representá-lo
é tão difícil quanto reconhecê-lo.
O cotidiano do Capão Redondo
retratado pelo filme não enxerga a fronteira entre o branco e o negro. A
pobreza não tem cor. Isso proporciona a Jeferson liberdade para brincar com os
estereótipos raciais e lhe confere margem para invertê-los sem
descaracterizá-los: o criminoso é o branco; o jogador de futebol é o negro. Não
que essa opção tenha distanciado o seu filme da realidade (muito pelo
contrário), mas é certo que o inverso aproximaria sua abordagem de um discurso
racial de apelo mais fácil. Justamente o que Jeferson tentou evitar. O
preconceito tarda a aparecer e quando dá as caras não poderia ser melhor
representado: quando os três amigo são parados pela polícia em uma blitz
rodoviária só Pibe e Jaiminho são convidados (na base da força) a sair do
carro, Macu é poupado dos excessos da corporação.
Na condição de negro, Jeferson contou,
em tom irônico, que havia encontrado a melhor forma de evitar que fosse
confundido com um ladrão enquanto caminhava pelas ruas da capital paulista: “o
negócio é andar sempre de óculos e com um livro debaixo do braço, negro
intelectual não faz parte do imaginário comum”.
É curioso como mesmo depois de duas
semanas da projeção a presença enigmática de Cássia Kiss ocupe a maior parte das
minhas lembranças do filme. É impressionante como ela confere grandeza a uma
personagem que ocupa a tela por poucos instantes (embora seja central na trama
do filme). Como bem lembrou Jeferson, o encontro dos três amigos só acontece
por causa do convite de Dona Sônia – o trágico elevado ao quadrado. A cena dela
com a filha é uma das mais fortes que vi no cinema atualmente. E claro, Caio
Blat está cada vez melhor, pra não dizer perfeito.
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