Zapeando na net encontrei o melhor texto de Trabalhar Cansa que consegui encontrar.
Foi escrito por Fernando Watanabe em seu blog e acabou sendo aproveitado pelo Cinequanon (onde eu o encontrei).
Na minha opinião, ele dá conta do recado excepcionalmente bem.
Por Fernando Watanabe
O
filme possui vários planos que começam com o quadro vazio, como se o espectador
devesse observar os espaços antes da ação propriamente dita começar. Ainda (e
agora é uma interpretação minha), esse mecanismo, usado repetidas vezes nos
espaços principais do filme, materializam em mise-en-scène uma ideia essencial
que permeia o filme, ideia esta que talvez seja uma visão de mundo: os
personagens são títeres de um jogo (de cartas marcadas), prisioneiros de um
sistema, peões que se movem num tabuleiro demasiado fechado. E claustrofóbico.
Duas frases do filme:
"A gente coloca uma tela pra disfarçar". Disfarçar, no caso, a
sujeira e a ruína sob a qual está erguida a estrutura do supermercado. Por trás
dos atraentes produtos, da fachada brilhante e do papai noel que dança feliz,
há sujeira, muita sujeira.
"Não brinca com isso, filha, tem muita sujeira". Helena, ao reprimir
a filha que brincava com o dinheiro do caixa, dispara a frase que contém o
filme em si.
O filme com sua câmera clínica diagnostica a melancolia e a apatia, sintomas
detectados (ao modo de um cirurgião, porém um cirurgião pouco invasivo,
distanciado, mais clínico) principalmente em uma classe, a média.(Aliás, que legal assistir um filme que mostra a classe média sem a iluminação
"30 refletores por cena" da Globo Filmes e também sem a degradação
doentia do arnaldo jabor rodriguiano.)
A questão de classe me chamou muita atenção. Por mais que os três principais
personagens secundários da "classe baixa" estejam de alguma forma
oprimidos pela lógica do dinheiro, todos eles possuem momentos de alegria: o
rapaz que trabalha para Helena e termina demitido, em certo momento, ao fundo
de um plano beija sua namorada (enquanto em primeiro plano o casal classe média
está preocupado, sempre preocupado...). A senhora que trabalha no caixa é uma
piriguete animada com o novo "pretendente" com quem está saindo. A
empregada doméstica se encanta com o carnaval, e a sua irmã planeja uma pegação
com um rapaz. Eles têm tesão. Já o casal da classe média só esboça fazer sexo
no momento em que eles conseguem um sucesso voltado ao dinheiro: é quando
Helena consegue alugar a loja para abrir o seu negócio.
Portanto, as individualidades estão reprimidas por um mundo guiado pela
racionalidade utilitária que não encontra alegria em nada que não leve a
"progressos" materiais (Preocupados, sempre preocupados demais).
Momento forte: Helena assiste o desfile das escolas de samba na TV ao lado da
empregada doméstica. A segunda se encanta. Já a primeira é incapaz de ser
alegre, incapaz de se apaixonar, incapaz de amar qualquer coisa de modo puro:
já se encontra esgotada pelas preocupações que a lógica capitalista que rege
não apenas seu trabalho, mas sua VIDA nos mínimos detalhes, causa em sua mente.
Mente exausta, corpo exausto. Mente robótica (inconsciente), corpo autômato.
Paralisado. Impotente.
A crueldade do dinheiro chega ao ponto de degradar as relações humanas, e isso
fica mais acentuado quando helena grita para Otávio "Tá com medo que sua
filha ache que você é um bosta? (por não conseguir emprego)". Isso me
lembra "L`Argent"(O Dinheiro) e "Le Diable, Probablement"
(O Diabo, Provavelmente), as obras máximas desesperadas do final da vida de
Robert Bresson.
Estilisticamente, o filme é Bresson + Hitchcock + Haneke + Jelinek + um monte
de coisa que não conheço. Ao mesmo tempo, tem uma cara própria, a cara de uma
parcela da juventude brasileira contemporânea que, no mundo, tal qual ele se
encontra, está e sempre estará fora de casa. Ainda assim, essa juventude (a
nossa?) é privilegiada (ou não?) por poder, alegremente (o filme tem senso de
humor), paralisar o relógio que marcha e criar nesse lapso de tempo uma zona de
inconformismo criativo.
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