domingo, dezembro 30, 2012

O Deserto dos Tártaros (Valerio Zurlini, 1976)



Em meio aos diversos compromissos festivos de final de ano a agenda cinematográfica vai sendo tocada do jeito que dá. As sessões, por exemplo, não poderiam ser em horários mais inconvenientes: das 23h00 em diante. Praticamente os horários de pré-estreias. Pena que nada do que tenho visto me despertou a vontade de escrever alguma coisa a respeito: O Hobbit (Peter Jackson, 2012), O Impossível (J.A.Bayona, 2012), As Aventuras de Pi (Ang Lee, 2012) e Os Penetras (Andrucha Waddington, 2012). Estivesse eu de passagem por São Paulo, ao menos haveria o filme As Quatro Voltas (2010), do Michelangelo Frammartino, ou o Hahaha (2010), do Hong Sang-Soo, dois prováveis postulantes a frequentar uma lista de melhores do ano – embora eu ainda não os tenha visto. Do jeito que a coisa anda, vai ficar pro DVD – se é que alguma distribuidora vai assumir a causa. Torçamos!

Bom mesmo tem sido a Mostra Nelson Pereira dos Santos no Canal Brasil, que nos fez o favor de disponibilizar raridades só antes acessíveis aos entusiastas do download gratuito, embora eu duvide que o padrão de apresentação dos filmes esteja no mesmo nível dos que o canal tem nos presenteado – todos restaurados. Pra mim tem sido uma surpresa melhor que a outra. Minha expectativa em torno de Como era gostoso o meu francês (Nelson Pereira dos Santos, 1971) era assistir a uma comédia escrachada e urbana, um tanto sofisticada - no limite do possível para um filme brasileiro da década de 70 (o francês do título me desperta essa sensação) – e ambientada nos glamorosos anos 20 carioca; e o que eu encontrei foi totalmente o oposto, uma obra quase etnográfica, retratando os primórdios da relação índio versus homem branco (tomando os relatos da expedição de Hans Staden no Brasil como referência), no que Nelson incorpora genialmente a antropofagia cara aos então recém extintos tropicalistas. Canibalismo literal e conotativo. Excelente! El Justicero (1967) não deixa nada a dever aos marginais e só me fez repensar o quanto Cinema Novo e Cinema Marginal guardam de semelhanças, a despeito das polêmicas farpas trocadas entre seus integrantes na ocasião.

Eu já estou alongando demais a minha reverência a Nelson Pereira dos Santos e quase estou me esquecendo de abordar o filme que intitula esse post. Na verdade, minhas palavras seriam insignificantes se comparadas às de Suzana Toscano, bloguer portuguesa do portal 4R – Quarta República (quartarepublica.blogspot.com.br). Encontrei seu texto navegando na net, logo após a minha sessão de o Deserto dos Tártaros, e já o li um par de vezes tamanho o meu entusiasmo com a leitura que ela fez do filme. Ainda que a especialidade do portal não seja exatamente o cinema, e sim a economia, a sua abordagem do livro de Dino Buzzati, e por conseqüência da película de Valerio Zurlini, só enriquece a experiência da fruição. A aproximação que ela faz do livro/filme com os eventos que culminaram na crise financeira de 2008 é soberba. No final das contas, só vou nutrindo evidências de que parecemos um cachorro correndo atrás do próprio rabo.

Reproduzo o texto abaixo mas deixo o link da publicação para ser acessado, já que os comentários deixados no corpo da postagem só elevam o nível da discussão. Boa leitura!

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Por Suzana Toscano (24 de agosto de 2011)

Tenho andado muito absorvida com a leitura de “Linhas de Fractura”, do economista Raghuram Rajan (Ed. Babel). Nesse livro, de uma leitura muito fácil, o autor faz um historial dos acontecimentos que considera mais relevantes nas últimas décadas ao nível do sistema financeiro e interpreta os sinais que foram sendo transmitidos e sistematicamente ignorados, até se chegar onde hoje estamos. Visto em retrospectiva, todas as peças do complicadíssimo puzzle parecem ganhar um sentido de fatalidade que legitima a pergunta que hoje tantos fazem “como foi possível”?

Quis o acaso que encontrasse à venda o filme baseado no livro “O Deserto dos Tártaros”, de Dino Buzzati, uma obra prima editada em 1950 e magistralmente passada ao cinema por Valerio Zurlini. A leitura deste livro, ou ver o filme, ganham um significado muito impressivo na sequência da leitura do livro que acima refiro. Dino Buzzati conta a história de um jovem tenente do então império austro húngaro, a quem é atribuído como primeiro posto o longínquo forte de Bastiano, no limite do deserto dos Tártaros.

O jovem oficial percorre a imensidão inóspita até chegar à muralha austera erguida sobre as pedras e virada para o nada, um forte construído na sequência de uma invasão acontecida há séculos mas depois da qual nada, absolutamente nada, fazia prever que voltasse a acontecer. Lá dentro, o regimento e os vários oficiais, todos provenientes da nobreza, cumpriam religiosamente os cerimoniais do exército e comportavam-se, formalmente, como se tudo o que fizessem fosse da maior importância, apesar de poucos acreditarem na utilidade da sua missão. Dia após dia, mês após mês, ano após ano, os rituais cumpriam-se com toda a pompa e o regulamento – absurdo, se olhado o vazio da realidade – impunha-se com o rigor de quem não admitia correr o risco de cometer qualquer erro que pusesse em perigo a missão oficial que ali os conservava.

Todos, desde o general que, em Roma, consumia os seus charutos, até aos oficiais mais antigos que consumiam a sua dignidade na aparência enfatuada dos galões, fingiam cumprir uma missão patriótica guardando o bastião do inimigo que todos supunham ser imaginário. No entanto, insidiosamente, foram ganhando consistência algumas suspeitas de que o inimigo, afinal, existia, e que se preparava, lentamente, longinquamente, para atacar. Alguns sinais emergiram das brumas persistentes no horizonte do bastião, o receio foi alastrado mas, absurdamente, este facto causou o maior desconforto nas cadeias de comando. Todas as tentativas de alertar foram abafadas. Há um episódio fantástico em que o inimigo é claramente visto através de uns binóculos potentes, tornando-se pois impossível, a partir daí, ignorá-lo. A reacção dos que ditavam a estratégia militar foi ordenar que o binóculo fosse confiscado, proibindo qualquer instrumento que pudesse mostrar a evidência. Além disso, para reforçar a ideia de que não havia perigo nenhum, desguarneceram o forte, afastando os oficiais mais esclarecidos e capazes de assumir o comando, deixando lá apenas os oficiais de mais baixa patente e alguns soldados.

Tal como nos mostra R.Rajan em “Linhas de Fractura”, no Deserto dos Tártaros da nossa realidade todas as instituições que tinham como razão de ser regular os mercados, estar atentos aos abusos e impedir os desvarios que conduziram o mundo ocidental a este descalabro, mantiveram os seus rituais, invocaram regulamentos para encobrir a sua incapacidade de agir e esvaziaram-se de sentido útil, fechando os olhos ao perigo e desvalorizando os que, com binóculos primeiro, e com evidência depois, viam que o perigo avançava.

Convido-vos a ler os dois livros, ou a ver o filme. Para muitos que já sofreram os primeiros embates, as conseqüências foram as mesmas. Sonhos, ilusões, vidas inteiras dedicadas a uma causa que supunham válida e em defesa de um bem comum, tudo desperdiçado. No ocidente, nosso bastião, luta-se agora, desordenadamente, contra o inimigo que de repente se concretizou, na esperança de que não tenha sido tarde demais e haja ainda tempo de reunir esforços e encontrar comandantes que impeçam o descalabro.

terça-feira, dezembro 18, 2012

Os Inconfidentes (Joaquim Pedro de Andrade, 1972)



Os Inconfidentes mistura os relatos dos Autos da Devassa contra os acusados de traição à corte portuguesa, poesias de integrantes da conjugação mineira e textos de Cecília Meireles para traçar um retrato ambíguo dos líderes do movimento que nunca chegou à ação, sufocado pelos dominadores em 1798. Com ironia, Joaquim Pedro mostra como destacados cidadãos da sociedade, revoltados contra a derrama (taxação compulsória) imposta aos empresários e proprietários de jazidas em Minas Gerais, passam de inflamados sediciosos a covardes que abjuram de suas ideias depois de presos pela autoridade portuguesa.

Alternando-se entre o registro épico e o patético de personagens como Gonzaga (Luis Linhares), Alvarenga Peixoto (Carlos Kroeber), Manoel da Costa (Fernando Torres) e Bueno Silveira (Paulo César Peréio), Os Inconfidentes é uma história de traições e deslealdades da qual somente Tiradentes (José Wilker) termina com certa integridade. Rodado em locações em Ouro Preto, o filme também funciona como metáfora política e histórica para Joaquim Pedro criticar a posição de seus colegas cineastas e intelectuais diante do regime militar instaurado no Brasil a partir de 1964.
Roger Lerina
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O diálogo imaginado abaixo "foi" travado pelos inconfidentes enquanto eles ensaiavam a grande tomada do poder das mãos da corte portuguesa, quando ainda se encontravam “por cima”. Mesmo sabendo que Joaquim Pedro tomou liberdades para redigi-lo e elaborá-lo, salta aos olhos o quanto o discurso empregado tem de atemporalidade. Ele vale tanto para 1798, 1972 e/ou 2012. O que mais chama a atenção no diálogo é o enfoque dado ao papel dos militares, que ironicamente validaram o seu próprio avacalhamento, já que o texto supostamente passou pelo seu crivo antes de ser produzido/aprovado - como era de praxe no período ditatorial. Um autêntico tapa com luva de pelica.

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Tiradentes (José Wilker): O doutor Maciel estudou uma porção de coisas na Europa, com ele nós vamos construir as fábricas da Nova República.
José Álvares Maciel (Carlos Gregório): Matéria prima é o que não falta. Estou chegando de uma viagem que fiz pelo sertão justamente para avaliar os recursos da terra e descobri, além de insetos e vegetais dos mais diversos, que de Sabará a Vila Rica é tudo ferro e cobre.
Tiradentes: Podíamos fazer o ferro das armas, fabricar pólvora.
José Álvares Maciel: Fundir o ferro seria perfeitamente possível se não fosse necessário ter uma licença de Lisboa. Quanto à pólvora, só o salitre aqui custa tanto quanto a pólvora importada.
Bueno da Silveira (Paulo César Peréio): Meu caro doutor Maciel, nós estamos reunidos aqui justamente para não depender mais de licenças de Lisboa ou de importações da Europa.
Padre (Nelson Dantas): Livres e com sua ajuda doutor Maciel, nós vamos ter as nossas fábricas, e aí todo o português patife poderá usar os galões de cetins se quiser, e os nacionais usarão roupas feitas aqui mesmo, com o honesto pano nacional.
Tiradentes: Ser escravo de Portugal, o Brasil, apesar de suas riquezas, é um país miserável.
Bueno da Silveira: De tudo que pode precisar um país só nos falta uma coisa: liberdade.
José Álvares Maciel: O problema é a apatia, a preguiça tropical, na Europa era o que mais se comentava, a moleza e a indolência do Brasil, que não se mexe por mais que o oprima.
Tiradentes: Os cariocas já estão com os seus olhos abertos, e os mineiros pouco a pouco vão abrindo os seus, os governadores e seus criados que vem para cá comer a honra e as terras não terão muito mais tempo para rir de nós.
Padre: Quando for lançada a derrama, o povo se levantará espontaneamente, porque ele não vai ter como pagar os impostos.
José Álvares Maciel: Isso me parece totalmente impossível, além de materialmente inviável, porque o povo, ainda que o açoitassem, aceitaria qualquer governo sem reagir. E ainda porque, sendo o número de escravos negros muito maior que o de brancos, se nós nos rebelarmos os negros também se revoltam, e aí seria pior ainda.
Bueno da Silveira: Esse problema se resolve facilmente. Dando liberdade aos escravos, eles ficam do nosso lado.
José Álvares Maciel: Se libertarmos os escravos, quem vai trabalhar as terras? Tirar o ouro das minas? Não, a meu ver, a única forma de se fazer o levante seria matar todos os europeus.
Padre: Este é o meu voto.
José Álvares Maciel: O que não seria viável porque muitos brasileiros têm pais e parentes europeus, e não é possível que concordassem em matá-los a sangue frio.
Bueno da Silveira: Me parece que matar todos os portugueses seria uma desumanidade. Não?
Tiradentes: Basta matar alguns. Não?
Inácio José de Alvarenga Peixoto (Carlos Kroeber): Senhores, se o povo se levanta ou não se levanta, isso tem pouca importância. As armas não estão na mão do povo, mas bem guardadas com o meu regimento. E como sou eu que o comando, as armas, na verdade, estão nas minhas mãos.
Padre: Nós temos que evitar que no futuro, tudo fique nas mãos de um só homem, principalmente de um militar.
Inácio José de Alvarenga Peixoto: O problema a meu ver é conseguir bastante pólvora.
Bueno da Silveira: Na nova república não pode haver soldados profissionais, todos serão alistados em milícias e pegarão em armas quando for necessário. Quando não for, ficam em casa e continuam com as suas ocupações.
Tiradentes: Os oficiais do regimento já estão conversados?
Inácio José de Alvarenga Peixoto: Tudo o que deve se falar com eles para que se ponham de acordo.
Tiradentes: Ah, isso não! Militares são todos inimigos uns dos outros. Eu antes confiaria num paisano que num colega de farda. A única pessoa que tem autoridade para falar com os oficiais é o comandante do regime.
Inácio José de Alvarenga Peixoto: Mas nem pensar, eu não falo e nem quero que eles saibam que eu ando metido nisso.
Padre: Esse nosso coronel é frouxo.

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“O cinema histórico de Joaquim Pedro tem personagens que fazem em cena sua autocrítica, com um grande cinismo em relação ao papel que representam.”
Mário Carneiro

domingo, dezembro 09, 2012

Tempestade sobre Washington (Otto Preminger, 1962)



Embora várias vezes tivesse sido chamado de “ditador” e “totalitário” por quem trabalhou com ele, Preminger geralmente deixava que o público formulasse as suas opiniões. As suas tomadas prolongadas em tela panorâmica (ou no formato normal) abrangiam a todos, deixando que o espectador decidisse por si; ele não coloria essas imagens com cortes, que criam imediatamente um ponto de vista. (Otto dizia que, no seu entender, todo corte constitui uma interrupção.) Em geral, Preminger apresenta todos os lados com igual paixão, como bom advogado na defesa do seu cliente, seja culpado, seja inocente; como bom ator – que Preminger também era -, estava sempre do lado da sua personagem. Preminger acreditava fundamentalmente na inteligência do público, não importando os equívocos que ele comete – tanto quanto acreditava no sistema de julgamento por júri popular, não importando os seus muitos defeitos.

Peter Bogdanovich em Afinal, quem faz os filmes?

O filme de Preminger é todo centrado na investigação conduzida pelo senado norte americano para aprovar ou não o novo Secretário de Estado (Henry Fonda) indicado pelo presidente dos Estados Unidos (Franchot Tone). Toda a ação se passa em Washington, com longas tomadas dentro do próprio senado, onde se dá o embate entre as forças favoráveis à sua nomeação e as que o rejeitam. Quando um senador de Utah (Charles Laughton) consegue levantar fortes entraves para derrubar a indicação, parte da bancada se mobiliza para descobrir um podre que o desmoralize.

Desse enredo aparentemente simples, ainda que perfeitamente crível e factível, Preminger esmiúça com habilidade rara o cotidiano da vida política norte-americana: sem rodeios nem romantismos partidaristas, totalmente desprovido de ideologia. Seus personagens estão tão bem construídos e dimensionados que às vezes até esquecemos que se trata de um filme. A veracidade da situação é tão tangível que é o caso de se perguntar: são os nossos políticos que estão bem retratados nos personagens ou são os personagens que representam bem os nossos políticos? Qualquer resposta é aceitável e merecedora de nossa incessante preocupação com essa questão.

A meu ver, Otto Preminger evita uma facilidade recorrente adotada nos roteiros de filmes políticos (ou trillers políticos), ao abrir mão do protagonista íntegro e idealista que vê suas convicções colocadas à prova à medida que seu envolvimento com a causa que pretende combater aumenta. Esse “recurso” costuma proporcionar uma identificação rápida do público com o personagem, porém esconde, na maioria das vezes, uma intenção moralizadora. Mesmo quando bem usado, o que é incomum, é difícil suprimir o sentimentalismo proveniente dessa prática.

Em Tempestade sobre Washington todo mundo têm culpa no cartório (até que se prove o contrário). Embora todos digam o tempo todo que estão a defender os interesses do país (ou a representá-lo), ninguém faz mais do que defender os seus próprios interesses. O que está em jogo é o poder, e como fazer para mantê-lo ou ampliá-lo. É um exercício contínuo de influências, em que cabe manter a aparência afável na superfície e os interesses escusos às escondidas. Mesmo quem tem pouco a esconder, só faz despender energia das investidas mal intencionadas. A parte curiosa do roteiro de Wendell Mayes, adaptado do livro de Allen Drury, é o desfecho reservado aos personagens que lutam pela “causa certa” (ou os “bem intencionados”), como o senador Brigham Anderson (Don Murray), presidente da comissão, que considerava inaceitável o passado comunista do postulante ao cargo de Secretário de Estado (sobretudo pelo fato de ele haver mentido sob juramento), sem saber que seu romance com um marinheiro enquanto servia o exército na guerra promoveria a sua exoneração do cargo (e lhe custaria a vida). Ele não levou a sério o conselho do presidente dos EUA, seu colega de partido, quando este lhe propôs que desconsiderasse esse flerte com o comunismo em seu passado, “we have to make the best of our mistakes” (temos que tirar o melhor dos nossos erros).

A cena do desfecho, totalmente ambientada no senado, é um primor de realização. Embora o destino dos personagens seja selado sob duvidosas circunstâncias (muita coincidência em jogo), é tudo tão bem encenado e conduzido por Preminger que logo esquecemos tratar-se de uma obra de ficção. As coisas se acomodam no melhor estilo happy end hollywoodiano, cabendo a democracia americana os verdadeiros louros da história. Otto Preminger se aprazia disso, “Para mim, é uma história interessante, que mostra o funcionamento do governo americano. O filme contém algumas críticas muito ásperas à forma de governo dos Estados Unidos, e foi ótimo eu ter contado com a liberdade de fazer isso. É notável que o governo permita que um filme desses seja realizado. Esse filme provou para mim que, apesar de tudo o que se ouve, este é na verdade o único país do mundo em que há liberdade de expressão. Nesse sentido, fazer Tempestade sobre Washington foi muito importante para mim.”

sexta-feira, novembro 30, 2012

O Sol Brilha na Imensidão (John Ford, 1953)



O Sol Brilha na Imensidão é menos uma mensagem que a transposição poética de certo realismo social.

Jean Mitry
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Como Depois do Vendaval (John Ford, 1952), O Sol Brilha na Imensidão é uma comédia de costumes, não raro imbuída de elementos da sátira, mesmo ao acercar-se da realidade social e, otimística e pertinentemente, envolvê-la em sua poesia. A Irlanda verdejante e semi-elegíaca de Depois do Vendaval cede lugar à pequena cidade de Fairfield, no interior do Kentucky, onde se desenrola a ação, anos depois de terminada, mas não esquecida pelos “veteranos”, a Guerra Civil. Um desses veteranos é o juiz Priest, homem conservador e bom, que, à frente de sua “brigada”, relembra e cultua os feitos militares dos bravos de Fairfield, tão sacudidos na velhice quanto o foram no campo de batalha – e que está aguardando o pleito que decidirá entre a sua permanência no posto e a eleição de um candidato moço, que faz questão de exibir o seu dinamismo por meio de uma propaganda “moderna”, tão estridente quanto demagógica.

O filme é o relato sempre fascinante do que ocorre nos dias que precedem a eleição, quando a generosidade e o sentimento de justiça de Priest o vão impelindo a tomar as atitudes mais impopulares, como impedir o linchamento de um negro acusado de estupro de uma menina branca e, a seguir, receber em sua residência a dona do prostíbulo local, que vem solicitar-lhe ajuda no que diz respeito ao enterro cristão, a que também tinha direito uma prostituta. O sentimentalismo que se descobre nessa história é o mesmo que existe, ora ultrapassado pelo sentido épico, ora controlado pela “malícia irlandesa”, em quase todas as obras de Ford. O cineasta não teme, nem o repele – até o aprecia. E sabe fazer com que também o espectador o aprecie.
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Há muitas cenas dignas de menção – a da sessão do tribunal que o juiz transforma em sessão de “Dixie”, acompanhando com uma corneta o banjo do réu (U.S.) e a gaita de seu criado (Fetchit); a chegada da mãe de Lucy Lee ao povoado. Mas as duas sequências mais trabalhadas, ambas excepcionais, são: 1) a do pânico dos negros ante a aproximação da turba de linchadores brancos, na qual Ford usa, numa sucessão cadenciada de close-ups, cinco negros apenas, que lhe dão dez imagens – estabelecendo com a décima primeira, que focaliza Fetchit correndo, a ligação do incidente com o juiz Priest, que, advertido pelo criado, vai postar-se à porta da cadeia, onde enfrenta sozinho a multidão enfurecida; 2) a do enterro da prostituta, que corta a rua principal de Fairfield, interrompendo o comício do candidato renovador, com Priest acompanhando à pé o carro fúnebre, e, atrás, na carruagem de aluguel do preto Zac (Clarence Muse), Mallie Crump e suas “moças”, todas de luto. Ao escândalo que o fato provoca, sucede o inesperado: o general da União (Henry O’Neill) entra no cortejo, ao lado de Priest, e, pouco a pouco, a fila se vai tornando maior, com a solidariedade dos “veteranos”, dos negros, da respeitável Mrs. Ratchitt (Jane Darwell). É uma sequência memorável, pontilhada de um humor que conduz a platéia da lágrima ao riso – e que prossegue na igreja, onde o juiz, assumindo o lugar do pastor, relê o trecho bíblico da mulher adúltera.

Antônio Moniz Vianna

quarta-feira, novembro 28, 2012

Cosmópolis (David Cronenberg, 2012)



Faz pouco menos de uma semana que vi Cosmópolis e ainda estou tentando digerir a experiência. Num primeiro momento achei o filme OK, levemente desconfiado do clima de celebração com que a crítica brasileira abraçou a causa, repleta de elogios maiores. Cada dia que passa, contudo, o filme cresce na minha memória, e aos poucos a imagem da limusine-caixão com seus personagens tortos e bizarros começa a ganhar forma. Uma forma disforme é verdade, mas plenamente sintonizada com os dias de hoje.

Embora eu goste dos relatos mais sóbrios a respeito da crise financeira que nos assola, Wall Street: O Dinheiro Nunca Dorme (Oliver Stone, 2010), Margin Call – O Dia Antes do Fim (J.C. Chandor, 2011) e Trabalho Interno (Charles H. Ferguson, 2010), sendo menos do primeiro e bem mais dos dois últimos, desconfio que o lirismo sombrio de Cosmópolis seja mais apropriado para descrever a insanidade e irracionalidade de certo comportamento característico contemporâneo, não circunscrito apenas ao métier dos financistas. Curioso é que o livro de Don DeLillo, que foi fielmente adaptado por Cronenberg para o cinema (observação feita por quem leu o livro), foi escrito em 2003, bem antes da quebradeira generalizada. A contra capa do exemplar editado pela Companhia das Letras tem uma passagem categórica, “A história revela mais do que a falta de sentido de uma existência individual: ela aponta para o caráter perigosamente ilusório das bases que sustentam o mundo contemporâneo”.

A crítica de Pedro Henrique Ferreira para a Revista Cinética é precisa e contribuiu sobremaneira pra estabelecer a minha conexão com o filme. Vale uma conferida. Abaixo, rascunho algumas passagens que me chamaram a atenção.


-        o travelling da cena de abertura é primoroso: o movimento de câmera se assemelha ao de um réptil rondando a limusine, palco de toda a narrativa.

-        na primeira cena ambientada dentro da limusine Eric Parker (Robert Pattinson) conversa com o jovem Shiner (Jay Baruchel). O que se vê pelas janelas do automóvel mais parece uma projeção em slide digital, que ao serem sobrepostas aos rostos dos atores, resulta totalmente fake. O efeito é o mesmo das tomadas feitas em interiores de veículos nos filmes das décadas de 40 e 50. De início, pensei que fosse um problema da projeção da sala de cinema. Só entendi o propósito da questão quando a limusine emparelha com um taxi e Eric Parker visualiza sua esposa sentada no banco de trás do veículo vizinho. Chega a ser surreal o momento em que ele abre a porta da limusine para encontrá-la e nos damos conta de que o mundo visualizado pela janela do automóvel é palpável. É um choque visual. Uma verdadeira televisão digital sintonizada 24 horas por dia com o mundo exterior.

-        Cronenberg parece bem à vontade com o material, resgatando a estranheza dos personagens que ele já desenvolvera em outras oportunidades: Crash – Estranhos Prazeres (1996), Mistérios e Paixões (1991) e no ato final de Marcas da Violência (2005). Samantha Morton, como Vija Kinsky, é a única lúcida de toda a trupe. Ela destoa do restante. É justamente no discurso dela que o espectador encontra um porto seguro, uma referência confiável para estabelecer as devidas relações pretendidas pelo roteiro. A sua prosa é que estabelece a ligação entre o universo dos magnatas e o dos meros mortais – a relação de causa e efeito que culmina na violência. Não é por acaso que a limusine sofre um ataque do “mundo externo” enquanto ela se encontra em cena. Ela coloca todo ser humano na mesma condição, ampliando o âmbito da questão além da mera disputa de classes. A derrocada de Eric Parker começa depois de sua conversa com Vija Kinsky. Um discurso poderoso que estabelece o vértice compreensivo do filme.

-        a cena no barbeiro é ótima. De alguma forma Cronenberg consegue inserir no espaço elementos que transmitem uma sensação de segurança ao protagonista, um conforto aparente, ilusório, que o prepara para o confronto final. É o único momento em que o segurança (ou motorista) que faz a sua escolta abre a guarda e o seu discurso não se reduz a poucas linhas que só fazem aumentar o desconforto do protagonista.

-       Psicopata Americano (2000), de Mary Harron, me veio à cabeça durante boa parte da projeção. Não que seja um filme que eu aprecie, muito pelo contrário, é que a semelhança entre os dois protagonistas é muito grande (ao menos, ambos habitam o "mesmo mundo”). A diferença crucial entre os filmes - e é justamente a parte que cabe ao cinema - é que Cronenberg consegue ambientar bem melhor o seu longa-metragem. O “mundo externo” é palpável em Cronenberg e influencia o seu protagonista – ele interage com ele por meio da janela da sua limusine (são as imagens que chegam a nós). Embora Patrick Bateman (Christian Bale) leve o mesmo tipo de vida que Eric Parker, o seu apartamento asséptico e totalmente impessoal não comporta toda essa grandeza, dimensão ou significância. O “mundo externo” em Psicopata não chega a nós, é inexistente, apenas intuído, e isso faz toda a diferença.

quinta-feira, novembro 15, 2012

Cara ou Coroa (Ugo Giorgetti, 2012)



Se dependêssemos da abordagem recorrente que o cinema nos legou dos anos de fogo da ditadura, seriamos levados a pensar que a vida não passava de um engenhoso roteiro de filme policial norte americano: tudo terminava em perseguições, traições e torturas. No intuito de criticar a postura governamental da época e ajustar contas com os excessos praticados pelos milicos, o cidadão comum ficava sempre relegado ao segundo plano (quando não ao terceiro, quarto,...). Nesse contexto, os personagens retratados mais pareciam ativistas políticos de formação - em constante exercício de suas convicções - sem interesse algum pelo que girava fora da esfera do enfrentamento ideológico vigente. Eu, que nasci nesse período, em 1977, sempre tentei imaginar como era a vida dos meus pais na capital paulista no início dos anos 70, muito certo de que suas trajetórias não moldaram nem refletiram a dos personagens que fizeram fama na ocasião.

Pois bem, Cara ou Coroa (2012), de Ugo Giorgetti, praticamente centrou o foco da sua narrativa no comportamento dessas pessoas comuns, e de lambuja criou um dos mais interessantes, honestos e calorosos retratos do cidadão médio brasileiro durante o período ditatorial. Talvez seja o relato mais fiel do que, de fato, tenha sido viver naquele momento. Entre perseguições, traições e torturas, as pessoas planejavam, aspiravam e sonhavam, em suma, viviam. Havia tempo para um café da manhã, uma cervejinha, assistir à televisão, um namoro, etc. Nem tudo se resumia a maquinações ou paranóias, muito embora os seus efeitos fossem compartilhados até mesmo por aqueles que não estavam formalmente envolvidos com a causa (seja ela pró ou contra). Desse rol de caracterizações criadas por Giorgetti destaca-se o general aposentado vivido por Walmor Chagas e, sobretudo, o taxista vivido por Otávio Augusto. Ambos gozam de pouco tempo em cena, mas deixam a impressão definitiva sobre o longa-metragem.

Existe algo de ridículo no retrato do taxista direitista que financia a contragosto a peça do sobrinho “comunista” e ainda alimenta expectativas de reaver o dinheiro investido. O relato de suas impressões sobre a noite de estreia da peça é impagável e reflete com precisão cirúrgica a aversão às manifestações culturais difundida a partir do Ato Institucional № 5. Tudo o que era ousado ou desafiador tornou-se ultrajante, sem mais nem menos. Daí que a cultura marginalizou-se (mas isso é outra história). Giorgetti ainda faz o milagre de nos conduzir ao exato momento em que Paulo Maluf representava uma real possibilidade de mudança – situação essa favorecida pelo clima asfixiante imposto pela repressão ditatorial. A cena, curta e grossa, e de uma ironia fina, vale um filme inteiro.

domingo, novembro 11, 2012

Isto Não é um Filme (Jafar Panahi e Mojtaba Mirtahmasb, 2011)



Jafar Panahi: Sei lá, talvez eu esteja tentando passar o tempo. Sinto que estamos aqui criando uma mentira. Como naquela primeira sequência que fizemos, o resto também será uma mentira, não importa o que façamos. Veja o filme O Círculo, por exemplo. 
Mojtaba Mirtahmasb: Mas você não pode fazer um filme agora. 
Jafar Panahi: Por isso pedi para você me filmar. Acha que será um grande filme? 
Mojtaba Mirtahmasb: Bem, você me disse... 
Jafar Panahi: O que eu disse? 
Mojtaba Mirtahmasb: Me pediu para eu vir aqui. Disse que tinha filmado um pouco e que tinha ficado ruim. Jafar, você está esperando a confirmação do veredito por causa do filme que estava fazendo. Pode ficar 6 anos preso e 20 anos proibido de trabalhar. 
Jafar Panahi: E daí? 
Mojtaba Mirtahmasb: O que estamos fazendo não deixa de ser cinema. O que estamos fazendo agora. 
Jafar Panahi: O que? 
Motjaba Mirtahmasb: Este filme que estamos fazendo. 
Jafar Panahi: Chama isto de filme? 
Motjaba Mirtahmasb: Não sei. Você é quem sabe.

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Jafar Panahi: Como posso expressar o que eu quero? Não é possível. Vamos continuar. Talvez meu humor melhore. Vamos ver o que dá pra fazer.

Por Filipe Furtado (03/12/11)

É um tanto inevitável que Isto Não é Um Filme receba o valor de um evento, mas há duas características contraditórias muito interessantes na sua recepção. Primeira há a supressão quase completa de Mojtaba Mirtahmasb, o amigo documentarista de Jafar Panahi que co-dirigiu o filme com ele. Muitos anos atrás escrevi para um site americano um artigo (sobre McG e Kiarostami) chamado autorismo na era do supermercado; quando se nota que na crítica do Ricardo Calil na Folha de hoje não se menciona a existência de Mirtahmasb (inclusive vale dizer nas informações de serviço no pé do texto!) percebe-se exatamente como uma idéia de autorismo é sutilmente cooptada por uma lógica de mercado. De Isto Não é Um Filme importa sobretudo a figura de Panahi cineasta algo conhecido no ocidente cuja situação atual desperta nas platéias do circuito de arte uma grande curiosidade. O que é muito interessante nisso é justamente o outro dado que me parecer merecer destaque: o filme que é vendido até nos numa lógica em que é natural suprimir a co-autoria de Mirtahmasb, é muito mais o filme que interessa ao próprio Mirtahmasb do que ao Panahi. É o amigo que procuro o tempo todo guiar Isto Não é um Filme na direção da denuncia enquanto o próprio Panahi tem outras preocupações. A grande força de Isto Não é um Filme é justamente de que ele não é um filme de Jafar Panahi ou de Mojtaba Mirtahmasb, mas uma obra conjunto em que ambas as partes o tempo inteiro estão em troca de olhares e concessões. A potência política do filme vem justamente de que sua denuncia existe não como lamento de uma situação, mas em meio a uma troca de diálogos de dois artistas que concorda sobre muita coisa, mas não tem necessariamente a mesma idéia de qual filme fazer sobre aquele tema. Panahi não é só um artista desafiando um regime autoritário quando pega sua câmera, mas um que esta no processo nos mostrando o exato oposto deste regime. A lógica do nosso circuitinho como supermercado porém não tem nenhum interesse disso a sua maneira ela não deixa de ser extremamente autoritária. Nada surpreendente já que ao mercado, qualquer mercado, nunca interessa a política.

segunda-feira, outubro 29, 2012

John Carpenter


Enquanto eu aguardo ansiosamente a chegada do meu primeiro filho, o que me forçou a abdicar da Mostra de São Paulo desse ano, tenho procurado acompanhar a cobertura do evento nos diversos blogs e sites especializados listados neste espaço. Como de hábito, a oferta é vasta. É estimulante ler o relato do Rafael Carvalho, blogueiro do Moviola Digital, que se deslocou de Salvador pela primeira vez para acompanhar a maratona na capital paulista. Não há como não se contagiar pelo entusiasmo da descoberta: da Mostra, de São Paulo, das sessões, dos cinemas, dos filmes. Mesmo pra quem frequenta o evento há algum tempo, a despeito das inevitáveis decepções, é sempre revigorante vivenciar todo esse frisson novamente. Nem que seja por intermédio de outros.

Snake Plissken (Kurt Russel) em Fuga de Los Angeles (1996)

A redenção

Na minha última visita a capital, há três semanas, tive a sorte de pegar dois filmes da mostra John Carpenter que passava no Cinesesc – o Festival do Rio homenageou o diretor com uma retrospectiva de seus filmes e disponibilizou as cópias para exibição no Cinesesc de São Paulo por uma semana. Confesso que nunca nutri o devido apreço pela obra do diretor chegando até mesmo a desmerecer ocasionalmente parte do prestígio que a crítica sempre lhe conferiu. Passado o período de contestação e desconfiança veio o momento de aproximação e reconhecimento: o velho preconceito que insiste em dar as caras mesmo diante das incontestáveis evidências de sua excelência.

Curiosamente, esse ano marcou minha aproximação definitiva do universo não só de Carpenter, mas também de Cronenberg e Romero, cujas carreiras foram descritas por Olivier Assayas como “o análogo cinematográfico do punk rock” - citação do blog do Filipe Furtado. “Para além de todos os clichês a respeito das longas deambulações, do realismo e dos tempos mortos que geralmente anima comentários sobre este cinema, há um forte elemento de filme de horror que passa por boa parte deles”, sugere Furtado ao aproximar a atmosfera de Água Fria (Olivier Assayas, 1994) do cinema de horror produzido na América do Norte (Carpenter, Cronenberg, Romero). O terror de que eles se servem está muito longe daquele que domina as produções mais comerciais de hoje em dia. O gênero para eles nada mais é do que a moldura sob a qual suas ideias serão dispostas. Esse formato, que atende a convenções específicas, não limita nem tampouco impede que essas ideias sejam convenientemente trabalhadas. Pelo contrário, ele até potencializa seus efeitos - seu emprego não raro vem associado da ironia, resultando cômico sem nunca perder o viés crítico.

“Na França, sou um autor. Na Inglaterra, um diretor de filmes de gênero. Nos Estados Unidos, um vagabundo.” Essa cáustica autodefinição resume o desacordo entre John Carpenter e a indústria norte-americana (blog do José Geraldo Couto) e é o retrato perfeito de um de seus melhores personagens (e também alter ego): Snake Plissken (Kurt Russel) em Fuga de Nova York (1981) e, sobretudo, Fuga de Los Angeles (1996). Ele é um outsider, um outlaw, um vagabundo que só vê seus serviços serem contratados quando não há mais ninguém a quem recorrer. Na ordem, ele é dispensável; no caos, ele é valioso. As instituições, como de hábito em Carpenter, não são confiáveis, restando aos marginalizados a tarefa de restaurar a ordem. O grau de descrença do diretor em Fuga de Los Angeles é tamanho que não há como diferenciar o presidente dos EUA (Cliff Robertson) do terrorista Cuervo Jones (Georges Corraface), sendo a única solução cabível definitiva para o dilema moral que nos acomete o desligamento de todas as fontes de energia do planeta. A única crença possível é a de que pra arrumar a desordem de vez só começando do zero. Carpenter empilha referências do western e do policial filmando com o mesmo rigor e desenvoltura de um de seus maiores mentores: Howard Hawks.

Enfim, blockbuster com classe e elegância, diversão e entretenimento de qualidade, cada vez mais raro nos dias de hoje.

Dark Star (1974) foi uma agradável descoberta, um filme que eu desconhecia completamente. É a prova cabal de que a combinação de parcos recursos com muita criatividade pode render bons frutos. O embrião da obra de Carpenter já se encontrava todo germinado nessa produção.

segunda-feira, outubro 22, 2012

Rio Zona Norte (Nelson Pereira dos Santos, 1957)




Por Sérgio Alpendre

A cena já foi muito mostrada em especiais e homenagens, mas nunca é demais lembrar: Grande Otelo como Zé Keti começa a mostrar um samba de sua autoria para Angela Maria. Em determinado momento, ela começa a cantar junto, lendo a letra num pedaço de papel e colocando sua voz bem do jeito que Zé Keti havia sonhado. A câmera prontamente acompanha a surpresa e o encantamento do sambista ao ouvir a voz de sua diva, com a feição de Grande Otelo mudando de maneira arrepiante. Além de ser um momento luminoso da carreira dele, momento que prova, como se precisasse, que ali havia um ator completo e capaz de dar o máximo de si na mais rasgada comédia ou no mais choroso melodrama, ainda mostra a habilidade de Nelson no tempo de reação do personagem. Ali nascia um diretor preocupado com as mínimas nuances que seus atores poderiam apresentar. Ali a vida parecia muito maior do que seria capaz caber num filme, como sugere a cena em que Zé Keti recebe, feliz, o vento em seu rosto, partindo de trem para uma outra etapa de sua trajetória.

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A Mostra Nelson Pereira dos Santos continua no Canal Brasil com a exibição de 18 filmes remasterizados de sua autoria. A programação acontece todas as terças por volta de meia noite e quinze. Como a obra do diretor não está disponível em DVD, a não ser por alguns poucos títulos mais recentes de sua filmografia, essa é a melhor oportunidade para conferir a sua rica produção.

sexta-feira, outubro 12, 2012

Tropicália (Marcelo Machado, 2012)



Eu seria muito desonesto se atribuísse o meu apreço inicial pelas músicas de Caetano Veloso e Gilberto Gil no início dos anos 90, período em que eu entrava na adolescência, ao aspecto experimental e inventivo que caracterizou o movimento tropicalista no final da década de 60. O que me levou a elas – e imagino que o mesmo se passe com outros marmanjos de plantão – foi a influência de um namoro na ocasião. Sendo assim, minha relação com essas músicas era de ordem meramente afetiva, ainda sem o interesse despertado para a reflexão (proporcionado pelas letras e o comportamento dos artistas). Eu levei um bom tempo pra digerir e entender a dimensão da influência do tropicalismo na música popular brasileira, que configura a parte mais óbvia do movimento, e só agora, com o lançamento de Tropicália (o filme), é que ficaram mais claras suas reverberações pelas artes plásticas (Helio Oiticica), o cinema (Glauber Rocha) e o teatro brasileiro (José Celso Martinez Côrrea). Em suma, evidenciaram-se os reflexos de sua contribuição na vida cultural do nosso país. O maior mérito do filme, entre os inúmeros que o qualificam, é deixar bem claro que a transformação que estava em curso era sobretudo imagética, sustentada pela incipiente e por vezes ousada programação televisiva.

Desde esse período que estabelece meu primeiro contato com os artistas baianos, os dois músicos, especialmente Caetano Veloso, colecionaram uma legião de detratores e patrulheiros de plantão, fruto do desgaste natural de suas obras (envelhecimento talvez?) bem como da exposição excessiva a que se sujeitaram nos meios midiáticos, forçando-os a opinar sobre tudo e sobre todos como autênticos doutores – eu não consigo me lembrar de um documentário musical recente em que o depoimento de Caetano Veloso não tenha sido levado em consideração! Além disso, em meados dos anos 80 as carreiras de ambos já não gozavam da mesma força e intensidade de outrora e o rock vigente contestatório é que dava as cartas na mesa. Dessa fase em diante, que estabelece o último suspiro da música popular brasileira – a não ser por uns momentos isolados (ex: Chico Science) -, o nível do que apareceu no mercado só veio ladeira abaixo.

Nesse cenário de opiniões extremadas e divergentes, de duas forças quase opostas que duelam ora para defendê-los, ora para enfraquecê-los, não deixa de ser mais do que oportuno o aparecimento de Tropicália (o filme). E, antes que continuemos, é importante que se faça justiça ao realizador e aos protagonistas: resultou num puta filme. Ele desarma o espectador mais desconfiado possível a ponto de não haver uma alma viva, seja defensor ou detrator, que não se emocione com Caetano Veloso cantando Asa Branca (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira) em pleno exílio forçado em Londres – o trecho veiculado no filme, disponível no YouTube, é um especial para a TV francesa. Vê-lo aleatoriamente na internet já é emocionante, o que o diretor Marcelo Machado faz é situá-lo dentro do contexto da obra de Caetano Veloso, e por consequência do movimento tropicalista, num crescendo narrativo poderoso e envolvente que culmina com esse momento antológico. Basicamente, ele devolve a esse instante, e aos demais que pontuam a trajetória do movimento, toda a sua razão de existir. Ele desconstrói pra reconstruir. Está tudo lá: Caetano e Gil, Gal Costa e Maria Bethânia, Tom Zé e Os Mutantes, o maestro Rogério Duprat, o cinema de Glauber e Sganzerla, o Meteorango Kid de André Luis Oliveira e o Hitler, III˚ Mundo de José Agripino de Paula, os parangolés de Oiticica, o teatro de Zé Celso, as letras de Torquato Neto, etc.

Os depoimentos permanecem em voice off por quase toda a extensão do filme, pontuados por imagens de arquivo oriundas da programação televisiva, até que se instaura o Ato Institucional - N˚5, quando interrompe-se o ritmo alegre que prevalecia até então, e os entrevistados, de corpo presente em registros contemporâneos, aparecem iluminados contra um pano de fundo preto. Esse rompimento de ritmo, intencional, estabelece o momento em que o movimento começa a enfraquecer-se diante das perseguições e censuras impostas pelo governo ditatorial. O que mais impressiona é a lembrança do que fica depois de findada a sessão. Embora a maior parte das imagens seja em preto e branco, a energia que emana delas é tão presente e impetuosa que as recordamos como se estivessem em cores.

O Heitor Augusto abre a sua resenha do filme na Revista Interlúdio com um resumo certeiro de sua proposta, “Além do óbvio apelo musical, Tropicália mostra mais força ao mapear como os encontros de personalidades e propostas musicais diversas refletiam o humor de uma juventude que tencionou as relações e apontou as caretices”. Termina fazendo um comparativo entre os documentários musicais que de uma forma ou de outra abordaram o efervescência criativa do período, “Como narrativa cinematográfica, vejo este filme assumindo mais riscos do que Uma Noite em 67. Mesmo assim, não é preciso negar um para afirmar o outro. Uns preferem a teleobjetiva, como Loki – Arnaldo Baptista; outros, uma lente com campo de visão um pouco maior, casos de Uma Noite em 67 e Fabricando Tom Zé; tem também os que falam do Tropicalismo sem necessariamente colocá-lo no centro, como Simonal – Ninguém Sabe o Duro que Dei; vale registrar os que vêm na esteira do tencionamento comportamental, como Dzi Croquettes.

Num espectro mais amplo de análise, ainda considerando-se a recente leva de documentários musicais produzidos no Brasil, acredito que o único capaz de fazer frente à Tropicália seja O Homem que Engarrafava Nuvens (2009), de Lírio Ferreira. Ainda que ambos sejam favorecidos pelos seus incontestáveis objetos de pesquisa, a Tropicália no primeiro e o compositor Humberto Teixeira no segundo, nenhum outro traçou um panorama tão apaixonante e fecundo da música popular brasileira como esses. Além disso, ambos são extremamente eficazes ao despertarem um sentimento que raramente nos habituamos a provar: o orgulho genuíno de ser brasileiro.

domingo, setembro 30, 2012

O Eclipse (Michelangelo Antonioni, 1962)




Abro a Folha de S.Paulo de ontem, 29 de setembro, e me deparo com um texto de Cassio Starling Carlos prestando uma homenagem ao centenário de nascimento do cineasta italiano Michelangelo Antonioni. Infelizmente, por mais esforço que eu faça, minha memória associativa insiste em se apegar melhor à data do seu falecimento, 30 de julho de 2007. Pra todos os efeitos, tendo a acreditar que não carrego sozinho essa triste lembrança, já que, coincidentemente (e põe coincidência nisso!), os cinéfilos do mundo inteiro se viram órfãos dele e de Ingmar Bergman no mesmo dia - dois dos maiores pesos pesados do cinema de todos os tempos. Por menos que eu queira, não dá pra esquecer essa data com tanta facilidade. Seja pelo nascimento ou pelo luto, nunca é tarde para se prestar homenagens (no meu caso, entenda-se assistir aos filmes).

Embora as fartas homenagens que Cassio descreveu em seu texto se passassem em Ferrara, cidade natal do diretor, mesmo estando distante do epicentro das celebrações, seus filmes encontram-se mais próximos de nós do que nunca. Sendo assim, coloquei pra rodar o DVD recém-adquirido da Versátil de O Eclipse (1962), o famoso desfecho da “trilogia da incomunicabilidade” que me faltava. Procurei registrar algumas notas esparsas de minhas impressões a respeito do filme, desconsiderando as já exaustivamente analisadas sequências da Bolsa de Valores e do desfecho. Em seguida, transcrevo a narração de Martin Scorsese correspondente ao segmento do filme em Il mio viaggio in Italia (1999).

A minha parte

- ao longo do filme adentramos quatro apartamentos: 1) o da abertura, 2) o de Monica Vitti, 3) o da vizinha africana e 4) o de Alain Delon. O único que “tem vida” e desconcerta a protagonista é o da africana, com seus quadros etnográficos e fauna característica. A composição desse ambiente destoa de todo o entorno moderno que cerca os protagonistas do filme. É o registro mais pessoal do longa. Em todos os outros apartamentos, incluindo o seu, é perceptível o seu desconforto, especialmente no recanto fúnebre de Delon. Seu impulso é o de abrir todas as cortinas, a fim de arejar as conflitantes ideias;

- a viagem de avião sobrevoando Roma, ao nível das nuvens, bem distante do amontoado de gente que se aglomera nas ruas;

- a flor que o especulador arruinado desenha em um guardanapo em um momento de puro desespero;

- o olhar desiludido de Monica Vitti quando Alain Delon se mostra mais preocupado com a carroceria do seu carro do que com o bêbado morto dentro dele (o close do olhar de Delon no decote de Vitti), e como o espetáculo do acidente é capaz de atrair uma manada de desocupados e enxeridos;

- a caneta que Vitti encontra no apartamento de Delon estampando uma mulher que ora se apresenta vestida, ora desnuda – o efeito é extraordinário e denota a banalização da figura da mulher, como um mero objeto de desejo (sexual), recorrente na obra do diretor;

- a barreira física que separa os dois protagonistas nas imagens que abrem o post é a representação perfeita da impossibilidade do encontro.

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By Martin Scorsese

“L’Aventura” was the first film in a trilogy and each of this three films Antonioni was working through new cinematic possibilities – emotional, visual, thematic. The middle film was “La Notte” with Marcello Mastroianni and Jeanne Moreau and the third film, “Eclipse”, was the boldest. At that time all around the world directors were trying new things expanding the possibilities of cinema: Jean-Luc Godard with “Breathless” and “My Life to Live”, John Cassavetes with “Shadows”, Luis Bunuel with “Veridiana”, Ingmar Bergman with “The Silence” and “Persona”, Glauber Rocha with “Antonio das Mortes”, Shohei Imamura with “The Insect Woman” and Alain Resnais with “Hiroshima Mon Amour” and “Last Year at Marienbad”. It seemed like every week someone was taking things a little bit further topping their last movie. In retrospect, I suppose that they were all influencing and provoking each other and spurring each other on.

I remember how excited we all were when we first saw “Eclipse”. It was a real step forward in storytelling. In fact, it felt less like a story and more like a poem. Eclipse is about a Milanese woman played by Monica Vitti who has an affair with a young stockbroker played by Alain Delon. Even more than the characters in “L’Aventura” these people are lost. They’re trying for intimacy but they can never really connect. Antonioni accentuates the impersonality of the world around them. Real love seems like an impossibility there. It’s like trying to grow flowers through concrete. People can bearly even take the time to mourn the loss of a business colleague. The rhythm of life in the material world just doesn’t allow for it. Antonioni once said: “I’m looking for the traces of feeling in men. The traces of felling and emotions in modern life.” If you really concentrate on his films you sense those traces. And you see what lies beneath Antonioni’s detachment. Compassion.

The couple always meet at the same spot on the corner under a tree near a building under construction which is surrounded by modern housing developments. One day, they make a plan to meet. They’re both trying to keep the relationship going but they’ve simply lost the will to commit. And neither of them shows up. But the film goes on. You keep expecting something dramatic to happen and it never does. Instead, Antonioni’s câmera keeps showing us things – the things around Delon and Vitti. The fence, the piece of wood floating in the barrel of water, the lines of the crosswalk. The construction site. It’s not as simple as “life goes on” which means that people go on. At the end of “Eclipse”, Antonioni leaves us with nothing but time staring back at us. The world becomes a kind of shell around the absence of these two people who have failed to meet. In other words, it’s not what’s there, it’s what isn’t there. It’s a frightening way to end a film, but at the time it also felt liberating. The final seven minutes of “Eclipse” suggested to us that the possibilities in cinema were absolutely limitless.

sábado, setembro 22, 2012

Dia dos Mortos (George Romero, 1985)

Bud (Howard Sherman)


Houve um período em meados dos anos 80 e 90 em que era comum uma brincadeira – mais um teste na verdade, desses que surgem vez ou outra alegando condensar toda a nossa psicologia comportamental - em que se supunha que o mundo estava prestes a extinguir-se e, sem que soubéssemos a razão, seríamos os responsáveis por eleger um pequeno grupo de pessoas que, uma vez nomeadas, seriam imediatamente dadas como salvas. O que estava em jogo na brincadeira era: em um ambiente repleto de adversidades, em que cabe a alguns poucos indivíduos a responsabilidade de retomar (ou melhor, perpetuar) a vida na Terra, que tipo de conhecimento tem mais valia?

Pois bem, George Romero sempre flertou com esse tipo de situação em seus projetos, com variações formidáveis de conteúdo, chegando ao ápice da sua exploração em O Dia dos Mortos (1985) – alguns dirão, numa briga saudável e bastante interessante, que talvez seja O Exército do Extermínio (1973). O Dia dos Mortos compõe junto com A Noite dos Mortos Vivos (1968) e O Despertar dos Mortos (1978) a famosa trilogia dos zumbis, cujos roteiros resumiam-se basicamente a criaturas (mortos vivos) aterrorizando um pequeno grupo de pessoas com temperamentos e atitudes diversos. O foco da narrativa é todo voltado para o grupo. Em todos os três exemplares, bem como nas ramificações subsequentes (Terra dos Mortos, Diários dos Mortos), a ameaça está mais presente nos vivos do que nos mortos. A partir desse grupo, ou melhor, da interação dos seus integrantes, Romero tece um comentário ácido sobre a sociedade americana das décadas de 60, 70 e 80, sob a ótica particular de cada período: o racismo, o movimento pelas liberdades civis e o colapso do núcleo familiar dominam as relações em A Noite; a mentalidade capitalista, do consumo irrefreável, perfeitamente representada na locação do Shopping Center é o alvo de O Despertar; e o militarismo demente, insano, como única alternativa para arrefecer os ânimos das partes discordantes é a joia de Dia dos Mortos.

Em Dia dos Mortos, Romero introduz um novo grau de complexidade às relações pouco amistosas entre os zumbis e os vivos. Por meio de dois personagens, Dr. Logan (Richard Liberty) e Bud (Howard Sherman), o diretor recria, com o humor cáustico que lhe é característico, a figura de Frankenstein. Enquanto o cientista realiza experimentos com os zumbis a fim de reverter a “maldição” que os acomete, acaba se afeiçoando a uma das criaturas que responde aos seus estímulos, Bud. O ceticismo dos militares, que preservam a integridade física dos cientistas das investidas dos zumbis, gera a insegurança responsável pela adoção da política da linha dura, em que fala mais alto quem tem mais munição. O conhecimento é tratado como mercadoria de segunda e é sobrepujado pela força física, ou melhor, pelo arsenal de armas à disposição. O desfecho dessa briga de forças é irônico e antológico – muito bem ilustrado pela imagem que abre o post.

domingo, setembro 09, 2012

SANFIC e Raúl Ruiz



Duas semanas de férias no Chile com muito frio, chuva e uma esposa grávida de sete meses e meio contribuíram para que eu não interrompesse minhas habituais idas ao cinema. Coincidentemente, durante a minha estadia, Santiago sediava a oitava edição do seu festival internacional de cinema, o SANFIC – Santiago Festival Internacional de Cine. Ao contrário da mostra paulistana, o evento se resume a apenas uma semana de exibições com um número de sessões que não chega a somar cem. Boa parte das atrações internacionais já havia passado pelo nosso circuito como L’Apollonide (2011), de Bertrand Bonello e O Garoto da Bicicleta (2011), dos irmãos Dardenne, e algumas outras como Tabu (2012), de Miguel Gomes e Moonrise Kingdom (2012), de Wes Anderson, ainda inéditas por aqui, aguardam a Mostra de São Paulo que se avizinha. Muitos filmes latino-americanos na grade de programação, mas nenhum brasileiro - inclusive o vencedor como Mejor Película do festival foi o argentino Los Salvajes (2012), de Alejandro Fadel (roteirista habitual de Pablo Trapero). Meus esforços, que não foram tantos assim, se concentraram numa pequena retrospectiva do recém-falecido diretor Raúl Ruiz e em dois filmes chilenos, um dos quais o badalado No (2012), de Pablo Larraín.

Embora reclamemos constantemente do circuito nacional de exibição, o chileno se entrega com muito mais afinco ao cinemão norte-americano. Tanto que na semana seguinte a realização do evento, não fosse a Cineteca Nacional, localizada no imponente Palacio de La Moneda, as alternativas não passavam dos Batmans, Spider-mans e afins. Na própria programação da Cineteca, representante oficial do circuito alternativo, ainda figurava A Pele que Habito (Pedro Almodóvar, 2011). Nesse sentido, o slogan do SANFIC pareceu-me ser o mais honesto possível: SI NO LA VES EN SANFIC, NO LA VAS A VER. O mesmo espaço já anunciava a exibição da cópia zero bala de O Poderoso Chefão (Francis Ford Coppola, 1972), a mesma que rolou na Mostra de São Paulo de 2008.


Cómedia da Inocência (2000), Raoul Ruiz

Meu primeiro Raúl Ruiz – por ser um filme da fase francesa ele assina como Raoul Ruiz. Nada como estrear um autor com a mesma plateia do seu país de origem. Ruiz é respeitadíssimo no Chile. Começa como uma elaborada narrativa sobre a infância, com foco no personagem infantil e toques singelos de espiritismo, e aos poucos envereda para uma crônica perspicaz sobre a maternidade, em que brilha a atriz Isabelle Huppert. A primeira cena, um almoço no qual o garoto é repreendido em pleno aniversário com comentários desdenhosos sobre sua produção artística – vídeos caseiros -, estabelece toda a base narrativa para as revelações e desdobramentos que virão a seguir. Lembrou-me muito (de memória) a primeira cena de Ensaio de Um Crime (1955), de Luis Buñuel, na sua rara habilidade para criar as bases psicológicas e narrativas que irão sustentar todas as manifestações dos personagens (sobretudo do protagonista). A casa é um personagem à parte, um organismo vivo, sem o qual o filme não seria o mesmo. Sua utilização como espaço cênico é digna de registro, verdadeiro trabalho de gênio. O roteiro é repleto de pistas falsas e Ruiz é hábil ao nos puxar o tapete sempre que manifestamos nossas irrefutáveis certezas. Ironia fina em desuso.


No (2012), Pablo Larraín

No Violeta Foi para o Céu (Andrés Wood, 2011) representam as duas grandes vedetes do cinema chileno esse ano. No é bem melhor e tem evoluído quase diariamente na minha estima. Registra a clássica batalha política partidária que caracteriza qualquer processo eleitoral moderno – ao fazer uso das imagens para compor a identidade (questionável) dos candidatos. Quando o ditador militar Augusto Pinochet se vê pressionado pela comunidade internacional em 1998, depois de 15 anos à frente do poder, convoca um plebiscito para garantir sua permanência no cargo. Os líderes da oposição, por sua vez, convencem um atrevido e criativo agente publicitário, René Saavedra (Gael García Bernal), para encabeçar a campanha do No – contra a permanência. Com recursos limitados e sob o constante escrutínio dos vigilantes do déspota, Saavedra e sua equipe elaboram um plano audaz para ganhar a eleição e liberar o seu país da opressão. O tom acertadíssimo que Larraín emprega é o da comédia de humor negro – apesar da gravidade do assunto, a relativa distância temporal permite que os fatos sejam encenados numa abordagem mais leve, no que cabe a parte da comédia, de forma que o humor negro garante que não haja prejuízo algum para a análise crítica. O visual adotado o aproxima dos vídeos caseiros da década de 80, permitindo que imagens de arquivo (relativamente recentes) sejam perfeitamente incorporadas à narrativa. Nem vestígios do classicismo formal de um Tudo pelo Poder (George Clooney, 2011), por exemplo. Eu arriscaria dizer que se trata de um dos melhores e mais bem humorados registros de uma campanha eleitoral. Larraín nunca deixa a peteca cair de vez: quando alguém exalta a importância do processo eleitoral para a democracia, a voz da consciência sempre vem para nos lembrar do quão ridículo podem ser as campanhas. Supostamente, no período retratado, acreditava-se que rumávamos para uma modernização dos processos eleitorais. Mal sabíamos que a era dos valores frívolos estava apenas começando.


Mistérios de Lisboa (2010), Raúl Ruiz

Eu já lamentava profundamente o fato de haver perdido as exibições de Mistérios em Lisboa no CINESESC no início do ano. Já havia me conformado em assisti-lo numa versão meia boca baixada na internet por um amigo. Quando bati o olho na programação do SANFIC e vi que o filme seria projetado, sabia que outra oportunidade como esta não haveria de acontecer novamente. São quatro horas e meia de pura elegância, fluência narrativa e inúmeras reviravoltas. O mundo das aparências registrado no texto original de Camilo Castelo Branco nos idos de 1854, transposto para a tela grande do cinema em 2010. Pintura, teatro, literatura e música num mesmo pacote. Assombroso.


Meu Último Round (2011), Julio Jorquera Arriagada

Julio Jorquera foi assistente de direção de Andrés Wood em Machuca (2004) e Violeta Foi para o Céu (2011). Meu Último Round é a sua estreia atrás das câmeras. A produção é pequena, com poucas chances de cruzar as fronteiras nacionais, mas que se deixa ver facilmente. Integrou o Festival Mix Brasil da Diversidade Sexual de 2011. A rigor nada de novo: um relacionamento amoroso entre dois homens, certamente influenciado por O Segredo de Brokeback Mountain (Ang Lee, 2005), conduzido com leveza e dotado de alguns bons momentos. O filme se segura na entrega dos dois atores, especialmente na interpretação do boxer Octavio (Roberto Farias).