quarta-feira, novembro 09, 2011

Cakoff, a Mostra, a cinefilia e Paradjanov



“... Se eu ainda tenho energia é porque cada filme que vejo me acrescenta alguma coisa, eu sinto que posso continuar sendo útil. E eu quero propagar essas ideias. Acho que a essência da democracia é isso. É um exercício para nunca se ser egoísta. Também faz parte da minha vida de repórter, de jornalista de um tempo em que havia ditadura militar e tudo o que você podia escrever era como um ato de resistência. Poder passar nas entrelinhas alguma mensagem já era uma vitória, com toda a censura que existia nas redações.”

“O cinema constrói muito da nossa matéria inconsciente. A coisa mais forte, que eu valorizo muito, e a Mostra sempre traz, são os filmes antigos restaurados. É o registro do passado, uma forma de respeitar as gerações anteriores. O crítico precisa ser mais tolerante e generoso. Deixar o julgamento para outras pessoas. Deve dizer quem é o autor, em que circunstância o filme foi feito e do que se trata. A avaliação fica por conta de cada um. Resumindo: não acho que exista um só filme que faça a nossa cabeça. São muitos e esse aprendizado é infinito.”

Leon Cakoff, Os Filmes da Minha Vida

Eu já havia me programado para passar uma semana em São Paulo, por ocasião da Mostra, quando a notícia do falecimento de Cakoff foi divulgada. Embora eu nunca tenha trocado uma palavra sequer com ele (oportunidades não me faltaram nos intervalos das sessões das Mostras), cultivo, bem como uma legião numerosa de cinéfilos, um respeito e admiração pelo idealizador do maior evento cultural da capital paulista: a Mostra de Cinema Internacional de São Paulo, que este ano completou 35 anos sob sua responsabilidade e curadoria.

Meu interesse pelo cinema defendido e difundido por Cakoff só começou a partir de 1995, quando residi em São Paulo por um ano – essa vivência na capital foi fundamental para estabelecer meu gosto, minhas preferências e prioridades cinematográficas. Minha infância e adolescência em São José dos Campos nos anos 80 não foram muito diferentes das dos meus colegas da mesma geração: Sessão da Tarde, Tela Quente e muito VHS. Cinema (de rua, ainda) era programa família de final de semana. Quem dava as cartas eram as produções assinadas por Spielberg, Lucas e Zemeckis, as franquias recém formatadas dos filmes de terror juvenil (Sexta-feira 13, A Hora do Espanto, A Hora do Pesadelo), os filmes de ação (Top Gun – Ases Indomáveis, Duro de Matar, Máquina Mortífera) e as ficções científicas (O Predador, O Exterminador do Futuro). Antes de chegar a São Paulo minhas referências cinéfilas mais arrojadas eram os dramas indicados ao Oscar: eles representavam os verdadeiros bons filmes, os ditos “filmes relevantes”.

Ainda hoje me recordo da minha primeira sessão no Espaço Unibanco da Augusta, em 1995, assistindo ao vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza de 1994: Antes da Chuva, do macedônio Milcho Manchevski. O filme havia sido a vedete do público na edição da Mostra de 94 (Prêmio do Público – Melhor Filme de Ficção Internacional da Mostra de 1994). Deixei a sala estupefato. Subi a Rua Augusta rumo ao metrô redesenhando todo o filme na minha cabeça. Na minha ignorância, eu não concebia que um filme de tamanha qualidade pudesse ser produzido na Macedônia. Foi a primeira vez que um filme em língua estrangeira (como se o inglês não fosse!) me despertava a atenção – desconsiderando, naturalmente, o vencedor do Oscar de Filme Estrangeiro de 1990: o aclamado e emotivo Cinema Paradiso, do italiano Giuseppe Tornatore. O drama daqueles macedônios era tão verdadeiro, intenso e envolvente que a língua, a ausência de astros e o abismo cultural que nos separa não foram capazes de me desmotivar a segui-los. Na verdade, aquela sessão representou pra mim uma quebra de preconceito, abrindo-me as portas para um exercício de cinefilia mais apurado, refinado e seletivo.

Coincidentemente no ano de 1995, o mundo inteiro celebrava o centenário do cinema. Os jornais impressos e as revistas especializadas publicavam listas e mais listas dos filmes mais importantes da história (posteriormente, até revistas não especializadas elaborariam as suas listas). A Folha de S.Paulo publicou um caderno especial (volumoso) com os 10 filmes mais importantes segundo 100 críticos de cinema de todo o mundo. O caderno não só destinava uma página para cada um dos dez melhores filmes como listava os dez filmes selecionados por cada crítico. Eu cansei de consultar as listas individuais a procura de algum filme que eu já tivesse visto que não fosse de Charles Chaplin. Embora eu conhecesse muito dos filmes relacionados por nome, ainda não havia visto qualquer um deles.

A minha relação com a crítica também se estabeleceu a partir desse momento: Inácio Araújo, Luiz Carlos Merten, Luis Zanin Oricchio, José Geraldo Couto, Cássio Starling Carlos, Paulo Santos Lima (e eventualmente outros colaboradores da Folha de S.Paulo, como Leon Cakoff e Walter Salles). A internet levaria mais alguns anos para consolidar-se, facilitando o acesso aos textos do crítico norte-americano do jornal Chicago Sun-Times, Roger Ebert – autor de uma das frases que me vem à cabeça sempre que alguém me confessa que desconhece um dos clássicos do cinema mundial (frequentemente se aplica a mim mesmo), “If you do not know his work, I envy you, because you have some of your most sublime movigoing experiences ahead of you.”

A introdução acabou saindo maior do que eu havia planejado. Nem eu imaginava que haveria tanta coisa pra ser colocada em um texto – e olha que ele poderia ser maior ainda. Enfim, escrevo esse post depois da Mostra deste ano tentando prestar uma homenagem, ainda que singela, ao trabalho do Cakoff – afinal, meu “batismo” (e de praticamente todo cinéfilo no Brasil) se deu por meio de uma de suas escolhas. Coincidentemente, uma das retrospectivas deste ano foi a do armênio Sergei Paradjanov, cujos filmes eu desconhecia - até então, ouvira a respeito de A Cor da Romã (1968), lançado recentemente em DVD pela Lume Filmes. A Mostra (ela novamente!) me presenteou com as projeções em 35 mm de O Primeiro Rapaz (1959) e A Lenda da Fortaleza Suram (1986) e em digital do curta Hagop Hovnatanian (1967) e A Cor da Romã. Tivesse meu tempo em São Paulo sido mais extenso, teria me programado para assistir a todos os filmes de Paradjanov. Eu sabia que outra oportunidade como esta seria improvável, pra não dizer impossível.

A escolha dos trechos que abrem este post não foi nem um pouco arbitrária; a meu ver, eles representam bem o espírito humano, contestatório, resistente e determinado que nortearam os esforços de Cakoff pra viabilizar a Mostra desde sua primeira edição (no livro Os Filmes da Minha Vida ele menciona, orgulhoso, inúmeras situações dignas de registro em que não fosse por sua persistência, ousadia e coragem, fica claro que o evento não teria chegado muito longe). O que mais me chama a atenção nesses trechos selecionados (em especial o primeiro) é que, curiosamente, eles dialogam perfeitamente com a obra/vida de Paradjanov: censura, ato de resistência, ditadura militar (no universo do armênio seriam representadas pelas autoridades soviéticas). Ambos lutaram, cada um a sua maneira e se valendo do talento e das habilidades que lhe foram conferidos – suas verdadeiras “armas” -, para que seus trabalhos fossem compreendidos, difundidos e apreciados. O segundo trecho parece uma encomenda póstuma de Paradjanov a Cakoff. Não estou certo de que Cakoff, que também era armênio, se orgulharia dessas aproximações, mas tampouco acredito que ele se incomodaria.

Pra terminar: os próximos posts serão dedicados a Paradjanov e aos filmes vistos na Mostra deste ano.

Salve Cakoff (e a Mostra)!

4 comentários:

  1. Realmente Cakoff fará falta, Rodrigo. Parabéns pelo post.

    O Falcão Maltês

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  2. Torçamos para que a Renata de Almeida ou aqueles que conduzirão o evento a partir de agora preservem o espírito do Cakoff. Abraço.

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  3. A Mostra Internacional de Cinema de São Paulo tinha a cara de Leon Cakoff e ele dedicou vários anos de sua vida a esse trabalho. Mas agora, quem poderá substituí-lo? http://gilbertocarlos-cinema.blogspot.com/

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  4. Gilberto, tomara que sejamos surpreendidos, pro nosso bem e dos cinéfilos que estão por vir.
    Abraço.

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